Imprensa é oposição. O resto é armazém de secos e molhados."

(Millôr Fernandes)

sábado, 22 de outubro de 2022

Eu gostaria de compartilhar uma experiência que tive no final de semana passado.

Sábado, 22 de outubro de 2022

Eu gostaria de compartilhar uma experiência que tive no final de semana passado.

Ruan Ricthelly*

Fui em uma Gira em um Terreiro pela primeira vez na vida, como um exercício de pesquisa passado por meus dois diretores de teatro, com o propósito de vivenciarmos algo importante para o espetáculo que estamos trabalhando há quase um ano.

Não sou do teatro, embora o ame desde de sempre, uma parte de mim sempre desejou entrar nesse universo, e o Universo parece ter ouvido e atendido esse desejo oculto, de modo que, do nada um diretor que sempre admirei chegou em mim um dia e fez um convite que aceitei prontamente.

"Quero te convidar para participar de um espetáculo inspirado no Grande Sertão Veredas de João Guimarães Rosa!"

"Bora!"

Aceitei sem nunca ter lido a obra, com um conhecimento inexistente de Guimarães Rosa ou sobre o próprio teatro em si, só aceitei, e desde então estamos envolvidos nesse processo.

Já fui muitas coisas nessa vida, e ter sido o jagunço Riobaldo é algo que entrará pro meu currículo de vida.

E sábado passado, eu e outros atores fomos nesse Terreiro na zona rural do Paranoá. E já me chamou a atenção essa marginalização dos cultos de matriz africana, longe dos centros urbanos, quase que escondidos como os quilombos eram, para não "incomodar", enquanto igrejas evangélicas e católicas existem aos montes, havendo setores inteiros de uma única cidade dedicados a alojá-las.

O som dos batuques quebrava o silêncio daquele lugar ermo entre o Cerrado e os morros, e uma parte de mim vibrava ao ouvi-lo.

Ao chegar na entrada chamava a atenção um exército de crianças brincando descalças pelos barrancos, pessoas de branco, turbantes, batas, colares e patuás.

Simplesmente fomos entrando e nos posicionando onde fosse possível, observando cada detalhe, absorvendo aquele ambiente e aquela energia.

Eu estava encostado num canto calado e observando em silêncio, até que um espírito de um boaiadeiro com uma caneca de cerveja na mão me olhou e disse:

"Tu é porteiro por acaso?! Pra ficar aí parado? Vai comer alguma coisa e toma um gole de cerveja!" — me oferecendo a sua caneca, que bebi sorrindo.

"Obrigado!"

Foto: Juan Ricthelly


Depois de um tempo, relaxei e comecei a me sentir mais a vontade, e isso me trouxe algumas reflexões sobre aquele momento.

Aquela expressão de espiritualidade era algo completamente distinto do que eu havia vivenciado ao longo de 31 anos, pois nasci em um berço católico, onde a ritualística determina que todos fiquem sentados, quietos e prestando atenção em cada palavra proferida pelo padre, levantando, sentando, cantando ou se ajoelhando nos momentos estabelecidos para isso.

E lá no Terreiro não! O batuque ininterrupto e constante dos tambores impunha outro ritmo, onde pessoas dançavam, cantavam, comiam, bebiam, conversavam e caminhavam pelo espaço da forma que queriam ou se sentiam confortáveis. Todo mundo que estava ali, era parte daquela totalidade.

Em um dado momento um grupo de Maracatu composto por mulheres chegou de forma imponente, momento em que os atabaques se silenciaram em respeito, para logo em seguida se juntarem num dueto de ritmos e sons que foram se combinando, até virar uma coisa só.

E ali naquele instante, não consegui não refletir sobre como era surpreendente que algo tão atacado ao longo da história conseguisse ser tão potente, vivo e pulsante, depois da diáspora africana, de três séculos de escravidão, colonização religiosa, violência e repressão de uma sociedade que teve durante um longo período o catolicismo como religião oficial, tendo até hoje o cristianismo a simpatia do Estado e suas instituições, apesar da laicidade formalmente prevista na Constituição Federal.

E mesmo depois de tudo isso, os Terreiros e cultos de matriz africana seguem vivos, existindo e resistindo, como algo que sobreviveu à séculos de opressão. E isso é inegavelmente mérito da resistência espiritual de um povo, que mesmo longe de sua terra, sofrendo todas as formas de violência e silenciamentos, seguiu amando suas divindades, não abrindo mão de sua maneira de enxergar o mundo, a vida e a própria existência humana, com fortes raízes ancestrais e conexão profunda com a natureza e as suas forças.

Aquele cenário, aquelas pessoas, aqueles sons, aquela energia e o conjunto de tudo o que lá estava, foi a coisa mais brasileira que eu vivi na minha vida, e por mais ateu que eu seja, por mais que aquela fosse a minha primeira vez em um Terreiro, algo em mim se sentiu em casa, como se eu tivesse vivido aquilo sei lá quantas vezes ao longo dos séculos.

Eu vi e senti as raízes da cultura popular brasileira, em cada batucada e ritmo dos atabaques, o Terreiro e a sua musicalidade é o pai e a mãe do Samba e seus gêneros derivados como o pagode, o axé, a Bossa Nova que tanto amo, a MPB e o Funk que não curto, mas respeito como expressão cultural.

Também não pude deixar de recordar sobre como ao longo da minha formação, me foi transmitida a ideia preconceituosa e equivocada de que os cultos de matriz africana possuíam relação direta com o diabo e coisas malignas, e do prejuízo que isso me causou, me privando de conhecer um dos aspectos estruturantes da minha cultura, história e raízes ancestrais.

Hoje depois de todo o caminho de desilusão e frustração espiritual que percorri, não tenho mais paciência ou disposição para frequentar qualquer culto religioso com a constância, compromisso e regularidade que normalmente exigem, é como se o meu espírito tivesse sido tão agredido que não consigo mais me abrir para nada, de modo que sou ateu convicto, sem qualquer disposição de mudar esse status.

E curiosamente sou um ateu que ama frequentar igrejas para admirar arte sacra, sua arquitetura e história, que tem uma parte da biblioteca particular totalmente dedicada à espiritualidade, que conhece a Bíblia e outros 'livros sagrados', que ama cantar Os Tincoãs e os Afro-Sambas de Vinícius de Moraes e Baden Powell, que admira e reconhece a força dos cultos de matriz africana, que vez ou outra gosta de tomar ayuasca, frequenta missas de sétimo dia, casamentos e batizados de pessoas queridas, e que mesmo sem acreditar em uma única palavra proferida, é capaz de levantar, pegar na mão das pessoas e orar/rezar com elas, para que não se sintam sozinhas... E agora posso dizer também que gosto de uma 'macumba'.

E antes que alguém pergunte nos comentários: Mas você não acredita em nada?

Não importa no quê eu acredito, importa o que eu amo. E eu amo a Humanidade, a Natureza e a Vida! Sem mais!


Juan Ricthelly

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Juan Ricthelly é advogado, ambientalista, guerreiro das lutas populares do Gama, membro da Mesa Mediadora do Fórum Comunitário do Gama. 

O Blog Gama Livre posta a seguir um vídeo de Os Tincoãs, isso em razão do autor do artigo acima ter se referido a este conjunto que tanto fez sucesso na Bahia e na África. Cantando com suas músicas lindas e que expressam a alma da Mãe África e da minha Mãe Bahia (esta, mãe do editor do Blog Gama Livre).

Os Tincoãs — Obaluaê