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(Millôr Fernandes)

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

A nova investida do chip

Segunda, 5 de dezembro de 2011

Por Ivan de Carvalho
Lembrou ontem o jornalista Elio Gaspari na Folha de S. Paulo: “Em 2006, a resolução 212 do Conselho Nacional de Trânsito mandou que, até meados de 2010, nenhum veículo pudesse ser licenciado sem que nele houvesse um chip”.
 
O chip “transmitiria dados para dezenas de milhares de antenas” e elas os remeteriam “a centenas de centrais de processamento”. Nenhum veículo seria licenciado sem o chip e isso valia para todo e qualquer lugar do país, ainda que nesse lugar só houvesse um carro. O sistema todo custaria, segundo o jornalista, R$ 4 bilhões. Suponho que apenas para ser implantado. Mas está programado para ter continuidade no futuro e com isso o valor a ser gasto irá aumentando por tempo indeterminado.
 
Elio Gaspari deu ao seu artigo o apropriado título de “A maracutaia da vez: chips nos carros”. E no texto chamou a coisa também de “o escândalo da vez”.
 
Inicialmente marcada para meados de 2010 a data limite para que mais nenhum veículo fosse licenciado sem o chip, em 2009 a resolução do Contran foi “reescrita” e o “início da festa”, como o chamou Gaspari, foi remarcado para junho de 2011. Não aconteceu. Então em julho deste ano decidiu-se que “a festa dos contratos começa em 1º de janeiro de 2012 (ano de campanha eleitoral).” Está em cima da hora.
           
É, como qualifica Elio Gaspari, “em nome da modernidade”, um “negócio milionário para vendedores de equipamentos”. Mas não é só isso, penso eu. Pode-se até imaginar que se for seguido certo hábito nacional, os vendedores de equipamentos pagarão parte do que receberão aos vendedores de facilidades. É da atual lógica estatal brasileira e até acredito que Gaspari haja implicitamente incluído esse hábito no seu título, que fala de “maracutaia”, palavra que todos aprendemos de Luiz Inácio Lula da Silva e objeto de tanto esforço que se tem feito para dar demonstração prática de seu significado.
 
Mas creio que integram o tema “chips nos carros” alguns aspectos não abordados ontem pelo competente Elio Gaspari e por mim já apontados há tempo neste espaço. Alegaram os criadores da Resolução do Contran que os chips tinham como objetivos fundamentais o rastreamento dos veículos, reduzindo os roubos (Gaspari tocou neste item, mostrando como é falso) e permitindo melhor conhecimento e ordenamento do fluxo de tráfego.
 
Praticamente esconderam, nas explicações oficiais e oficiosas, o objetivo de arrecadação tributária, que talvez seja o maior de todos os objetivos. O chip garantirá ao Estado saber, sem blitz, se o carro está em atraso com o IPVA e o licenciamento (sem falar no bom negócio do seguro obrigatório), imposto e taxa muito rendosos, mais ainda com o intenso e recente aumento da frota nacional de veículos por conta da ascensão da classe C e dos estímulos que o governo tem dado ou autorizado para incrementar as vendas. O objetivo de arrecadação tributária é fundamental nessa história dos chips nos carros.
 
Mas há outro aspecto mais relevante, essencial mesmo. O direito das pessoas à privacidade é cláusula pétrea da Constituição. E com uma maldosa resolução do Contran, abaixo de lei ordinária, até de decreto, agride-se esse direito, pois passa o Estado a rastrear o carro – considerado quase uma extensão da residência – e, com ele, xeretar a vida do proprietário ou motorista, eventualmente para fins espúrios, ou, no mínimo, obtendo informações que não são da conta do Estado.
 
Sabem a tática do salame? Uma fatia, mais outra, mais outra... e vai-se todo o salame. Na Record News, há algumas semanas, vi um repórter da emissora (não lembro qual) dar uma entrevista ao jornalista Celso Freitas. O tema: pessoas desaparecidas, sobre o qual o entrevistado fizera uma série de reportagens. Então, bem no final, Freitas comentou que, com o previsto advento do chip subcutâneo, vai melhorar, porque será mais fácil achar os desaparecidos. O entrevistado contestou, com firmeza: “Não, acho que não. As pessoas têm o direito de desaparecer, se quiserem”.
 
Seria conveniente uma Ação Direta de Inconstitucionalidade contra os chips nos carros. Antes que nos ponham um também sob a pele, como planejam.

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Este artigo foi publicado originalmente na Tribuna da Bahia desta segunda.
Ivan de Carvalho é jornalista baiano.