Sábado, 25 de julho de 2015
Da Auditoria Cidadã da Dívida
Rodrigo Avila – 24/7/2015
Nos últimos dias, vemos na imprensa um acalorado debate,
sobre a necessidade do país manter o “superávit” fiscal, e evitar um “déficit”,
para não “aprofundar as instabilidades” (como a alta do dólar), e tentar
“recuperar a credibilidade do país junto aos investidores internacionais”.
Devido à recessão, a arrecadação tributária se mostrou
menor que a prevista pelo governo, que por isso encaminhou ao Legislativo o
Projeto de Lei do Congresso (PLN 5/2015), que propõe reduzir o “superávit
primário” de 2015. Mas o que significa isso?
Na realidade, este é um debate rebaixado, e não mostra a
realidade das contas públicas, que sempre tiveram um déficit colossal. Porém,
pela metodologia recomendada pelo FMI, que é utilizada pelo governo e pela
grande imprensa, somente são consideradas as despesas “primárias” – ou seja, em
termos simples, os gastos sociais – enquanto os gastos com juros e amortizações
(principal) da dívida pública são simplesmente excluídos da conta.
Desta forma, compara-se, de um lado, as receitas primárias
(formadas principalmente pelos tributos, receitas de privatização e lucros das
estatais) com as despesas primárias (gastos sociais), chegando-se a um
“superávit primário” ou um “déficit primário”. Portanto, esta metodologia se
presta a culpar os gastos sociais pelo rombo nas contas públicas. Em bom
português: enquanto os gastos sociais ficam sob os holofotes, sendo tachados de
“exagerados”, os gastos com a dívida, que podem ser até maiores, ficam ocultos,
escondidos.
Se as receitas primárias são maiores que as despesas
primárias, então há o dito “superávit primário”, que é destinado ao pagamento
da dívida pública. Por esta razão, constantemente vemos também afirmações de
que se o “superávit primário” cair para zero, o país não teria como pagar a
dívida. Ou seja, fica parecendo que, sem “superávit primário”, o país então
estaria somente gastando com o social, e não com a dívida, e teria resolvido o
problema do endividamento público.
Porém, apesar do “superávit primário” do governo federal
ter sido de apenas R$ 6,6 bilhões de janeiro a maio de 2015[1], os gastos com a dívida pública federal,
no mesmo período, foram de R$ 528 bilhões, o equivalente a nada menos que
53,44% de todas as despesas federais[2]. Por que isso acontece?
Isso ocorre pois a quase totalidade destes R$ 528 bilhões
são provenientes de fontes não-primárias, ou seja, não são consideradas no
cálculo do “superávit primário”. Tais fontes podem ser: a emissão de novos
títulos da dívida; eventuais lucros do Banco Central; o recebimento de juros e
amortizações as dívidas dos estados e municípios com a União; o rendimento da
Conta Única do Tesouro; dentre outras.
Ou seja, são recursos que poderiam ser destinados para as
urgentes necessidades do povo, mas não são, pois existe uma imensa dívida
pública que, na visão de alguns, deveria ser paga sem questionamento, ainda que
jamais tenha sido auditada, conforme manda a Constituição de 1988. Conforme
comprovado por comissões do Congresso Nacional, tal dívida está repleta de
indícios de ilegalidades, como dívidas da ditadura, juros flutuantes,
estatização de dívidas privadas, “juros sobre juros” (anatocismo, vedado pela
Sumula 121 do STF), influência de banqueiros na definição das taxas de juros,
pagamentos antecipados da dívida com ágio (sobrepreço) de até 70%, dentre
muitos outros.
É evidente que somos favoráveis à redução da meta de
superávit primário, principalmente em meio à recessão, para se tentar minimizar
os cortes de gastos sociais, e não favorecer ainda mais os grandes bancos e
investidores, os principais beneficiários desta questionável dívida pública[3].
Porém, mesmo que o “superávit primário” seja reduzido, ou
anulado, ou até mesmo se torne um pequeno déficit (conforme propõe o PLN
5/2015), ainda assim, cerca da metade do orçamento continuará a ser destinado
para os pagamentos da dívida pública. E se a arrecadação cair ainda mais, o governo
continuará a fazer cortes de gastos sociais para perseguir uma determinada meta
primária. Por outro lado, os gastos com a dívida jamais são cortados. São
intocáveis. Se falta dinheiro, toma-se novos empréstimos para pagar.
