Domingo, 19 de julho
de 2015
Do Correio da Cidadania
http://www.correiocidadania.com.br
*Escrito por Gabriel Brito e Paulo Silva Junior, da Redação
Um dos casos mais emblemáticos dentre todas as prisões
políticas presenciadas pela sociedade brasileira a partir das manifestações de
junho de 2013 é o de Rafael Braga, preso no Rio de Janeiro por portar um frasco
de pinho sol enquanto vagava pelas ruas da cidade em um dos dias de
manifestação popular. Talvez o único preso sem vinculo político com os
protestos, Rafael recebeu a maior condenação, 5 anos de reclusão. Agora que seu
caso chegou ao STF, entrevistamos João Henrique Tristão, advogado da ONG
Defensores dos Direitos Humanos, que defende Rafael.
“Malgrado à atitude
policial, podemos constatar, até pelo laudo, mesmo sob manipulação, que a
perícia aferiu ofensividade mínima do material, ou seja, forçaram a barra no
sentido de ter alguém pra Cristo. Muito em virtude de sua fragilidade e
vulnerabilidade, aliadas ao fato de ser negro, portanto, vulnerável ao sistema
penal, Rafael foi selecionado por esse sistema nefasto. De acordo com a própria
parte técnica não havia elemento pra embasar uma pena de tamanho calibre”,
explicou Tristão.
Em sua visão, o caso de Rafael Braga simboliza bem como o
Estado brasileiro “adota uma política fascista, que a todo momento e a qualquer
preço visa a manutenção do status quo”, o que explica como as reivindicações de
caráter social que marcaram diversos protestos são bloqueadas por todas as instâncias
de poder constituído.
“Constatamos, a
partir das jornadas de junho, em razão também de muitas outras manifestações,
que temos um aparato policial coordenado por um Estado que reprime e oprime o
direito de manifestação, em clara tentativa de criminalizar movimentos sociais
que reivindicam pautas sociais, sobre desigualdades raciais, entre outras”,
criticou.
A entrevista com João Henrique Tristão, realizada nos
estúdios da webrádio Central3, pode ser lida a seguir.
Correio da Cidadania: Além dos
ativistas de diversos locais processados pelas instituições de Estado após as
históricas manifestações de junho de 2013, chamou atenção o caso de Rafael
Braga, preso por portar pinho sol próximo a uma manifestação no Rio de Janeiro.
O que você tem a contar do caso e o que espera do STF, que agora tem o processo
em mãos?
João Henrique Tristão:
O caso do Rafael Braga é um dos que revelam de forma patente a seletividade sob
a qual atua o sistema penal e como é a política criminal, em especial o
judiciário, o Ministério Público e todas as agências de poder constituídas. O
Rafael, como todos sabem, é um jovem negro, pobre, que na época de sua prisão
estava em situação de rua. Foi preso num dos dias das manifestações das
jornadas de junho, próximo da avenida Presidente Vargas e da Central do Brasil,
perto de onde se recolhia. Portava materiais de limpeza, pinho sol e outro
desinfetante, e foi pinçado pela polícia que patrulhava a região. Pegaram-no e
aduziram que estava causando tumultuando, conduzindo-o à delegacia de forma
arbitrária. Posteriormente, segundo o próprio Rafael Braga relatou, apareceu um
material já manejado, depois de sua prisão, que foi introduzido no sentido de
qualificar aquilo como possível artefato explosivo, tudo à sua revelia.
Malgrado à atitude policial, podemos constatar, até pelo
laudo, mesmo sob tal manipulação, que a perícia aferiu ofensividade mínima
deste material, ou seja, forçaram a barra no sentido de ter alguém pra Cristo,
digamos assim. Muito em virtude de sua fragilidade e vulnerabilidade, aliadas
ao fato de ser negro, portanto, vulnerável ao sistema penal, Rafael foi
selecionado por esse sistema nefasto. Por isso, foi processado pelo artigo 16
do Estatuto do Desarmamento, que se refere à posse de material explosivo, e condenado
a 5 anos de reclusão, de forma totalmente arbitrária e insensível por parte da
justiça. De acordo com a própria parte técnica não havia elemento pra embasar
uma pena de tamanho calibre.
