Segunda, 14 de abril de 2014
Da Pública
Agência de Reportagem e Jornalismo Investigativo
Nas cidades-sede, pressão sobre ambulantes aumenta
com regras da FIFA; nas áreas de restrição comercial, só vai vender
quem vestir a camisa dos patrocinadores
“Estamos sendo constantemente ameaçados pela Prefeitura do Recife e
tememos que o quadro fique mais grave com a aproximação da Copa do
Mundo. Mas nós não vamos recuar um passo.” Assertivo, Severino Souto
Alves, presidente do Sintraci (Sindicato dos Trabalhadores e
Trabalhadoras do Comércio Informal do Recife), se exalta ao falar da
situação dos trabalhadores ambulantes na capital pernambucana.
Desde outubro de 2013, o Sintraci – criado em dezembro de 2012, para
se contrapor aos possíveis impactos negativos da Copa do Mundo –
convocou dez manifestações em diversos pontos da Região Metropolitana do
Recife; foram seis só nos últimos dois meses. Reivindicam a garantia de
permanência de vendedores ambulantes em alguns pontos da cidade (como
os bairros da Casa Amarela e da Boa Vista, por exemplo), a construção de
shoppings populares, mais diálogo com a administração do prefeito
Geraldo Julio (PSB) e a exoneração de João Braga, secretário de
Mobilidade e Controle Urbano, órgão responsável por disciplinar o
comércio informal em Recife.
“Todas as negociações [com a secretaria] são feitas de forma a
restringir o comércio informal”, afirma Severino. Segundo ele, mais de
300 comerciantes já tiveram suas barracas retiradas de vários pontos da
cidade e sem realocação alguma.
A chegada da Copa do Mundo acirra a tensão entre trabalhadores
ambulantes e as Prefeituras. Um dos pontos críticos é o estabelecimento
de áreas de restrição comercial durante os eventos oficiais da FIFA
(desde jogos até os congressos da entidade). Desde o dia anterior a
qualquer um desses eventos, leis e decretos criados especificamente a
Copa do Mundo passam a vigorar nessa áreas.
Criadas para proteger os interesses dos patrocinadores da Copa, as Áreas de Restrição Comercial
foram definidas na Lei Geral da Copa (12.663/2012) que atribuiu a
regulamentação dessas áreas aos municípios-sede, o que já foi feito em
sete sedes: Brasília, Fortaleza, Natal, Recife, Rio de Janeiro, Salvador e São Paulo. (Veja os mapas abaixo)
As áreas são delimitadas por linhas imaginárias – não há barreiras
físicas – e governadas pelas regras da FIFA, em alguns casos, revogando
as leis municipais sobre comércio (incluído o ambulante), promoções e
publicidade. O objetivo é dar à FIFA o direito de conduzir essas
atividades nas áreas de grande concentração de torcedores – e de
exposição na televisão -, garantindo aos seus patrocinadores
exclusividade comercial e publicitária.
Na capital pernambucana, além do entorno da Arena Pernambuco, que
fica no município de São Lourenço da Mata, uma série de ruas e avenidas
como as da Boa Viagem, Conselheiro Aguiar e Domingos Ferreira (na orla
da Praia de Boa Viagem) e um bairro inteiro – chamado Bairro do Recife –
foram incluídos na área de restrição pelo decreto municipal
27.157/2013, sancionado pelo prefeito Geraldo Julio a dez dias do início
da Copa das Confederações, no ano passado. Em seu artigo 6o, o decreto
determina: “Não será autorizado qualquer tipo de comércio de rua na Área
de Restrição Comercial nos dias de Evento e em suas respectivas
vésperas, salvo se contar com a prévia e expressa manifestação positiva
da FIFA.” Brasília e Fortaleza têm artigos idênticos em seus respectivos
decretos.
“É preocupante, porque são áreas onde o comércio ambulante atua
sempre aqui no Recife”, diz Severino. Em nota publicada em 8 de abril
passado, a Prefeitura afirmou que recebeu o sindicato 38 vezes desde
janeiro de 2013 para conversar e que vem tocando negociações em pontos
reivindicados pelos ambulantes.
Falta de diálogo e indefinição
Em Fortaleza, o vice-diretor da Aprovace (Associação Profissional do
Comércio de Vendedores Ambulantes do Estado do Ceará), Guilherme
Caminha, reclama da falta de diálogo. “Estamos tentando sentar para
conversar desde o início do ano com a Prefeitura para saber como vão
funcionar as coisas na Copa do Mundo e não temos respostas”, afirma. “A
área do [estádio] Castelão e o centro da cidade são importantes para a
gente e esperamos que haja diálogo para podermos atuar por ali. Até
agora as únicas informações que eu tenho são as que você me conta”, ele
disse ao nosso repórter.