Portanto, a discussão em destaque na grande imprensa e no
PLN 5/2015, sobre o valor da meta de “superávit primário”, não toca na
verdadeira questão, que é a necessidade de uma auditoria da dívida pública. Até
porque é o próprio endividamento que tem deprimido a economia, por limitar os
investimentos públicos capazes de fazer a economia crescer, com geração de
empregos.
O contra-argumento dos
neoliberais: a “rolagem” ou “refinanciamento” da dívida
Um argumento muito utilizado por analistas neoliberais é
que grande parte dos R$ 528 bilhões gastos com a dívida até maio se referem à
chamada “rolagem” ou “refinanciamento”, que representaria o pagamento do
principal da dívida com recursos obtidos por meio da emissão de novos títulos.
Segundo eles, esta parcela não deveria ser considerada, pois representaria
apenas uma mera “troca de dívida velha por nova”, sem o gasto efetivo de
recursos públicos.
Quando analisamos os dados oficiais, vemos que, de fato,
desses R$ 528 bilhões gastos com a dívida federal até maio, R$ 318,5 bilhões
são anunciados como “refinanciamento”, e apenas R$ 112 bilhões corresponderiam
a juros, e R$ 97,4 bilhões são amortizações (principal) da dívida pagos com
outras fontes de recursos, que não a emissão de novos títulos.
Porém, isso ocorre pois o Tesouro contabiliza grande
parcela dos juros (a parcela correspondente à atualização monetária da dívida)
como se fosse “rolagem”, e não divulga o montante desta parcela, abrindo espaço
para muitos analistas reduzirem o verdadeiro peso do problema da dívida.[4]
Uma rápida estimativa mostra o peso de tal artimanha
contábil: se a dívida pública interna federal se encontrava em R$ 3,301
trilhões no início do ano, e a taxa de juros média da dívida interna federal
(nos 5 primeiros meses de 2015) foi de 15,10% ao ano[5], então poderíamos dizer que o volume
esperado de juros durante os 12 meses de 2015 seria de R$ 498 bilhões, ou seja,
proporcionalmente, R$ 208 bilhões de janeiro a maio. Mas o Tesouro Nacional diz
que os juros foram de apenas R$ 112 bilhões no período.
Portanto, estimamos que, dos R$ 528 bilhões gastos com a
dívida federal até maio, apenas R$ 222,5 bilhões (e não R$ 318,5 bilhões, como
diz o Tesouro) corresponderam à tal da “rolagem”. E mesmo essa última deve ser
considerada, pois caso o governo não tivesse feito questionáveis dívidas no
passado recente (como, por exemplo, a dívida trilionária feita para comprar
dólares para as reservas internacionais[6], e para os financiamentos do BNDES[7]), os empréstimos que têm sido tomados
para a “rolagem” dessa dívida poderiam sim ser destinados para as urgentes
necessidades do país, como saúde e educação.
[1] http://www.tesouro.fazenda.gov.br/documents/10180/314885/Maio2015.zip/37938866-9917-4d53-bb67-916a7f292a64
[2] Fonte: SIAFI, por meio de Arquivo
em Access obtido junto à Consultoria de Orçamento da Câmara dos Deputados.
[3] Para maiores detalhes, ver o item
5 do texto: http://www.auditoriacidada.org.br/wp-content/uploads/2014/11/Verdades-e-mentiras-sobre-a-divida.pdf
[4] Para maiores detalhes sobre esta
manobra contábil, ver http://www.auditoriacidada.org.br/wp-content/uploads/2013/11/Parecer-ACD-1-Vers%C3%A3o-29-5-2013-com-anexos.pdf
e
[5] http://www.tesouro.fazenda.gov.br/documents/10180/450255/Anexo_RMD_Mai_2015.zip/2d7318e9-3407-45fd-95d6-d9773225685b
Quadro 4.1
[6] Muitos dizem que a formação de
quase US$ 380 bilhões em reservas internacionais seria importante para combater
as crises financeiras e a fuga de capitais. Porém, isto poderia ser feito
mediante o controle sobre o fluxo de capitais, adotado com sucesso em vários
países.
[7] O governo federal paga taxas de
juros altíssimas para obter tais recursos, e depois os empresta ao BNDES, para
que este último empreste a empresas (principalmente as grandes), com taxas de
juros muito menores. A alternativa a esta política é, claramente, a redução das
taxas de juros, e o fim dessa política de endividamento, para que o setor
financeiro privado empreste seus recursos diretamente ao setor produtivo a
juros baixos, ao invés de ficar emprestando ao governo e ganhando a Taxa Selic
ou até mais.