Quarta, 3 de fevereiro de 2016
Associação quer derrubar o veto de Dilma Rousseff à exigência de auditoria em todos os débitos públicos
por PAULO SILVA PINTO
“O problema é que nosso passivo é imenso e não se veem as
razões para termos chegado a isso, os investimentos realizados. O que
existe é um sistema da dívida, que nos faz ficar constantemente
atolados”
Maria Lucia Fattorelli, coordenadora nacional da Auditoria Cidadã da Dívida
“Houve uma farra de empréstimos de organismos internacionais a
estados e municípios, com anuência do governo federal. É uma bomba
relógio. Mas vai ser difícil conseguir os votos necessários para
derrubar o veto”
Álvaro Dias (PV-PR), senador
O governo não terá sossego. Ao rejeitar a proposta de um escrutínio
na dívida pública em meados deste mês, a presidente Dilma Rousseff
comprou uma briga que será grande, promete Maria Lucia Fattorelli,
coordenadora nacional da Auditoria Cidadã da Dívida.
A entidade havia conseguido a inclusão da proposta no Plano
Plurianual (PPA), aprovado no fim de dezembro, por meio de uma emenda do
deputado Edmilson Rodrigues (PSol-PA). Mas o trecho foi eliminado na
sanção presidencial da lei, em meados de janeiro. Na semana passada, a
Auditoria Cidadã iniciou uma campanha para a derrubada do veto de Dilma.
Na página eletrônica da associação (www.auditoriacidada.org.br/derrubaoveto)
é possível aderir ao abaixo-assinado em defesa da causa, que tinha
ontem o apoio registrado de 3.669 pessoas, das quais 113 deputados e 25
senadores. São necessários, porém, 257 votos na Câmara e 41 no Senado
para a derrubada do veto presidencial.
“A presidente perdeu uma ótima oportunidade de recuperar a
popularidade”, critica Fattorelli, auditora aposentada da Receita
Federal. Para ela, seria possível equacionar os problemas fiscais do
país e retomar o crescimento econômico se o Executivo conseguisse
reduzir seus débitos – vários economistas, porém, veem essa ideia como
uma miragem. (leia texto ao lado) A proposta, inscrita no PPA, era que o
Ministério da Fazenda promovesse uma pesquisa detalhada da origem das
obrigações do governo, em um processo que teria o acompanhamento de
entidades da sociedade civil.
Para Fattorelli, muito do que o Estado deve é injusto e ilegal. “Já
na Independência, o Brasil foi obrigado a assumir uma dívida que
Portugal tinha com a Inglaterra”. Ela garante que não se opõe a que um
país tome dinheiro emprestado para fazer investimentos. “O problema é
que nosso passivo é imenso e não se veem as razões para termos chegado a
isso, os investimentos realizados. O que existe é um sistema da dívida,
que nos faz ficar constantemente atolados”, argumenta. O total de
obrigações do Estado encerrou 2014 em R$ 3,252 trilhões, segundo dados
do Banco Central (BC). Em novembro do ano passado, dado mais recente
disponível, estava em R$ 3,844 trilhões, um acréscimo de R$ 592 bilhões a
mais.
A auditora aposentada acredita ter fortes motivos para apostar na
redução do peso dos débitos sobre o Estado, argumentando que as
operações dos anos 1980, durante o regime militar, são suspeitas, assim
como as de outros países latino-americanos. Não fala apenas por
hipótese. Ela trabalhou durante quase dois anos, no fim da década
passada, em uma avaliação pormenorizada da dívida do Equador, quando
ainda era servidora da Receita. Seu trabalho foi, quase na totalidade do
período, voluntário, usando férias e períodos de licenças-prêmio a que
tinha direito como servidora. Só nos quatro meses finais foi cedida, com
remuneração, pelo ministro Guido Mantega.
O relatório da comissão indicava que o Equador não deveria pagar
nada. Ao contrário, deveria ser ressarcido por juros pagos
indevidamente. “O presidente Rafael Correa afirmou que buscar uma
solução jurídica para isso levaria anos. Optou, então, por uma ação
política”, explica Fattorelli. Correa ofereceu resgatar os títulos com
70% de deságio. “Foi procurado por 95% dos credores, o que resultou em
uma economia de US$ 7 bilhões para o país”, conta a coordenadora da
Auditoria Cidadã. No ano passado, ela fez um trabalho semelhante para a
Grécia, e também descobriu altos valores indevidos. Mas o
primeiro-ministro Alexis Tsipras abriu mão de brigar por isso.
Um dos itens centrais da auditoria realizada no Equador foi um
documento em que o governo, nos anos 1980, se comprometeu a abrir mão de
reivindicar a prescrição dos débitos. “Era um papel empoeirado, que
estava escondido no fundo de uma prateleira”, conta Fattorelli. O
compromisso assumido pelo país era ilegal, ela alega, e foi feito como
para evitar que os acordos da dívida dos anos 1980 e início da década de
1990 fossem contestados. Nesse processo, depois de longa negociação, os
débitos com bancos foram substituídos por títulos, de livre negociação
no mercado. Ela acredita que o Brasil e outros países latinos-americanos
tenha feito a mesma coisa.
