Imprensa é oposição. O resto é armazém de secos e molhados."

(Millôr Fernandes)

domingo, 21 de agosto de 2022

“Um dia, as mulheres do Afeganistão contarão minha história”

Domingo, 21 de agosto de 2022
ONU Mulheres/Olguta Anghel —Mahbouba Seraj, uma das ativistas dos direitos das mulheres mais proeminentes do mundo, em uma reunião em Cabul com a ONU Mulheres sobre a implementação de uma resposta centrada nas mulheres à crise humanitária

“Um dia, as mulheres do Afeganistão contarão minha história”

ONU News
20 agosto 2022

Mahbouba Seraj é uma das maiores ativistas de direitos das mulheres no mundo e escreve artigo falando dos retrocessos em direitos desde o retorno do Talibã ao poder; ela escolheu permanecer no Afeganistão para testemunhar o que está acontecendo e encorajar outras mulheres a resistir; para ela, tudo passa, e essa fase vai acabar, um dia.

“As primeiras noites e os primeiros dias foram particularmente horríveis. O Afeganistão estava se tornando um caos com pessoas correndo em todas as partes, escritórios se fechando e tudo aquilo ali acontecendo na frente dos meus olhos.

Em 24 horas, a democracia pela qual trabalhamos por mais de 20 anos desabou. Meu primeiro pensamento foi: o que vai acontecer com as mulheres do Afeganistão? O que vamos fazer?

Este foi o dia em que as mulheres afegãs começaram a se tornar ‘não-humanas’, o dia em que todos nós soubemos que não haveria mais lugar para os direitos femininos no país.

Eu decidi que minha presença daria força a eles, por isso decidi ficar. Eu decidi que não serei refugiada de novo.

Eu fui forçada a deixar meu país, antes, em 1978. Era jovem, tinha muita energia e queria ficar no Afeganistão. Mas, por causa das forças que tomaram o poder, eu tive que partir.

Desta vez, foi diferente, agora eu sou uma cidadã afegã e americana. Eu senti que não era a hora de deixar o Afeganistão, deixar minas irmãs e todos que eu amo e com os quais me importo.

Eu sabia que eles não tinham mais nada. Eu decidi que minha presença daria força a eles, por isso decidi ficar. Eu decidi que não serei refugiada de novo.

‘Isto vai passar’

Na minha vida, sempre quis ser uma testemunha. E muito da história do Afeganistão ocorreu na frente dos meus olhos. Eu tenho 74 anos. Já vi beleza e desastres, conquistas e destruição e muita coisa no meio de tudo isso. Eu quis ficar e lembrar a todos que, como tudo na história, isso também vai passar.

A vida das mulheres no Afeganistão deu uma guinada de 180 graus. Com o desaparecimento da democracia pela qual trabalhamos tão duramente, sumiu também o trabalho que fizemos como mulheres afegãs. As mulheres foram da existência como ser parte de uma sociedade, trabalhar, ser parte de todos os aspectos da vida como médicas, juízas, enfermeiras, engenheiras, políticas para nada. Tudo que elas tinham, até mesmo o direito mais básico de frequentar uma escola secundária, foi tirado delas. Para mim, isso é uma indicação de que eles não querem que a gente exista

Nossos irmãos não estão nos ajudando. Nós fomos deixadas sozinhas e o que está ocorrendo é que estamos nos tornando extintas.
‘Nós existimos e estamos aqui’

As mulheres afegãs estão entre as mulheres mais fortes e com mais recursos do mundo. Sua resiliência é inquebrável. Mas para isso, foi feito muito trabalho e cada vez, a gente precisa começar do zero. Isso sim, nos está matando. Mas temos que fazer o que tem que ser feito e vamos fazer tudo de novo.

Pelo simples fato de que eles não querem que existamos, não significa que iremos parar. Faremos o que estiver em nosso alcance e temos o mundo ao nosso lado. O mundo não quer desistir de nós.

Estamos recebendo ajuda da ONU Mulheres que me apoia a manter um centro em Cabul, por exemplo. A mulher afegã na diáspora está ajudando e nossas amigas ao redor do mundo também.


Cada mulher no Afeganistão está fazendo algo extraordinário só pelo fato de conseguir estar viva, alimentando sua família e mantendo a esperança de que um dia, talvez, as coisas darão certo para elas.

Cada mulher no Afeganistão está fazendo algo extraordinário só pelo fato de conseguir estar viva, alimentando sua família e mantendo a esperança de que um dia, talvez, as coisas darão certo para elas. Eu fico impressionada com cada mulher afegã: aquelas dentro do país e aquelas que estão fora do Afeganistão com os corações partidos, chorando dia e norte ao ver o trabalho, tudo que construíram, e aquilo pelo que ainda lutam sendo desmantelado dia após dia.

Eu fico impressionada com cada mulher afegã: aquelas dentro do país e aquelas que estão fora do Afeganistão com os corações partidos, chorando dia e norte ao ver o trabalho, tudo que construíram, e aquilo pelo que ainda lutam sendo desmantelado dia após dia.

O mundo tem que olhar para nós mulheres do Afeganistão não como cidadãs de segunda classe. Nós somos mulheres de um país que sofreu uma série de erros. O mundo nos conhece. Pelos últimos 20 anos, nós provamos ao mundo quem somos. Ajudem-nos a nos levantar de novo, aquelas de nós que estamos alçando nossas vezes, nos ajudem a nos colocar de pé.

Já as que não podem mais viver aqui, ajudem-nas a sair para que se possam levantar fora de seu país. O mundo não deve pensar que nos estão dando migalhas, coloquem-se ao nosso lado, por detrás de nós, e vejam o que poderemos fazer.

Deem-nos o respeito que merecemos

Nós somos a esperança, nós somos o poder que mantém o Afeganistão vivo. O mundo deve nos dar o respeito que realmente merecemos. Nós estamos estirando nossas mãos e pedindo que nos ajudem.

Houve momentos em que o mundo esteve em lugares sombrios e ruins, e nós pensávamos que o sol jamais se poria de novo. Mas nada dura para sempre, nisso eu creio com todo meu coração. Eu tenho esperança. Tenho que ter. Eu tenho muita esperança num Afeganistão melhor, um Afeganistão que pertença ao seu povo, a todos nós.

Existe um ponto que quero deixar muito claro: o que está ocorrendo com as mulheres do Afeganistão pode acontecer em qualquer lugar. Roe v. Wade destruiu anos de progresso acabando com o direito que as mulheres tinham sobre o seu próprio corpo. O direito das mulheres sendo tirado delas está acontecendo em todos os lugares, e se nós não tivermos cuidado, acontecerá a todas as mulheres em todo o mundo.

Um dia, eu não estarei mais aqui, mas minha esperança para o mundo é de que mulheres jovens e corajosas ao redor do globo contarão minha história e de que elas criarão gerações e gerações de mulheres para alçarem suas vozes, como eu fiz, durante séculos.”