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(Millôr Fernandes)

sábado, 27 de agosto de 2022

DESCALABRO NO DF — Após morrer na fila do Cras, Janaína Nunes ainda levou uma semana para ser sepultada

Sábado, 27 de agosto de 2022

Janaína Nunes (esquerda) ao lado de Iomar Torres: mais de 10 anos de união interrompida durante espera por atendimento na assistência social - Arquivo Pessoal

Descaso se seguiu mesmo após vítima perder a vida enquanto buscava assistência social do governo do DF

Redação
Brasil de Fato | Brasília (DF)

Iomar Torres, de 61 anos, afirma que ainda está "tentando concatenar as ideias" após a morte trágica de sua companheira de mais de uma década, Janaína Nunes, que perdeu a vida enquanto aguardava, de forma humilhante, atendimento na fila do Centro de Referência em Assistência Social (Cras) do Paranoá, região administrativa do Distrito Federal.

O trágico incidente ocorreu na madrugada do último dia 17 de agosto e gerou grande repercussão na imprensa. Isso porque foi o ápice de uma crise que se arrasta há meses, em que cenas lamentáveis de pessoas esperando a madrugada para serem atendidas se tornaram quase diárias.

Unidade pública de assistência social, o Cras se destina ao atendimento de famílias e indivíduos em situação de vulnerabilidade e risco social. Entre os serviços mais demandados pela população, está a inscrição ou atualização no Cadastro Único (CadÚnico), que é a porta de entrada para o recebimento de benefícios sociais, como Auxílio Brasil, cartão Prato Cheio, Benefício de Prestação Continuada (BPC), entre outros.

Fila na unidade do Cras no Itapoã: espera para atendimento na assistência social é de cerca de 200 mil pessoas no Distrito Federal atualmente / Reprodução/TV Globo

"Eu espero que outras Janaínas não morram em busca de um benefício que é um direito constitucional. O que está acontecendo no DF é muito descaso, é desumano, humilhante demais passar por isso e ainda eventualmente receber um não", diz Iomar, em entrevista ao Brasil de Fato.

O corpo de Janaína Nunes, que tinha 44 anos, só pôde ser sepultado na última quarta-feira (24), exatamente uma semana após sua morte. Uma sucessão de humilhações se seguiu mesmo após o óbito ter sido constatado no Hospital Regional do Paranoá, para onde ela foi levada de carro pela própria companheira, após passar mal na fila, mesmo depois de ter tentado chamar o Corpo de Bombeiros e o Samu.


"Depois que Janaína morreu, e seu corpo permaneceu no hospital aguardando retirada, nós voltamos à fila do Cras e informamos às pessoas que estavam lá quando ela começou a passar mal. Foi uma revolta grande, queriam invadir a sede do centro. Deixaram a gente ser o primeiro da fila para ser atendido, e eu fui no lugar de Janaína pra tentar ver se pelo menos conseguiríamos algum apoio para o enterro. Como pela manhã o caso já estava na imprensa, a assistência social me ofereceu apenas uma cova pública e a urna pra o sepultamento, sem serviço funerário, sem velório, sem nada. Além disso, como eles não tem serviço funerária, e pelo tempo que o corpo ficou, mais de 24h, o caixão ficaria lacrado. Janaína já tinha passado por toda essa humilhação e eu não poderia aceitar mais essa humilhação, e fomos atrás de dar um um velório digno vamos dar para ela", relata.

Por meio de uma vaquinha entre amigos e conhecidos, além da solidariedade da família de uma amiga, que ofereceu espaço num jazigo no cemitério de Taguatinga, Janaína conseguiu ser sepultada com dignidade, com um serviço funerário e realização de velório e presença de pessoas que compartilharam a vida com ela.

Preconceito e burocracia

Sem parentes no Distrito Federal, já que a mãe morreu em 2012, Janaína só tinha Iomar como sua família. Elas não tinham relacionamento formalizado como união estável e esse foi o entrave alegado pelo Instituo Médico Legal (IML) para atrasar em vários dias a liberação de seu corpo para o enterro.