O problema, aponta a auditora aposentada, é que a lei de Nova York
determina que qualquer dívida perde o valor se não for cobrada ao longo
de seis anos. “Muito do que era devido já estava prescrito, mas os
países devedores abriram mão de reivindicar isso”. Os governos
latino-americanos ficaram durante vários anos em situação de moratória,
em que não pagavam juros devido, o principal da dívida ou ambos. Nessa
fase, a coordenadora da Auditoria Cidadã suspeita que houve prescrição
dos débitos.
O senador Álvaro Dias (PV-PR) defende a proposta de auditoria da
dívida, que julga, porém, difícil de emplacar. “Esse assunto é muito
importante. Nos últimos anos, houve uma farra de empréstimos de
organismos internacionais a estados e municípios, com anuência do
governo federal. Isso é uma bomba relógio. Mas vai ser muito difícil
conseguir os votos necessários para derrubar o veto”.
Atingiu R$ 3,927 trilhões no fim do ano passado a dívida pública no
país, o que é resultado na falta de controle nos gastos públicos, na
avaliação do economista Bruno Lavieri, sócio da 4E Consultoria. “A conta
de juros cresce muito porque o governo não tem credibilidade no mercado
para reduzir o rombo fiscal. E isso vem aumentando o volume da dívida
com vencimento em prazos mais curtos”, avisa.
Colaborou Rosana Hessel
Estados na pendura
A Auditoria Cidadã da Dívida contesta não só o passivo do governo
federal, mas também parte de seus ativos: as obrigações que lhes são
devidas por Estados e municípios. Para Maria Lucia Fattorelli, essa
relação está errada, pois não se podem exigir juros entre entes
federados, assim como não é permitido cobrar impostos. Essas dívidas
foram contraídas em 1997 e 1998, quando o governo federal assumiu os
débitos das Unidades da Federação. O maior problema, segundo Fattorelli,
porém, é que, ao renegociar seus débitos, os governos estaduais
assumiram dívidas dos bancos que controlavam. “Eram débitos privados, de
usineiros, por exemplo, que deveriam ter sido pagos por eles”, critica.
Críticas são contestadas
Além da derrubada do veto presidencial, a Auditoria Cidadã da Dívida
terá um trabalho difícil para demonstrar que parte dos débitos são
indevidos. Para o economista Carlos Eduardo de Freitas, ex-diretor do
Banco Central (BC), a alegação não faz sentido. “A dívida era
constantemente cobrada e reconhecida, mesmo quando estávamos em situação
de moratória”, diz ele. Funcionário de carreira da autoridade
monetária, antes de chegar ao topo da instituição ele atuou em áreas que
lidavam com as obrigações externas do país. Cedido ao Ministério da
Fazenda no início do governo Collor, atuou no grupo que renegociou a
dívida para a conversão das obrigações bancárias em títulos, sob a
liderança do diplomata Jório Dauster – mais tarde, o cargo seria de
Pedro Malan, que se tornou presidente do BC e, em seguida, já no governo
de Fernando Henrique Cardoso, ministro da Fazenda.
Com a conversão da dívida em títulos, ainda no governo Itamar Franco,
o país voltou aos mercados internacionais. Foi uma etapa indispensável
para abrir caminho para o Plano Real, que trouxe a estabilidade
monetária. Sem a formação de reservas em dólar por meio da emissão de
títulos, não teria sido possível ao governo segurar a cotação do dólar
que levou ao controle da inflação.
A conversão das dívidas bancárias em títulos não é, porém, a única
operação na mira da Auditoria Cidadã. Outro ponto é o fato de que, ao
longo dos anos 1980, a dívida do governo incorporou obrigações de
empresas. Freitas também contesta isso. Explica que as empresas não
podiam enviar o dinheiro diretamente para os bancos credores no
exterior. Pagavam ao BC, que remetia o dinheiro ou assumia o débito.
Como as reservas eram escassas ou inexistentes, dependendo do momento, a
dívida do governo acabou por se avolumar. Analistas de mercado afirmam
reservadamente, porém, que houve suspeitas na época, nunca investigadas,
de que algumas empresas tiveram acesso a informação privilegiada.
Correram para antecipar pagamentos de dívida em dólar pouco antes de
grandes movimentos de desvalorização da moeda em relação ao cruzeiro.
Freitas afirma que o escrutínio da dívida não tará qualquer mudança
no tamanho do passivo brasileiro. “Não existe um sistema da dívida. O
que existe é que os governos gastam mais do que arrecadam, e isso
provoca o aumento da dívida. Para reduzi-la, é necessário reduzir os
gastos ou aumentar a arrecadação de tributos”, argumenta.(PSP)