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(Millôr Fernandes)

terça-feira, 31 de março de 2020

No aniversário do golpe militar, MPF oferece nova denúncia contra ex-agente da ditadura

Terça, 31 de março de 2020
Do MPF
Harry Shibata fez laudo necroscópico que omitiu sinais de tortura nos corpos de dois militantes políticos assassinados em 1973
Fotografia de acervo histórico, onde uma pessoa escreve "abaixo a ditadura" em uma parede
Foto: Kaoru / CPDoc
Manoel foi preso no dia 16 de agosto de 1973 em Recife (PE) no âmbito da Operação Guararapes, que tinha como alvo os integrantes do Partido Comunista Revolucionário (PCR) e contava com a atuação do delegado Fleury. As torturas começaram ainda a caminho da unidade do Exército na cidade, com a aplicação de choques dentro da viatura. Nos dias seguintes, o militante foi submetido a contínuos interrogatórios, durante os quais sofria agressões, queimaduras e empalamento. Os agentes chegaram a colocá-lo em um pau-de-arara (barra na qual a vítima fica com os pés e as mãos amarrados, de cabeça para baixo), usar a chamada “cadeira do dragão” (assento para a descarga de corrente elétrica por fios amarrados nas orelhas, na língua ou inseridos na uretra) e disparar tiros, tudo na busca de informações que Manoel pudesse revelar sobre a organização política.O Ministério Público Federal (MPF) denunciou o médico legista Harry Shibata por elaborar um laudo necroscópico falso para justificar o assassinato de dois militantes políticos pelos órgãos de repressão em 1973. Shibata é o único ex-agente da ditadura ainda vivo que teve envolvimento nas mortes de Manoel Lisboa de Moura e Emmanuel Bezerra dos Santos, presos e cruelmente torturados entre agosto e setembro daquele ano. O episódio teve a participação de figuras destacadas entre os oficiais responsáveis pela aniquilação de opositores do regime militar, como o delegado Sérgio Paranhos Fleury. Embora os óbitos tenham sido causados por intensas sessões de espancamento e uso de instrumentos de tortura, o laudo assinado por Shibata omitiu marcas evidentes nos corpos das vítimas e apenas endossou a versão oficial forjada na época, de que os militantes haviam sido mortos após troca de tiros com agentes das forças de segurança.

Por motivos desconhecidos, Manoel foi transferido para o Destacamento de Operações de Informação - Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi) em São Paulo, onde não se sabe se já chegou morto entre o fim de agosto e o início de setembro. Naquele mesmo período, o destacamento na capital paulista recebeu seu correligionário Emmanuel, capturado por agentes da Operação Condor, uma ação articulada entre as ditaduras sul-americanas para o extermínio de militantes de esquerda. O tratamento dispensado a ele na unidade foi igualmente brutal e o levou à morte. Durante as sessões de tortura, Emmanuel teve o pênis, os testículos, o umbigo e dedos arrancados, além de sofrer intensos sangramentos pelo uso do “colar da morte”, um sabre escaldante que os torturadores passavam em volta de seu pescoço, causando profundas queimaduras.
Manoel e Emmanuel foram alvejados com tiros para que as perfurações tornassem verossímil a versão forjada para as mortes. Os relatos oficiais, porém, contêm divergências que revelam sua falsidade. Segundo o Exército, Manoel já estava sob custódia e seria usado como isca para a detenção de Emmanuel, que teria reagido e dado início ao tiroteio no momento da abordagem no Largo de Moema, zona sul de São Paulo. Já o inquérito policial concluiu que ambos reagiram juntos a uma ordem de prisão no local, disparando contra os policiais. Recentemente, uma tenente que trabalhava no DOI-Codi confidenciou, em entrevista ao jornalista Marcelo Godoy, que tudo não havia passado de uma encenação: agentes do próprio órgão haviam simulado o episódio, com uso de balas de festim e sem a presença das vítimas.
“A versão [oficial] é claramente falsa e criada apenas para ocultar a tortura e morte das vítimas. Manoel e Emmanuel foram mortos após intensas e bárbaras torturas e no local do suposto encontro, no Largo de Moema, os agentes dos órgãos de segurança do DOI-Codi do II Exército criaram um 'teatro', com o intuito de legalizar as mortes”, destacou o procurador da República Andrey Borges de Mendonça, autor da denúncia do MPF.
Os corpos foram encaminhados ao Instituto Médico Legal (IML) com pedidos de necrópsia marcados com a letra “T”. O símbolo era um código usual entre os agentes da ditadura para identificar os considerados “terroristas”, opositores cujos restos mortais deveriam passar por uma análise diferenciada que corroborasse as versões dadas pelas autoridades para os óbitos. No caso de Manoel e Emmanuel, Harry Shibata foi um dos responsáveis pelos relatórios que indicaram como causas das mortes apenas choque hemorrágico e hemorragia interna em virtude de ferimento por arma de fogo. Nada foi dito nos documentos sobre os hematomas, as amputações e as queimaduras. Apesar de os pedidos de necrópsia conterem todos os dados pessoais das vítimas, Manoel e Emmanuel foram enterrados como indigentes no cemitério Campo Grande, na capital paulista, em caixões lacrados. Os corpos só foram encontrados e identificados em 1992.
Acusação – Esta é a 11ª denúncia do MPF contra Harry Shibata. Ele era um assíduo colaborador dos órgãos de repressão e participou da elaboração de diversos laudos necroscópicos falsos, como o do jornalista Vladimir Herzog, assassinado em 1975. O MPF quer que o médico seja condenado por falsidade ideológica e que, além da pena de prisão, a Justiça Federal determine a perda de sua aposentadoria e de outros proventos, além da devolução de medalhas e condecorações que tenha recebido por serviços prestados durante a ditadura.
O MPF ressalta que crimes como esse são imprescritíveis e impassíveis de anistia, uma vez que foram cometidos em um contexto de ataque sistemático e generalizado do Estado brasileiro contra a população civil. O número processual da denúncia é 5001756-20.2020.4.03.6181. A tramitação pode ser consultada aqui.