Segundo dados da ONG Streetnet, cerca de 52 mil vendedores informais
trabalham na capital cearense. Para a Copa das Confederações, em 2013,
foram oferecidas aos ambulantes 250 vagas no entorno do Castelão e no
Polo Urbanizado da Lagoa de Messejana. “No fim deste mês vencem as
permissões que nós temos para trabalhar lá e nós não sabemos o que vai
acontecer. Até agora a prefeitura só apreendeu nossas mercadorias. Só
vejo eles perseguindo os ambulantes, mas não ofereceram espaço nenhum
para a gente”, afirma Caminha.
Já em Belo Horizonte, as barracas que desde os anos 1960 vendiam
feijão tropeiro e outras comidas típicas no entorno do Mineirão foram
retiradas em 2010, quando começou a reforma do estádio para a Copa do
Mundo. Há quatro anos os barraqueiros não têm trabalho garantido (Leia a história completa aqui).
“Para nós, a Copa foi acompanhada de desemprego e falta de renda”,
desabafa Selma Salvino da Silva, presidente da Abaem – Associação dos
Barraqueiros da Área Externa do Mineirão -, que também representa outros
trabalhadores ambulantes da cidade. Ela conta que, durante a Copa das
Confederações, quem decidia trabalhar nos arredores do estádio tinha que
fazê-lo ilegalmente, correndo o risco de ter mercadorias apreendidas
pela fiscalização. Além disso, a polícia bloqueou a entrada para a
Avenida Antônio Abrahão Caran, principal via de acesso ao Mineirão, o
que manteve os ambulantes a pelo menos 1 km de distância do estádio.
No dia 9 de julho de 2013, logo após as manifestações que marcaram o país, o governador Antonio Anastasia se reuniu com militantes
no Palácio da Liberdade e fez promessas aos ambulantes: “Estamos
falando de trabalhadores e familiares. Vou me esforçar para resolver a
situação deles o quanto antes. Vamos quebrar a cabeça pra isso”.
“Tem sempre muita luta e muita reunião”, diz Selma, apontando a falta
de resultados efetivos apesar das inúmeras audiências que a Abaem teve
com assessores do governo do estado, Ministério Público, Secretaria
municipal da Copa, BH Trans (Empresa de Transporte e Trânsito de BH),
Defensoria Pública e Polícia Militar, entre outras entidades. A última
reunião foi no dia 19 de março e as negociações seguem em andamento.
Na Copa do Mundo, os ambulantes querem autorização para vender no
entorno do estádio ou pelo menos nas áreas de fan fests (eventos
oficiais de exibição pública dos jogos nas cidades-sede). “A gente
espera uma negociação pacífica e uma resposta dos órgãos competentes.
Quando a gente perceber que não vai ter negociação nem articulação, aí
vamos fazer uma ocupação”, alerta Selma.
Até agora não se sabe nem exatamente qual será a área de restrição
comercial em Belo Horizonte. Em dezembro de 2013, seis meses depois da
Copa das Confederações, Belo Horizonte aprovou a Lei nº 10.689,
estabelecendo que o comércio de rua nas imediações e principais vias de
acesso ao estádio seguirá as determinações da Fifa em acordo com a
prefeitura, não sendo aplicáveis as normas municipais sobre o assunto.
Mas não definiu o perímetro das áreas de restrição, o que terá que ser
feito por meio de um decreto. Questionada sobre a demora em definir as
áreas de restrição comercial e sobre seu posicionamento em relação aos
ambulantes, a Secretaria da Copa de Belo Horizonte não respondeu até o
fechamento da reportagem.
A serviço dos patrocinadores
O Fórum dos Ambulantes de São Paulo, que reúne membros de sindicatos,
associações e coletivos ligados aos trabalhadores ambulantes, atua
desde 2011 em conjunto com o Comitê Popular da Copa de São Paulo para
garantir os direitos dos trabalhadores ambulantes na capital paulista.
Em junho de 2012, com assistência jurídica do Centro Gaspar Garcia de
Direitos Humanos, o Fórum conseguiu uma liminar revogando as cassações
de Termos de Permissão de Uso (TPUs) feitas pelo prefeito Gilberto
Kassab (PSD) naquele ano. Na decisão da juíza Carmen Oliveira, da 5ª
Vara da Fazenda Pública, aparece o número de licenças cassadas: 4 mil.
