Terça, 3 de junho de 2014
Da Pública
Agência de Reportagem e Jornalismo Investigativo
A saga do Mané Garrincha, o estádio mais caro da
Copa, também significa a frustração de reivindicações por moradia em Brasília
Se, de uma maneira geral, a Copa do Mundo no Brasil ficará
marcada por recursos mal gastos, superfaturamento de obras e oportunidades de
legado desperdiçadas, a cidade de Brasília pode ser considerada a capital do
país também sob esses pontos de vista. Em números absolutos o Mané Garrincha,
como é mais conhecido, foi o mais caro estádio da Copa e um dos mais custosos
entre todos já construídos na história do futebol.
Gastou-se até agora cerca de R$ 1,4 bilhão, integralmente
pagos com dinheiro público. Para complicar, sua construção foi permeada por
decisões equivocadas do governo local com consequências no mínimo questionáveis
para os cidadãos e para o patrimônio do Distrito Federal.
Para entender essa história, precisa-se voltar à gestão do
então governador José Roberto Arruda, que chegou a ser preso e teve de sair do
cargo antes do fim de seu mandato, após a revelação de um esquema de pagamentos
ilegais a parlamentares de sua base de apoio, o que ficou nacionalmente
conhecido como o Mensalão do DEM. Antes disso acontecer, no entanto, o
governador Arruda teve uma ideia que, anunciada à época, até parecia fazer
sentido.
Escolhida como cidade-sede da Copa, Brasília deveria
construir um novo estádio, no lugar do antigo e acanhado Mané Garrincha. Para
que não precisasse recorrer a financiamentos bancários ou deixar a arena nas
mãos de empresas privadas, o então governador decidiu levantar recursos através
da venda de uma grande área verde da Terracap, empresa pública responsável por
administrar as terras do Distrito Federal. O dinheiro do negócio iria para o
estádio e essa área verde, localizada entre o Estádio e um dos principais
shopping centers da cidade, seria utilizada na ampliação da rede hoteleira da
cidade, necessária para receber um evento de grande porte.
Estádio
Nacional de Brasília, um dos mais caros da história do futebol, já
custou
R$ 1,4 bi aos cofres públicos. Foto: Wikimedia Commons
R$ 1,4 bi aos cofres públicos. Foto: Wikimedia Commons
Mas logo os problemas começaram a aparecer. Brasília é uma
cidade planejada e tombada pela Unesco, com um Plano Diretor extremamente
rigoroso. E, segundo esse plano, a área em negociação, cujo endereço é a quadra
901 Norte, não poderia receber empreendimentos comerciais. Manifestações
públicas contra a venda do terreno começaram a ser organizadas, encabeçadas
pelo movimento “Urbanistas por Brasília”. Eles produziram um manifesto com mais
de 130 assinaturas de profissionais da área, criticando duramente a negociação.
No fim de 2011, o Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional) emitiu parecer contrário à venda do terreno.
No ano seguinte, no entanto, já no governo do petista
Agnelo Queiroz, tentou-se novamente negociar a área, incluindo no Plano de
Preservação do Conjunto Urbanístico elaborado naquele ano a possibilidade de
construção de hotéis na área. Em maio de 2012, porém, a Vara do Meio Ambiente e
Assuntos Fundiários do DF decidiu que o governo do DF e a Terracap não poderiam
fazer obras que alterassem os parâmetros urbanísticos de uso ou de gabarito da
quadra 901.
Comprometido em construir o estádio e disposto a torná-lo
palco da abertura da Copa do Mundo (o que acabou não acontecendo), o governo
não poderia voltar atrás. A construção do novo Mané Garrincha já estava sob a
responsabilidade da Terracap, proprietária do estádio desde março de 2011, que
precisou abrir o cofre e se desfazer de patrimônio para garantir o término da
obra. Um documento do Conselho Fiscal da Terracap (veja abaixo) relativo ao
primeiro trimestre do ano passado apontou “forte redução de disponibilidade de
caixa na ordem de 80% relativo ao mesmo período de 2012. Em março de 2013, a
empresa possuía apenas R$ 45 milhões de disponibilidade frente a um passivo de
R$ 929 milhões”.
