Imprensa é oposição. O resto é armazém de secos e molhados."

(Millôr Fernandes)

segunda-feira, 16 de março de 2020

Vírus de múltiplos desejos — o corona e o pânico

Segunda, 16 de março de 2020
Por
Pedro Augusto Pinho

O aparecimento, em 2019, na cidade de Wuhan, na República Popular da China (RPC), do corona vírus despertou, e continua nos trazendo, interpretações e desejos que têm construído sonhos e distopias.

Não pretendo aumentar o rol dos talvez ou dos quem saiba nem dos tomara ou dos oxalá. Vamos examinar as informações com credibilidade e tentar construir o cenário atual em diversos aspectos. Inegável que os vinte anos de predominância do neoliberalismo no Mundo do Atlântico levaria à grande crise econômica e social, hoje existente.

Definamos nossos termos.

Mundo Atlântico são a civilização europeia e suas colônias/ex-colônias americanas, africanas e mediterrâneas. Há quem chame mundo ocidental. Neoliberalismo é a ideologia que propugna pelo estado mínimo ou dominado integralmente pelo capital financeiro, como já o foi pelo capital industrial, ou seja, da especulação sobre os investimentos produtivos. Com isso objetiva a permanente concentração de renda reduzindo, senão eliminando, os gastos sociais.

Todo Mundo Atlântico, com graus variáveis de rigidez e sectarismo, adotou as receitas neoliberais em seus países. Isto levou a existência de paradoxos, como governos autodenominados conservadores e socialistas, trabalhistas e liberais, social democrático, republicano ou democrático a agirem rigorosamente iguais no trato da moeda, do crédito, dos juros e do câmbio. Também quanto aos salários, programas de saúde, educação, previdência e proteção ao trabalho. Enfim uma economia oposta àquela que levou nações capitalistas e socialistas a exibirem, no século XX, grandes desenvolvimentos econômicos e sociais.

Após a “crise” 2008/2010, os Estados Nacionais inundaram o mercado com recursos públicos, virtuais ou monetários, que não produziu o desaquecimento suave, mas, ao contrário, o acirrar especulativo.

A Bovespa, no Brasil estagnado, com recordes de desemprego e sem projeto de desenvolvimento, ter atingido inéditos 117.000 pontos (ganho de 31,58%, o melhor ano da década) é o sinal inequívoco que os capitais financeiros não tinham qualquer escrúpulo ou interesse na economia brasileira. Algo semelhante acontecia em todo Mundo Atlântico, variando de acordo com a cultura e o amadurecimento político dos países.

Particularmente, desde 2014, conforme artigos no Monitor Mercantil, eu venho aguardando a crise. E, com o passar do tempo, a onda se transformava em tsunami. Cada vez mais intenso e demolidor.

Este é um fato: a crise da economia financeira neoliberal no Mundo Atlântico.

Do outro lado, no que denomino Sistema Euroasiático, que engloba as Repúblicas da Federação Russa e os países asiáticos continentais e insulares, exceto o Japão, dava-se o desenvolvimento industrial crescente, principalmente por força do Projeto Multinacional da Nova Rota da Seda, que tem várias designações e, em inglês, é simplificado por One Belt One Road.

O sucesso da Nova Rota da Seda (NRS) pode ser avaliado por sua entrada na Europa, na Itália, e pelo avanço pela África, áreas do Mundo Atlântico.

De certo modo voltamos aos dois contendores da Guerra Fria, com diversas diferenças, dentre as quais se salientam o mesmo modelo econômico capitalista, ainda que apresentando nuances, como, aliás, sempre ocorreu, e a não uniformidade em ambos os lados, pelos nacionalismos europeus e pelos interesses especificamente russos.

Mas as lideranças, de todo modo, repousam nos Estados Unidos da América (EUA) e na RPC.

Este cenário encontra a Guerra Híbrida, modo de guerrear diferente das guerras frias e quentes do século passado. Não tão diferentes, mas dispondo de novas comunicações, as redes virtuais, e ampliação do campo de pesquisa bélica, também pelo desenvolvimento tecnológico e científico, guerras bacteriológicas de maior precisão. Criando-se vírus dirigidos a etnias e características específicas de genomas.

Poder-se-ia concluir que nada de novo há sob o Sol. Mas é tão verdade quanto afirmar que a luta de classe, onde hoje pouco se distingue um burguês assalariado de um operário, é o fundamento revolucionário. Nem mesmo o capital cultural, se bem analisado, vai distinguir as classes.

Repetindo um lugar comum, o diabo está nos detalhes.

Esmiudemos, portanto, estes lados.

O mundo euroasiático tende a suplantar e se firmar mais poderoso economicamente e tecnologicamente do que o atlântico. E com a população que é o dobro da ocidental. Logo, os pressupostos básicos do poder: território, população e riqueza, além do conhecimento, estarão no oriente, repetindo o período que a Europa denomina Idade Média.