A pena, na época, foi majorada porque o juiz considerou que
ele, por estar próximo a lugar de manifestação e concentração de gente, colocou
em perigo a vida de muitas pessoas. Uma evidente incongruência, porque o
próprio laudo atesta o mínimo de potencialidade do material. Tal aspecto foi
objeto dos nossos recursos, mas a 3a Câmara Criminal do Tribunal de
Justiça do Rio de Janeiro (TJ-RJ) negou nossa apelação, reduzindo a pena em
somente quatro meses, ficando em 4 anos e 8 meses.
Entramos com recursos no STJ e STF. Todavia, é evidente que
por má vontade política com o caso e todas as circunstâncias correlatas nosso
recurso não foi admitido na 3a. Vice-presidência do TJ-RJ. Por isso,
entramos com medidas cabíveis no STJ superar tal apreciação. Não conseguimos
êxito e agora recorremos à última instância do judiciário, o STF. Atualmente, o
ministro Luiz Fux é relator de um agravo que visa superar esse óbice da
apreciação do recurso, para assim reconhecerem e apreciarem o mérito da causa
do Rafael Braga.
Correio da Cidadania: Entre os que
realmente participavam de atos políticos, há vários outros processados, como um
militante da Federação Anarquista Gaúcha e outros 23 cariocas, a exemplo de
Sininho, Igor Mendes e Eloisa Samy. Há também casos como o do fotógrafo
paulista Sergio Silva, cegado de um olho por bala de borracha, cujo inquérito
que investigava abuso policial acabou de ser arquivado. O que esses casos todos
refletem pra você, a respeito da democracia brasileira?
João Henrique Tristão:
Atualmente, vivemos uma conjuntura política muito obscura, à luz do que deveria
ser um estado democrático de direito. Constatamos, a partir das jornadas de
junho, em razão também de muitas outras manifestações, que temos um aparato
policial coordenado por um Estado que reprime e oprime o direito de
manifestação, em clara tentativa de criminalizar movimentos sociais que
reivindicam pautas sociais, sobre desigualdades raciais, entre outras.
Isso mostra a clara tentativa estatal de sufocar e inibir
quaisquer atitudes de reivindicação por parte da população. É lamentável, mas
infelizmente se adota uma política fascista, que a todo momento e a qualquer
preço visa a manutenção do status quo. Seja através da criminalização de
movimentos sociais, seja de qualquer outra forma pela qual o Estado possa
manter as coisas como estão.
Minha visão política do contexto é exatamente essa. Sobre os
23 ativistas cariocas processados também posso falar, pois o DDH atua no caso.
É um processo estapafúrdio. O MP elaborou tudo na base de ilações e
conjecturas, no sentido de que haveria vínculo estável e permanente entre todos
os ativistas, o que sabemos não ser verdade. É uma clara tentativa de
criminalizar movimentos sociais. Basta olhar a conjuntura, a forma de atuação
do Estado e a truculência da polícia pra vermos como é clara a tentativa de
sufocar qualquer suspiro em prol de um país melhor e mais justo.
Correio da Cidadania: Muitos desses
protestos tiveram relação direta com a contestação aos megaeventos esportivos e
seus gastos bilionários. Como fica o Rio de Janeiro em meio a isso, que, além
da Copa do Mundo, encerrada há um ano, ainda tem uma Olimpíada pela frente?
Como você analisa a propalada ideia do ‘legado’?
João Henrique Tristão:
Sobre a Copa do Mundo se seguiu a lógica capitalista, que nos “contemplou” com
a vinda dos megaeventos. Assim, não se pode falar muito de legado, ao menos a
partir do momento em que se investiu e concederam isenções bilionárias a uma
entidade privada que agora é alvo de investigações de corrupção, em detrimento
de serviços básicos como saúde e educação, que vivem em petição de miséria, no
Rio e nacionalmente.
Valorizou-se um evento concebido para uma determinada
classe, a dominante, poder acompanhar e usufruir de perto o suposto legado.
Isso à margem da maioria esmagadora da população, que vive sem acesso a serviços
básicos e muitas vezes em situação deplorável.