Também registrou as vendas de terrenos para bancar o
estádio: “Em março de 2013, a Terracap apurou um lucro líquido de R$ 335
milhões, enquanto que no mesmo período de 2012 tinha apurado um prejuízo de R$
55 milhões. Este lucro em 2013 é fruto da fonte de venda de imóveis,
ressalta-se que esses recursos estão sendo aplicados totalmente nas obras do
Estádio Nacional de Brasília — Mané Garrincha”.
“Entretanto, como o Estádio está sendo cedido
gratuitamente para exploração pelo Governo’do Distrito Federal, não está sendo
gerada receita para recuperação deste investimento. Neste sentido, de acordo
com as práticas contáveis de avaliação a ‘valor justo’ este estádio deverá ser
baixado como perda, o que provocará um prejuízo considerável para a Terracap”,
diz o documento.
Movimentos sociais de Brasília afirmam que isso teve
impacto direto na política habitacional do DF. Reportagem da BBC Brasil publicada no
dia 29 de maio apresentou críticas do MTST (Movimento dos
Trabalhadores Sem-Teto) em relação à venda dos terrenos, por contribuir para a
especulação imobiliária local.
De acordo com a Fundação João Pinheiro, que estuda
problemas de moradia no país, o deficit habitacional no Distrito Federal atinge
16% dos domicílios, enquanto no país como um todo a taxa é de 9%.
“Nós não somos contra a Copa, somos contra a utilização do
evento para realizar uma verdadeira transferência de renda às avessas. O DF
possui hoje um déficit habitacional de mais de 200 mil famílias, mas, em vez de
usar terras públicas para isso, o governo preferiu vendê-las para a construção
do Estádio”, disse à Agência Pública Raphael Sebba, membro do Comitê Popular da
Copa, grupo que vem realizando uma série de manifestações, em todo o Brasil,
contra o desperdício de recursos públicos.
Além de administrar as terras do Distrito Federal, cabe
também à Terracap promover melhorias sociais e econômicas para a capital do
Brasil. Seu dinheiro, em última análise, deve, inclusive, ser destinado à
construção de escolas, conforme ponto destacado no próprio site da instituição:
“a Terracap repassa ao GDF os recursos financeiros necessários para a
construção de escolas públicas nas diversas regiões administrativas do Distrito
Federal”.
Superfaturamento
Mas a polêmica sobre os gastos públicos não termina por aí
em Brasília. Não bastasse o financiamento 100% público do Estádio, o TC-DF
(Tribunal de Contas do Distrito Federal) encontrou indícios de um
superfaturamento de R$ 431 milhões. As comparações também impressionam. A Arena
Grêmio, por exemplo, estádio do time gaúcho construído com capital
totalmente privado com capacidade para 60 mil pessoas, custou pouco menos de R$
500 milhões, quase três vezes menos que o Mané Garrincha, onde cabem 72 mil
espectadores.
Tribunal
de Contas do DF encontrou indícios
de superfaturamento multimilionário na construção
do Mané Garrincha. Foto: Divulgação
de superfaturamento multimilionário na construção
do Mané Garrincha. Foto: Divulgação
A Agência Pública procurou a Terracap para saber quais são
os planos de recuperar os recursos investidos no Estádio. De acordo com a
assessoria de imprensa, “a Terracap ainda não recebeu a obra “Estádio Nacional
de Mané Garrincha”, por essa razão, a construção está registrada no Balanço
Patrimonial na conta “Ativo Imobilizado”. Tão logo a obra seja entregue à Terracap,
esta será registrada no Balanço Patrimonial à conta‘Investimento’”. Em outras
palavras, a Estatal diz que assim que isso acontecer, o Estádio não será mais
contabilizado como prejuízo.
A estatal explica que o estádio está cedido ao GDF, mas
não de forma gratuita. “Pelo prazo de quatorze meses de cessão, o GDF
repassará à Terracap a importância de R$ 28 milhões”. Argumenta também
que“iniciou um estudo para identificar um modelo de negócio que melhor se
adeque ao Estádio Nacional Mané Garrincha”.
Esse desafio não é dos mais fáceis. Sem nenhum time
expressivo, até agora o estádio recebeu partidas de clubes de outros Estados,
além da promoção de eventos musicais com atrações internacionais.
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