Segunda, 25 de março de 2013
Da Pública
Agência de Reportagem e Jornalismo Investigativo
Essa frase, ouvida por muitas mulheres na hora do parto, é uma das
tantas caras da violência obstétrica que vitima uma em cada quatro
mulheres brasileiras. Eu fui uma delas
Eu tive meu filho em um esquema conhecido por profissionais da área
da saúde como o limbo do parto: um hospital precário, porém maquiado
para parecer mais atrativo para a classe média, que atende a muitos
convênios baratos, por isso está sempre lotado, não é gratuito, mas o
atendimento lembra o pior do SUS, porém sem os profissionais capacitados
dos melhores hospitais públicos nem a infraestrutura dos hospitais
caros particulares para emergências reais. Durante
o pré-natal, fui atendida por plantonistas sem nome. Também não me
lembro do rosto de nenhum deles. O meu nome variava conforme o número
escrito no papel de senha da fila de espera: um dia eu era 234, outro
525. Até que, durante um desses “atendimentos” a médica resolveu fazer
um descolamento de membrana, através de um exame doloroso de toque, para
acelerar meu parto, porque minha barriga “já estava muito grande”. Saí
do consultório com muita dor e na mesma noite, em casa, minha bolsa
rompeu. Fui para o tal hospital do convênio já em trabalho de parto.
Quando cheguei, me instalaram em uma cadeira de plástico da recepção e
informaram meus acompanhantes que eu deveria procurar outro hospital
porque aquele estava lotado. Lembro que fazia muito frio e eu estava
molhada e gelada, pois minha bolsa continuava a vazar. Fiquei muito
doente por causa disso. Minha mãe ameaçou ligar para o advogado, disse
que processaria o hospital e que eu não sairia de lá em estágio tão
avançado do trabalho de parto. Meu pai quis bater no homem da recepção.
Enquanto isso, minhas contrações aumentavam. Antes de ser finalmente
internada, passei por um exame de toque coletivo, feito por um médico e
seus estudantes, para verificar minha dilatação. “Já dá para ver o
cabelo do bebê, quer ver pai?” mostrava o médico para seus alunos e para
o pai do meu filho. Consigo me lembrar de poucas situações em que
fiquei tão constrangida na vida. Cerca de
uma hora depois, me colocaram em uma sala com várias mulheres. Quando
uma gritava, a enfermeira dizia: “pare de gritar, você está incomodando
as outras mães, não faça escândalo”. Se eu posso considerar que tive
alguma sorte neste momento, foi o de terem me esquecido no fim da sala,
pois não me colocaram o soro com ocitocina sintética que acelera o parto
e aumenta as contrações, intensificando muito a dor. Hoje eu sei que se
tivessem feito, provavelmente eu teria implorado por uma cesariana,
como a grande maioria das mulheres.
Não tive direito a acompanhante. O pai do meu filho entrava na sala
de vez em quando, mas não podia ficar muito para preservar a privacidade
das outras mulheres. A moça que gritava pariu no corredor. Até que uma
enfermeira lembrou de mim e me mandou fazer força. Quando eu estava
quase dando a luz, ela gritou: “pára!” e me levou para o centro
cirúrgico. Lá me deram uma combinação de anestesia peridural com
raquidiana, sem me perguntar se eu precisava ou gostaria de ser
anestesiada, me deitaram, fizeram uma episotomia (corte na vagina) sem
meu consentimento – procedimento desnecessário na grande maioria dos
casos, segundo pesquisas da medicina moderna – empurraram a minha
barriga e puxaram meu bebê em um parto “normal”. Achei que teria meu
filho nos braços, queria ver a carinha dele, mas me mostraram de longe e
antes que eu pudesse esticar a mão para tocá-lo, levaram-no para longe
de mim. Já no quarto, tentei por três vezes levantar para ir até o
berçario e três vezes desmaiei por causa da anestesia. “Descanse um
pouco mãezinha” diziam as enfermeiras “Sossega!” Eu
não queria descansar, só estaria sossegada com meu filho junto de mim! O
fotógrafo do hospital (que eu nem sabia que estava no meu parto) veio
nos vender a primeira imagem do bebê, já limpo, vestido e penteado. Foi
assim que eu vi pela primeira vez o rostinho dele, que só chegou para
mamar cerca de 4 horas depois.
Faz exatamente nove anos que tudo isso
aconteceu e hoje é ainda mais doloroso relembrar porque descobri que o
que vivi não foi uma fatalidade, ou um pesadelo: eu, como uma a cada
quatro mulheres brasileiras, fui vítima de violência obstétrica.
Uma em cada quatro mulheres sofre violência no parto
O conceito internacional de violência obstétrica define qualquer ato
ou intervenção direcionado à mulher grávida, parturiente ou puérpera
(que deu à luz recentemente), ou ao seu bebê, praticado sem o
consentimento explícito e informado da mulher e/ou em desrespeito à sua
autonomia, integridade física e mental, aos seus sentimentos, opções e
preferências. A pesquisa “Mulheres brasileiras e Gênero nos espaços público e privado”,
divulgada em 2010 pela Fundação Perseu Abramo, mostrou que uma em cada
quatro mulheres sofre algum tipo de violência durante o parto. As mais
comuns, segundo o estudo, são gritos, procedimentos dolorosos sem
consentimento ou informação, falta de analgesia e até negligência.