Sexta, 20 de junho de 2014
Malcon X comparou, certa vez, os negros que defendiam a
integração na sociedade norte americana com escravos da casa. Para defender
suas pequenas posições de acomodação na ordem escravista, buscavam imitar seus
senhores, copiar seus maneirismos, usar suas roupas, sua linguagem, adotando o
nome da família de seus senhores, daí o X no lugar do sobrenome do
revolucionário norte americano.
Não é de se estranhar que os escravos da Casa Grande se
incomodassem com as revoltas vindas da Senzala, pois poderiam atrapalhar sua
instável acomodação, sua sobrevivência subserviente.
Dois textos recentes me chamam a atenção, não sei se
produzidos pela mesma pena, mas certamente movidos pelo mesmo ódio e desprezo
contra a esquerda em nosso país. Um deles é de autoria do sociólogo Emir Sader neste
blog (Não é a Copa, imbecil, são as eleições), que recentemente comparou os
manifestantes à cachorros vira-lata, outro é o editorial do Brasil de Fato
(03/06/2014) que não contente
em se aliar ao campo de apoio à Dilma abriu as baterias contra a esquerda,
aquela mesma que em muitas situações apoiou este jornal, não apenas nas
campanhas para sua sustentação, mas participando de seu conselho editorial e
apoiando nos momentos mais difíceis.
Tanto o sociólogo como o jornal tem o direito de apoiar
quem quiser, emitir suas opiniões, mas o que nos chama a atenção é a
necessidade de atacar a esquerda e a forma deste ataque. Como em todo o debate
que busca fugir do mérito da questão, talvez pela dificuldade em realizar o
debate neste campo, se lança mão de estigmas. É preciso caracterizar o oponente
como “esquerdista”, “minorias”, “intelectuais vacilantes da academia”, ou mais
diretamente: “imbecis”.
Por vezes devemos aceitar o debate não pela qualidade dos
argumentos ou a seriedade dos adversários, mas em respeito àqueles que poderiam
se beneficiar do bom debate. Para isso temos que supor que o debate é sério e
que há uma questão de fundo, ainda que para isso tenhamos que separar uma
grossa camada de retórica que visa desqualificar o debate para não enfrentá-lo.
O argumento central da posição expressa nos textos
citados, mas explícita e de forma mais clara no editorial do Brasil de Fato,
poderia ser assim resumida: os governistas teriam uma “visão ampla da luta de
classes”, que articularia três dimensões – a luta social, a ideológica e a
institucional – atuando com “firmeza ideológica e flexibilidade tática”;
enquanto os supostos esquerdistas “ignoram a correlação de forças” no Brasil e
na America Latina e concentram muito mais nas criticas do que nas realizações dos
governos “populares”, isso porque subordinam suas posições, como “vacilantes
intelectuais da academia” ou partidos “sem o mínimo peso eleitoral”, não a uma
análise concreta de uma situação concreta, mas a uma “fidelidade” ao marxismo
ortodoxo.
O resultado desta premissa, segundo a posição expressa, é
o seguinte:
Por isso, para serem condizentes com uma análise concreta
de uma situação concreta, os partidos de esquerda sem o mínimo de peso
eleitoral, que não conseguem enraizar sua mensagem programática e nem
contribuir para o avanço da consciência de classe das massas populares durante
as eleições deveriam estar fortalecendo a candidatura de Dilma, mesmo sabendo que o neodesenvolvimentismo em curso
não é uma alternativa popular.
Mesmo na posição de um “vacilante intelectual do mundo
acadêmico, fiel ao marxismo e de um partido sem peso eleitoral”, gostaria de
iniciar o debate afirmando que nossos colegas deveriam seguir, antes de mais
nada seus conselhos. Se não vejamos. O erro do “esquerdismo”, que o impediria
de realizar uma análise concreta de uma situação concreta, é que “não conseguem
identificar frações de classes e seus diversos interesses em torno do governo
Dilma”.
Então vamos lá. Quais são as classes e frações de classe
que se somam aos governos do PT? O PT produziu-se como experiência histórica da
classe trabalhadora que acabou por projetar-se numa organização política que,
sem perder a referencia passiva desta classe, assumiu posturas políticas que se
distanciam dos objetivos históricos dos trabalhadores. Não se trata de uma
questão de origem de classe, mas do caráter de classe da proposta política
apresentada em nome dos trabalhadores.