A liminar foi derrubada pela Prefeitura ainda em 2012, mas os
ambulantes conseguiram reestabelecê-la no Supremo Tribunal de Justiça
(STJ). Em 16 de maio de 2013, uma audiência pública definiu que o
processo seria suspenso por 180 dias para a elaboração de um plano
municipal para o comércio ambulante. Com esse objetivo, foi criado, em
setembro, o Grupo de Trabalho dos Ambulantes,
composto por representantes dos ambulantes, da sociedade civil e do
poder público, e coordenado pela Secretaria de Coordenação das
Subprefeituras.
Esse plano ainda não foi lançado, mas o Grupo de Trabalho dos
Ambulantes tem funcionado como espaço de articulação de um acordo entre
SP Copa (Secretaria Municipal da Copa), FIFA, Secretaria de Coordenação
das Subprefeituras e Fórum dos Ambulantes para garantir trabalho aos
ambulantes durante a Copa do Mundo. ”Estamos negociando para que os
ambulantes vendam produtos das empresas patrocinadoras da Copa no
entorno do estádio, na fan fest e nos outros cinco eventos de exibição
pública”, diz André Cintra, assessor de imprensa da SP Copa.
Porém, o decreto nº 55.010,
publicado na quinta-feira passada, afirma apenas que a FIFA possui o
direito sobre o comércio de rua nas áreas de restrição comercial nos
dias de eventos oficiais e nas vésperas, sem detalhar como isso vai
acontecer.
“Vai ter ambulante na Copa. Isso está fechado. É uma coisa boa para o
ambulante, boa para quem está nas ruas. Para a Ambev e para a
Coca-Cola, o que importa é vender a latinha, então quanto mais
ambulantes houver, melhor”, afirma Cintra. Segundo ele, o número de
ambulantes que poderão atuar nesse esquema e a logística ainda estão
sendo discutidos pelo Grupo de Trabalho, mas deve ficar em torno de 400
postos de trabalho.
Esse esquema conta com as benção da FIFA, que declarou: “Em 2013, por
meio de uma iniciativa inédita, a FIFA e COL autorizaram que quatro
Sedes da Copa das Confederações da FIFA Brasil 2013, em conjunto com os
patrocinadores oficiais, implementassem um projeto com ambulantes, que
foram previamente selecionados, treinados e devidamente credenciados
para atuação nas imediações dos estádios nos dias dos jogos. Para a
Competição em 2014, a FIFA e COL, juntamente com outros atores
relevantes, têm estimulado as autoridades locais e patrocinadores
oficiais da Copa do Mundo da FIFA 2014™ a desenvolver e implementar
projeto semelhante. É importante notar que, mesmo que seja conduzido um
programa de qualificação para os vendedores do setor informal pelas
autoridades locais, a atuação dependerá de autorização prévia e deverá
ser fiscalizada nos dias dos jogos, a fim de garantir o mínimo impacto
para as operações e, sobretudo, proteger aqueles que consumirão os
produtos em questão.”
Na boca do Itaquerão
O assessor de imprensa da SP Copa também reconheceu as limitações da
comunicação da prefeitura com os vendedores que estão hoje no entorno do
estádio do Corinthians, o Itaquerão. Ali, os ambulantes trabalham em
meio aos canteiros de obras sonhando com as oportunidades oferecidas
pela Copa do Mundo ao mesmo tempo que convivem com a total falta de
informação, como apurou a reportagem da Pública em visita à Arena
Corinthians no dia 3 de abril. “O pessoal tá querendo montar um
negocinho aqui, arrumar um cantinho para vender. Só que perto não vai
poder ficar”, diz Elisângela Soares de Melo, que há duas semanas vende
água, refrigerante e sorvete para os operários e visitantes do
Itaquerão.
“No começo do ano, fomos na prefeitura pedir uma licença para
trabalhar aqui, mas eles disseram que ninguém ia ficar na frente do
estádio porque lá dentro vai ter um shopping que vai atender às
necessidades dos torcedores”, relata Josi dos Santos, que trabalha lá há
três meses. “Se ninguém se opuser, estaremos aqui. Mas a gente não sabe
o que vai acontecer”, resume Valéria Nogueira, ambulante no local há um
ano.