No meu entendimento não se pode falar de quaisquer legados,
nem mesmo a reforma do Maracanã. Tudo foi feito em detrimento da melhoria de
outros serviços, algo ainda mais nefasto, e não trouxe nenhuma benesse para a
população. Em relação às Olimpíadas, creio que seguimos a mesma lógica, com
seletividade de público e somente pessoas de melhores condições tendo acesso
aos eventos.
Pior: temos casos de remoções drásticas de populações que
vivem há muito tempo no entorno de alguns palcos desses grandes eventos.
Podemos citar a Vila Autódromo, marco de resistência de moradores pobres à
beira de um dos locais onde teremos Olimpíada, em constante ameaça de remoções
ilegais e arbitrárias da prefeitura. Não consigo constatar nenhum legado para a
população.
Correio da Cidadania: Você acha que as
instituições brasileiras absorveram algum recado deixado pelas ruas nesses
últimos dois anos?
João Henrique Tristão:
Infelizmente, acho que as oligarquias midiáticas, os grandes conglomerados
corporativos de mídia, foram atores no processo, de maneira que alienaram e
deturparam muitos acontecimentos e fatos, tanto das manifestações de junho como
nas que se seguiram depois.
Creio que grande parte da população ainda não compreendeu a
real essência do que tudo aquilo representou. Hoje vivemos uma conjuntura
política conservadora no Congresso Nacional. Quero muito acreditar que nada
tenha sido em vão, que muitas pessoas possam ter sido tocadas no sentido de que
o poder realmente emana do povo, que o próprio poder constituinte originário
nos outorga isso.
Malgrado todos os percalços, deturpados e dissimulados pela
grande mídia, quero acreditar que muitas pessoas possam ter se sensibilizado e
constatado algo positivo, em termos de sentimentos de protestos e mudança.
Quero acreditar que muitas pessoas tenham se sensibilizado e desenvolvido uma
nova concepção política dos fatos.
Correio da Cidadania: Como relaciona
tudo o que foi aqui conversado com esse ano político, marcado por cortes do
orçamento social, desemprego e greves? Acredita que estamos próximos de reviver
manifestações similares às de 2013?
João Henrique Tristão:
Infelizmente, tenho uma análise política bem específica. Consiste no fato de
que vivemos um momento político bastante singular, pois elegemos uma composição
ultraconservadora para o Congresso Nacional. Além disso, tivemos as notícias de
corrupção envolvendo membros do governo atual. Tudo isso gerou um oportunismo
político muito bem manipulado pela grande mídia, que acabou difundindo um
sentimento em diversas pessoas – não aquelas que se revoltaram em 2013, mas
talvez um pouco também. Tivemos em 2015 protesto mais conservador, que visa
principalmente sua própria autotutela, sua própria manutenção. Em março, tal
sentimento foi capitaneado pela população de média e alta classe média.
Creio que, analisando a conjuntura e o fenômeno, as
manifestações deste ano não podem ser confundidas com aquelas que ficaram
marcadas como jornadas de junho. Tem muito oportunismo envolvido e uma classe
média manipulada de modo a servir a senhores políticos e senhores do próprio
capital, pra tentar desvirtuar a linha de protesto inicialmente adotada, que
clamava muito mais por aspectos sociais do que pela própria manutenção de tudo,
como vimos em março desse ano, em protestos travestidos de revolta contra a
corrupção, algo totalmente genérico e sem pauta.
Evidentemente, a conjuntura atual do país potencializou e de
certa forma viabilizou a deturpação do que efetivamente ocorre, aliado, volto a
ressaltar, a um oportunismo político muito forte e uma manipulação por parte
das grandes oligarquias midiáticas.
Quanto à possibilidade de vermos retornar as pautas das
jornadas de junho, espero muito que aconteça. Espero que os atos em prol das
pautas realmente necessárias ao país – ou seja, sociais – voltem com força
total, como naqueles dias de 2013.
Leia também:
“O mais provável é o governo Dilma
se arrastando nos próximos três anos e meio” – entrevista com o deputado federal Chico Alencar
*Gabriel Brito e Paulo Silva Junior são jornalistas.