Imprensa é oposição. O resto é armazém de secos e molhados."

(Millôr Fernandes)

sexta-feira, 20 de novembro de 2020

O Canhoto, jornal do Gama (DF), edição de novembro de 2020

 Sexta, 20 de novembro de 2020


Leia o editorial do jornal O Canhoto, edição de novembro de 2020

EDITORIAL

Na capoeira, a gente tem uma expressão significativa para se referir àquelas pessoas que têm algo em si, uma energia, uma qualidade diferente que vai muito além da técnica. Sabe aquela pessoa que quando toca um instrumento, ou canta uma música, faz de um jeito tão único, tão cheio de vida, com uma energia tão forte que te emociona profundamente? Pois é, essa pessoa a gente diz que “tem dendê”! Isso não se aprende em livros, vídeos, cursos. Isso se adquire com a experiência, com troca, com contato, afeto, com a entrega orgânica de si, de uma forma tão humanamente imbricada ao cotidiano que parece quase natural. Um dom, vão dizer. Clementina tem dendê, Chico César tem dendê, Mestre Moa tem dendê.

A modernidade (e quando falo modernidade digo em sentido histórico, a era inaugurada com o colonialismo e suas invasões) nos empurra, até hoje, sua racionalidade fria, técnica, burocrática, e tenta substituir tudo que é humano - e, portanto, complexo, contraditório, dialético, intenso, amoroso, lento - pela desumanização dos meios, das relações, dos valores - tornando tudo dicotômico e binário, ligeiro, simplista travestido de prático. Trocando o toque pelo touch. E apesar da insistência, continuamos encontrando resistência.

E é justamente essa força primordial, ancestral, a fonte do dendê. É por querer manter vivo algo que se quer morto, esquecido, substituído, que os povos pretos têm dendê. O 20 de novembro é o dia da Consciência Negra, dia em que Zumbi dos Palmares foi assassinado e virou semente, o símbolo de resistência ao aniquilamento da humanidade. Digo Humanidade porque quando se derrubam corpos são nas ideias que estão mirando, noutras formas de pensar, ser, sentir e existir. Resistimos nós, resistimos os pretos, os indígenas, os povos tradicionais, as mulheres, feiticeiras e sabedoras da natureza. Em todas as partes do planeta, por onde passou e passa a sanha colonialista e neocolonialista, o povo resiste. Em todos os cantos que a racionalidade técnica se impõe, o povo mostra seu dendê. Por isso a cultura de todo mundo diaspórico é tão linda. Por isso o samba é lindo.

O jazz é lindo. A capoeira é linda. As macumbas são lindas. O blues é lindo. Por isso nossa comida é mais saborosa. Porque tem gosto de tradição e cheiro que não se sente por telas. É porque tem dendê.

Em homenagem aos nossos ancestrais, em homenagem aos homens e mulheres arrancados de suas terras, que ergueram esse país e venceram a guerra travada contra suas existências perpetuando suas almas dentro de cada aspecto da nossa cultura, O Canhoto desse mês trouxe referências periféricas daqui e doutros lugares não apenas para lamentar com nosso canto alegre as dores e lutas. Estamos vivos em busca de nossas referências de hoje e sempre.

Além das contribuições que vocês agora poderão ler, tomamos a liberdade de deixar com leitores e leitoras um vídeo de Mestre Moa do Katendê, cantando a Exu, pedindo a paz. Em seguida, outro vídeo mostrando o dendê do blues rasgando a formalidade erudita. De chorar de tão lindo. O povo preto vivendo o que viveu, vivendo o que vive, foi e é capaz de construir os maiores monumentos culturais e políticos da história da humanidade, imaginem esse povo livre!

Aproveitem! Axé pra todos nós.

https://www.youtube.com/watch?v=ESnbcdMpYIo

https://www.youtube.com/watch?v=EC8_zcGEZjc


Confira abaixo a íntegra do jornal O Canhoto, edição de novembro de 2020.