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(Millôr Fernandes)

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016

Piketty: Sanders desafia a Era da Desigualdade

Quinta, 18 de fevereiro de 2016
Nos Estados Unidos o crescimento do candidato que quer redistribuir riqueza terá repercussão global: ele mostra que é possível reagir à aristocracia financeira. Por Thomas Piketty.
18 de Fevereiro, 2016
Houve, nos Estados Unidos, uma tradição hoje ignorada: impostos progressivos, com percentagens de até 91% para os mais ricos. Ao evocá-la, num país em crise, Sanders atrai cada vez mais apoio.
 
Como podemos interpretar o incrível sucesso do candidato “socialista” Bernie Sanders nas primárias dos Estados unidos? O senador de Vermont está agora à frente de Hillary Clinton entre os eleitores democratas com menos de 50 anos de idade, e é apenas graças à geração mais velha que Clinton consegue manter-se à frente nas sondagens.


Sanders pode não vencer a competição, por estar a enfrentar a máquina dos Clinton, assim como o conservadorismo da velha mídia. Mas já foi demonstrado que um outro Sanders – possivelmente mais jovem e menos branco – poderia num futuro próximo vencer as eleições presidenciais e mudar a fisionomia do país. Em vários aspectos, estamos a testemunhar o fim do ciclo político e ideológico iniciado com a vitória de Ronald Reagan nas eleições de 1980.

Vamos olhar em retrospetiva, por um instante. Dos anos 30 aos anos 70, os Estados Unidos estiveram na vanguarda de uma série de ambiciosas políticas com o objetivo de reduzir as desigualdades sociais. Em parte, para evitar qualquer semelhança com a Velha Europa, vista então como extremamente desigual e contrária ao espírito democrático norte-americano, o país inventou no entre-guerras uma tributação altamente progressiva sobre a renda e o património, e instituiu níveis de progressividade nunca utilizados no outro lado do Atlântico. De 1930 a 1980 – durante meio século – a percentagem para a tributação dos vencimentos mais elevados dos EUA (acima de 1 milhão de dólares anuais) era em média de 82%. Chegou a 91% entre os anos 1940 e 1960 (de Roosevelt a Kennedy); e era ainda de 70% aquando da eleição de Reagan, em 1980.

Essa política não afetou, de forma alguma, o forte crescimento da economia norte-americana do pós-guerra. Certamente, porque não faz muito sentido pagar a super gestores 10 milhões de dólares, quando 1 milhão de dólares é suficiente. Os impostos sobre património eram igualmente progressivos. A percentagem de imposto chegou a 70% a 80% sobre as maiores fortunas durante décadas (o que quase nunca excedeu os 30% a 40%, na Alemanha ou na França) e reduziram enormemente a concentração de capital norte-americano, sem a destruição e as guerras que a Europa teve de enfrentar.

A restauração de um capitalismo mítico
Nos anos 1930, muito antes dos países da Europa, os Estados Unidos instituíram um salário mínimo federal. No fim dos anos 1960, valia 10 dólares por hora (no valor do dólar em 2016), de longe o salário mínimo mais alto naqueles tempos.

Tudo isso foi obtido quase sem desemprego, pois tanto o nível de produtividade quanto o sistema educativo o possibilitavam. Esse foi também o período em que os Estados Unidos finalmente terminaram com a antidemocrática discriminação racial legal ainda em vigor no Sul, e lançaram novas políticas sociais.

Todas essas mudanças criaram uma forte oposição, particularmente entre as elites financeiras e os setores reacionários do eleitorado branco. Humilhados no Vietname, os Estados Unidos dos anos 70 estavam mais preocupados com o fato de os derrotados da Segunda Guerra Mundial (liderados pela Alemanha e pelo Japão) ganharem terreno a alta velocidade. Os Estados Unidos sofreram inclusive com a crise do petróleo, a inflação e a sub-indexação das tabelas dos impostos. Aproveitando todas essas frustrações, Reagan foi eleito em 1980 com um programa cujo objetivo era restaurar o capitalismo mítico existente no passado.

O ápice deste novo programa foi a reforma fiscal de 1986, que pôs fim a meio século de um sistema de impostos progressivos e reduziu em 28% a percentagem de impostos sobre as rendas mais altas.
Os democratas nunca desafiaram de fato essa escolha, nos anos dos governos Clinton (1992-2000) e Obama (2008-2016), que estabilizaram a percentagem de impostos em cerca de 40% (duas vezes mais baixa do que o nível médio no período 1930-1980). Isso provocou uma explosão de desigualdade, ao lado de salários incrivelmente altos para aqueles os conseguiam obter, e uma estagnação da renda para a maioria dos norte-americanos. Tudo isso foi acompanhado por baixo crescimento (num nível ainda um pouco mais alto que o da Europa, lembremo-nos, porque o Velho Mundo se encontrava atolado em outros problemas).

Uma possível agenda progressista

Reagan decidiu também congelar o valor do salário mínimo federal, que desde 1980 foi sendo lenta, porém progressivamente corroído pela inflação (pouco mais de 7 dólares por hora em 2016, contra perto de 11 dólares em 1969). Também nesse caso, o novo regime político e ideológico foi apenas mitigado nos anos Clinton e Obama.

O sucesso de Sanders, hoje, mostra que a maioria dos norte-americanos está cansada do aumento da desigualdade e dessas falsas mudanças políticas, e pretende reviver tanto uma agenda progressista como a tradição norte americana de igualitarismo. Hillary Clinton, que se posicionou à esquerda de Barack Obama em 2008, em questões como o seguro de saúde, aparece agora como defensora do status quo, como apenas mais uma herdeira do regime politico de Reagan-Clinton-Obama.

Sanders deixa claro que deseja restaurar a progressividade dos impostos e aumentar o salário mínimo (para 15 dólares por hora). A isso acrescenta a assistência de saúde e educação universitária gratuitas, num país onde a desigualdade no acesso à educação alcançou níveis sem precedentes, e destacando assim o abismo permanente que separa as vidas da maioria dos norte-americanos dos tranquilizadores discursos meritocráticos pronunciados pelos vencedores do sistema.

Enquanto isso, o Partido Republicano afunda-se num discurso hiper-nacionalista, anti-imigrante e anti-Islão (ainda que o Islão não seja uma grande força religiosa no país) e o enaltecimento sem limites da fortuna acumulada pelos brancos ultra-ricos. Os juízes nomeados sob Reagan e Bush derrubaram qualquer limitação legal da influência do dinheiro privado na política, o que dificulta muito a tarefa de candidatos como Sanders.

Contudo, outras formas de mobilização política e crowdfunding podem prevalecer e empurrar os Estados Unidos para um novo ciclo político. Estamos longe das tétricas profecias sobre o fim da história.

Tradução de Inês Castilho para Outras Palavras, publicado a 17 de fevereiro de 2016.

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