‘A FIFA tem poder de município’
“Uma vez que as atividades não autorizadas concentram-se,
invariavelmente, no entorno dos estádios e outros Locais Oficiais de
Competição, focando no grande número de torcedores que transitam em tais
regiões, as Áreas de Restrição Comercial tornam-se, operacionalmente,
essenciais para a organização da Copa do Mundo da FIFA”, afirma o
departamento de imprensa da entidade, alegando que os ambulantes podem
“atrapalhar o fluxo de pessoas e de carros na chegada aos jogos, além de
trazer problemas para as equipes de segurança”.
O presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB (SP), Martim de
Almeida Sampaio, que fez um estudo sobre a Lei Geral da Copa, critica o
que considera a criação de tipos penais inexistentes para garantir os
privilégios da FIFA e de seus patrocinadores. “Há três crimes novos
nessa legislação: proteção à marca FIFA, marketing de emboscada por
associação e [marketing de emboscada] por intrusão. Eu pesquisei: pelo
Direito Comparado não existem essas três figuras penais nos principais
sistemas legais”, afirma. O marketing de emboscada por associação é
quando alguém divulga marcas, produtos ou serviços e os associa aos
eventos ou símbolos oficiais da FIFA, sem a autorização dela. Já o
marketing de intrusão ocorre quando alguém faz uma promoção de produtos,
marcas e serviços nos locais de competição, sem se associar ao evento,
mas chamando a atenção do público. Os crimes estão definidos nos artigos
32 e 33 da Lei Geral da Copa e têm penas previstas de três meses a um
ano de detenção.
“O Direito Penal é um campo do Direito cujo objeto tutelado é a
sociedade. Por exemplo, existe uma lei que diz que matar é crime. Isso
está protegendo quem? Alguma pessoa específica? Não, está protegendo a
sociedade. A Lei Geral da Copa é um caso de Direito Penal de autor. Não
se está protegendo a sociedade, mas se está protegendo as marcas da
FIFA”, argumenta.
“Essa lei declara um autêntico estado de sítio. A soberania nacional
foi posta de lado. A Constituição Federal declara a nossa liberdade
comercial e a Lei Geral da Copa delimita áreas onde a FIFA é responsável
por determinar quem [pode comercializar] e o que pode ser
comercializado”, critica o presidente da Comissão de Direitos Humanos da
OAB. Sobre os ambulantes, diz: “a FIFA agora assume a postura de
legislador municipal e tem o poder de proibir inclusive os vendedores
ambulantes que estão devidamente regularizados”.
“Transferir para a FIFA o papel de gestão de um espaço urbano dentro
da cidade é muito grave”, reitera Orlando Santos Jr., sociólogo doutor
em Planejamento Urbano e pesquisador do Observatório das Metrópoles.
“Quem legitimou essa autoridade para que a FIFA possa regular o espaço
público de uma parte da cidade? Há também um impacto sobre o direito dos
cidadãos de se apropriarem da cidade na qual vivem. Eu estou com o meu
direito cerceado por uma lei de exceção que não me permite a apropriação
desse espaço durante um certo período. Cria-se um precedente do ponto
de vista de subordinar a gestão do espaço público a interesses
privados”, diz Orlando.
Sobre os ambulantes, é taxativo: “As medidas de restrição ao comércio
ambulante sinalizam como uma restrição ao próprio direito ao trabalho,
garantido pela Constituição. Está se criando uma restrição específica a
certo grupo social, portanto, a meu ver, restringindo seu direito ao
trabalho”, diz Santos Jr.
O coordenador do programa de justiça da ONG Conectas, Rafael
Custódio, tem a mesma percepção: “Uma coisa é a FIFA querer regular as
áreas onde o evento acontecerá, outra coisa é querer regular o espaço
público do entorno. Regulamentar dessa maneira o entorno dos estádios é
absolutamente ilegal e abusivo. O interesse de uma entidade privada se
sobrepõe a uma série de direitos fundamentais e sobretudo ao interesse
público”, afirma.
A FIFA afirmou por meio de nota que “as áreas de restrição não são
uma medida inédita ou exclusiva da Copa do Mundo da FIFA™ ou da Copa das
Confederações da FIFA. É usual que eventos de grandes proporções (e não
apenas esportivos) contem com áreas nas quais determinadas atividades
comerciais não são permitidas. Trata-se de medida lógica e necessária
para a preservação da ordem e da legalidade em um evento que atrairá
milhões de pessoas”.
Veja os mapas das cidades-sede com as Áreas de Restrição Comercial definidas:
O blog Copa Pública é uma experiência de jornalismo cidadão que mostra como a população brasileira tem sido afetada pelos preparativos para a Copa de 2014 – e como está se organizando para não ficar de fora.