É preciso explicar aos leitores que nós (intelectuais
vacilantes fieis ao marxismo) não concebemos a classe social como mera posição
nas relações sociais de produção e formas de propriedade, mas como uma síntese
de determinações que partindo da posição econômica, devem se somar a ação
política, a consciência de classe e outros aspectos. Dessa forma um setor da
classe trabalhadora, ainda que partindo originalmente deste pertencimento, pode
em sua ação política e na sua intencionalidade, afirmar outro projeto
societário que não aquele que nossa experiência histórica constitui como meta –
o socialismo –, sendo capturado pela hegemonia burguesa, naquilo que Gramsci
chamou de “transformismo”.
No caso do PT acaba por se consolidar um projeto que tem
por principal característica quebrar as reivindicações sociais do proletariado
e dar a elas uma feição democrática; despir as formas puramente políticas das
reivindicações da pequena burguesia e apresentá-las como socialistas, e tudo
isso para exigir instituições democráticas republicanas como “meio não de
acabar com os dois extremos, o capital e o trabalho assalariado, mas de enfraquecer
seu antagonismo e transformá-lo em harmonia” (Marx, 18 Brumário, p. 226-227).
Assim o PT em seu projeto (e prática) de governo apresenta
em nome da classe trabalhadora um projeto pequeno burguês. Mas o PT não governa
sozinho, tem razão nossos colegas, é necessário seguir nossa análise para
responder quais classes e setores de classe compõe o governo Dilma. Como o
centro do projeto político foi deslocado para chegar ao governo federal e lá se
manter, são necessárias alianças e até mesmo o programa de reformas
democrático- populares é por demais amplo (seria o que André Singer chama de
“reformismo forte”), então, rebaixa-se o programa (um “reformismo fraco”) e
amplia-se as alianças. Para qual direção?
Não podemos confundir a sopa de letrinhas do leque de
alternativas partidárias com segmentos de classe, mas eles são um indicador das
personificações desses interesses. As alianças inicialmente pensadas como um
leque entorno da classe trabalhadora, setores médios e pequenos empresários, se
amplia bastante agora no quadro de um Pacto Social. Vejamos:
Um novo contrato social, em defesa das mudanças
estruturais para o país, exige o apoio de amplas forças sociais que dêem
suporte ao Estado-nação. As mudanças estruturais estão todas dirigidas a
promover uma ampla inclusão social – portanto distribuir renda, riqueza, poder
e cultura. Os grandes rentistas e especuladores serão atingidos diretamente
pelas políticas distributivistas e, nestas condições, não se beneficiarão do
novo contrato social. Já os empresários produtivos de qualquer porte
estarão contemplados com a ampliação do mercado de consumo de massas e com a
desarticulação da lógica financeira e especulativa que caracteriza o atual
modelo econômico. Crescer a partir do mercado interno significa dar
previsibilidade para o capital produtivo.1
Este pacto social com “empresários produtivos de qualquer
porte” não deixaria de fora nem mesmo os “rentistas”, como se comprovou. A
chamada governabilidade exigiria que as personificações partidárias destes
interesses estivessem na sustentação do governo, de forma que o governo de
“centro” (pequeno burguês) buscou e conseguiu se aliar com siglas da direita
(PMDB, PTB, PP, PSC e outras). Na composição física do governo vemos setores de
classes diretamente representados, como o caso dos interesses dos grandes
monopólios no Ministérios da Indústria, dos bancos no Banco Central, do
agronegógio no Ministério da Agricultura, assim como o controle das agências
reguladores e outros espaços formais e informais de definição da política
governamental.
Evidente que haverá participação dos “trabalhadores”, mas
há aqui uma diferença essencial. Enquanto os setores do grande capital
monopolistas levam suas demandas à política de governo e as efetivam, as
demandas dos trabalhadores são, por assim dizer, filtradas. Enquanto a CUT defendia
suas resoluções em defesa da previdência pública, um ex-presidente da entidade
assume o ministério para implementar a reforma da previdência, assim como a
luta pela reforma agrária é tolerada, mas filtrada e peneirada em espaços
intermediários para que os militantes comprometidos não cheguem aos espaços de
decisão sobre a questão fundiária e agrária, estes reservados aos
representantes do agronegócio.