Como é óbvio, os capitais financeiros que dominam o poder atlântico estão reagindo. Mas com qual eficácia é o que devemos analisar.

Tenha ou não surgido de laboratório estadunidense, nos EUA ou na Ucrânia, ou onde quer que se instale, o corona vírus derrubou as bolsas e depreciou os ativos ocidentais. Isto pode ser uma jogada ensaiada para vender caro e comprar barato. Mas, além da acumulação, que resultado se pode esperar da economia em recessão?

Só haveria resposta se o capital financeiro, administrado pelas empresas gestoras de trilhões de dólares estadunidenses, estivesse em mãos criminosas, de vendedores de drogas e traficantes de armas. Pois são drogas e armas os únicos produtos que desconhecem recessão.

No caso das armas, os governos pró-banca do Atlântico ainda serão clientes para conter, pela repressão crescente e mais violenta, as revoltas da fome e da miséria. Neste cenário, o mundo em queda é o ocidental.

As quarentenas compulsórias, verdadeiras reclusões, são o treino para repressão. Mais intenso onde há maior miséria e mais forte o sentimento nacionalista. Afinal, um dos papas do neoliberalismo, George Soros, inaugurando com doação de um bilhão de dólares estadunidenses sua “Open Society” foi claro e preciso na identificação do inimigo da banca: o nacionalismo.

Vejamos agora o cenário oriental. A grande prioridade é alimentar dois terços da população terrestre.

Sem dúvida um projeto neomalthusiano, como o da banca, encontra eco, é tentador. Mas seria necessário atingir toda Ásia. E como deixar este projeto atingir toda Ásia sem que se tenha o controle, ainda que compartilhado. E que segurança tem-se de um sócio que se sabe criminosos, assassino, não apenas pelos capitais marginais, mas pelos próprios capitais tradicionais que infestaram a China com ópio?

Portanto, a contenção populacional euroasiática, sendo um objetivo, dar-se-á por outros caminhos.

Cabe breve consideração sobre a cultura, e sua operacionalização administrativa, dos chineses, líderes nesta metade do mundo. Certo historiador numa bem construída alegoria, escreveu que os primeiros tiros das canhoneiras britânicas, no rio das Pérolas, deram início à nova história da China. Mas, além da expressão literária, há a longeva construção de uma civilização que não se apressa. Tendo ao longo de sua existência, e em diversos momentos, convivido sob outras etnias e poderes estrangeiros, a China joga com o tempo, como a Rússia jogou com o inverno no tempo das guerras de ocupação.

Desde o início do plano das “Cem Flores” (1956), com o controvertido “Grande Salto para Frente” (1958) e, em especial a “Grande Revolução Cultural Proletária” (1966), a China se torna crescentemente urbana e tecnicamente capacitada, dispensando, mesmo em período de escassez generalizada, os assessores e técnicos soviéticos (1960/1961).

A China pós Mao Tse Tung é outra China, sem abdicar da milenar cultura. Sua construção, lenta, gradual e segura (repetindo ex Presidente brasileiro), começa no fim dos anos 1970, com Deng Xiao Ping, que será também responsabilizado pelos insucessos nos anos 1980.

Até meados dos anos 1990 parecia que a China desapareceria como a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). Surgem as “Quatro Modernizações”, a expressão “socialismo de mercado” e um novo modelo de “comunismo”. Como da tradição chinesa, ritmos rápidos são desastrosos, o Projeto de Nação de hoje, vem sendo construído há quase 40 anos.

A economia ganha precedência, onde antes havia a política. A questão social se inclina à gestão. Assim não é difícil entender que não paralisar a economia também poderia ser o principal motivo da falta de medidas para conter, no início, a propagação do vírus.

Seria possível o Presidente da RPC, Xi Jin Ping, paralisar a economia de seu país por algumas semanas: ela é essencialmente uma economia de produção. Terminada a crise, colocaria todos de volta ao trabalho e os desenvolvimentos começariam: tecnológico, econômico e social.
  
Enquanto a riqueza do Mundo Atlântico é principalmente de especulação e manipulação financeira, se parar, tudo entra em colapso. A China não precisa das drogas para manter o show. Basta investir.

Um pouco como a diferença entre um carro e um patinete: quando parado, apenas o primeiro permanece em equilíbrio.

No grande circo capitalista em que vivemos, o que quer que aconteça, custe o que custar, o espetáculo deve continuar. E o corona vírus que inexplicavelmente não entrou nas prisões, apesar da promiscuidade e concentração de pessoas, dá o rumo e ritmo da repressão e do consumo de drogas.

Somos todos seus artistas de trapézio, sabedores que a inexistência da rede nos será fatal.

Pedro Augusto Pinho, avô, administrador aposentado.