"Tive que entrar com medida judicial, indicar testemunhas, porque não tinha o documento hábil para liberação do corpo. Não passa pela cabeça da gente que isso vá acontecer na nossa vida. Enfrentei uma labuta esses dias, que pareciam intermináveis", conta, emocionada.

"Janaína Nunes Araújo morreu na fila do Cras do Paranoá há nove dias. Janaína tinha família. O nome da esposa dela é Iomar. Mas a violência do Estado, além de levar Janaína à morte enquanto lutava por um benefício social, na humilhação que se tornou a fila do Cras, aumentou o sofrimento de Iomar, ao recusar reconhecê-la como família para que o IML liberasse o corpo. A missa de sétimo dia já estava marcada, mas até o direito ao luto foi violado. O nome disso é lesbofobia. Nossas famílias existem! O corpo foi liberado e sepultado, mas ainda assim precisamos repetir: nossas famílias existem", afirmou ao Brasil de Fato a cientista política e ativista lésbica Talita Victor.

Depressão e desespero

Iomar conta que, antes da fatídica madrugada do dia 17 de agosto, Janaína e ela haviam estado por oito dias seguidos na porta do Cras em busca de atendimento. Janaína estava há quatro anos sem emprego e sofria de um caso grave de depressão, além de outras morbidades de saúde. "Ela se sentia muito triste de não ter renda e queria obter o BPC, um benefício previdenciário do governo federal para pessoas vulneráveis, pois essa situação agravava a depressão dela. Só que, para isso, precisava passar pela assistência social", relata.

Para conseguir atendimento no dia seguinte, os usurários do Cras formavam uma fila já no final da tarde do dia anterior, por volta das 17h30. "Levamos cadeira, manta, comida. O banheiro do Cras não ficava disponível, então as pessoas tinham que ir fazer suas necessidades em um lugar improvisado. Tudo muito humilhante"

Por volta das 4h da manhã, após ouvir relatos de pessoas na fila sobre assaltos e arrastões que estariam ocorrendo na fila do Cras, Janaína entrou em desespero. Foi amparada pela companheira, que a levou para o carro. Nesse momento, Janaína começou a passar mal e caiu entre os bancos do motorista e passageiro do carro de Iomar. Pessoas que estavam próximas tentaram chamar socorro, que não veio. Iomar então decidiu levá-la de carro ao hospital.

Prontamente atendida, Iomar foi levada para a sala de emergência, mas entrou em parada cardíaca e não resistiu. Ao receber a notícia que ninguém quer ouvir da médica, Iomar Torres entrou em desespero. "Eu disse que não acreditava, que ela chegou respirando ao hospital. Pedi para ver o corpo dela, só assim pude acreditar que ela tinha morrido".

Precisou de uma tragédia

Iomar conta que o Cras do Paranoá não costumava ter atendimento às sextas-feiras. Normalmente, quem queria ser atendido na segunda tinha que ficar na fila já a partir da sexta e ao longo de todo o final de semana. "De repente, na semana que Janaína morreu, o Cras abriu 34 vagas na sexta-feira, o que não acontecia. Soube agora que 48 bombeiros estão sendo treinados para dar suporte na assistência social. Eu pergunto: por que não fizeram isso antes? Precisou a Janaína morrer, e espero que outras não morram, para que alguma coisa mínima fosse feita", protesta.

A Comissão de Direitos Humanos (CDH) da Câmara Legislativa do Distrito Federal (CLDF), presidida pelo deputado distrital Fábio Félix (PSOL) emitiu ofício à Secretaria de Desenvolvimento Social (Sedes) cobrando a adoção de estudos e medidas para ampliar o serviço de atendimento, o mais demandado pela população nos Cras.

O Ministério Público do DF e Territórios (MPDFT) também acompanha a situação da assistência social no DF e atualmente analisa um plano emergencial apresentado pela Sedes ainda no fim de julho.


Edição: Flávia Quirino