Imprensa é oposição. O resto é armazém de secos e molhados."

(Millôr Fernandes)

terça-feira, 11 de outubro de 2022

A dama que atravessou três séculos




Outubro
11

A dama que atravessou três séculos

    Alice nasceu escrava, em 1686, e escrava viveu cento e dezesseis anos.
  
 Quando morreu, em 1802, morreu com ela uma parte da memória dos africanos na América. Alice não sabia ler nem escrever, mas estava toda cheia de vozes que contavam e cantavam lendas vindas de longe e também histórias vividas de perto. Algumas dessas histórias vinham dos escravos que ela ajudava a fugir.

    Aos noventa anos, ficou cega.

    Aos cento e dois, recuperou a visão: 

    —Foi Deus – disse.

   —Ele não podia me falhar.

   Era chamada de Alice do Ferry Dunks. Ao serviço de seu dono, serviço no ferry que levava e trazia passageiros pelo rio Delaware.

   Quando os passageiros, sempre brancos, debochavam daquela velha velhíssima, ela os abandonava na outra margem do rio. Eles a chamavam aos gritos, mas não tinha jeito. Era surda a que havia sido cega.

Eduardo Galeano, no livro “Os filhos dos dias”,
2ª edição, folha 323, L&PM Editores.