Podemos ver militantes e personificações de segmentos
importantes da classe trabalhadora em áreas como a saúde, a assistência social
e outras, no entanto, o espaço efetivo de implementação de políticas ficaria
constrangida pelas áreas de planejamento e a lógica da reforma do Estado para
produzir a subserviência à lei de responsabilidade fiscal e a política de
superávits primárias que tanto agrada aos banqueiros.
Recentemente a presidente Dilma, através da deputada Kátia
Abreu (aquela mesmo!!!) da bancada ruralista, garimpava apoio para Dilma entre
os diferentes setores do agronegócio (gado, soja, milho, etc.), enquanto Paulo
Maluf posava sorridente ao lado do candidato do PT ao governo de São Paulo em
troca de alguns minutos no tempo de TV.
O governo de pacto social com os setores da grande
burguesia monopolista e a pequena burguesia que seqüestrou a representação da
classe trabalhadora, implica nos limites da ação de governo, isto é, impedem o
“reformismo forte” e impõe um “reformismo fraco”. Para atender as exigências da
acumulação de capitais dos diversos segmentos da burguesia monopolista as
demandas dos trabalhadores tem que ser contingenciadas, focalizadas, gotejadas,
compensatórias.
Queria-se acabar com a fome e a miséria, mas devemos nos
contentar em combater as manifestações mais agudas da miséria absoluta.
Queríamos uma reforma agrária (e mais que isso, não é, uma nova política
agrícola e de abastecimento, etc.), mas devemos nos contentar com crédito para
assentamentos competirem com o agronegócio e assistência para os que não
conseguem. Não se revertem as privatizações realizadas e cresce a lógica privatista
com as fundações público privadas, as OSs e outras formas diretas ou indiretas
de privatização.
O problema é que, mesmo assim, dando tanto à burguesia
monopolista e tão pouco aos trabalhadores, a burguesia sempre vai jogar com
várias alternativas, e, na época das eleições, vai ameaçar, chantagear e
negociar melhores condições para dar sua sustentação. O leque de alianças da
governabilidade petista não implica fidelidade dos setores do capital
monopolista, adeptos do amor livre, entendem o apoio ao governo do PT como uma
relação aberta. Por isso aparecem na época das eleições na forma de suas
personificações como partidos de “oposição”.
Tal dinâmica produz um movimento interessante. Amor e
união com a burguesia monopolista durante o governo e pau na classe
trabalhadora (combinada com apassivamento via políticas focalizadas e inserção
como consumidores); e briga com a burguesia e promessas de amor com os
trabalhadores na época de eleição!
A abertura da Copa e a hostilização vinda da área VIP
contra a presidente funciona aqui como uma metáfora perfeita: eles fazem a
festa para os ricos, enchem o estádio com a elite branca e rica, esperando
gratidão, mas a elite xinga a presidente.
A artimanha governista é circunscrever a propalada análise
concreta de uma situação concreta à conjuntura da eleição e não do período
histórico em que esta conjuntura se insere. Graças a esta mágica, desaparece o
governo real entre no lugar um mito que resiste ao neoliberalismo contra as
forças do mal igualmente mitificadas e descarnadas de sua corporalidade real. É
o odioso “neoliberalismo”, que vai retroceder nos incríveis ganhos sociais
alcançados e desestabilizar os governos progressistas na America Latina. Vejam,
nos dizem, como são piores que nosso governo, precisamos derrotá-los para
evitar o retrocesso e as privatizações. Mas uma vez derrotados eleitoralmente
os adversários de direita... quem privatizou o Campo de Libra? Colocando
exército para bater em manifestantes? Quem aprovou a lei das fundações
público-privadas que abriu caminho para a privatização da saúde e outras? Quem
aprovou a lei dos transgênicos, o código florestal e de mineração?
Não são iguais, é verdade. São duas versões distintas
disputando a direção do projeto burguês no Brasil. Um o capitalismo com mais mercado
e menos Estado, outro o capitalismo com mais Estado para garantir a economia de
mercado.
Precisamos circunscrever a análise da correlação de forças
ao momento eleitoral para evitar a derrota do governo Dilma, vejam, “mesmo
sabendo que o neodesenvolvimentismo em curso não é uma alternativa popular”!
Então, comecemos por aí: o atual governo NÃO É UM
ALTERNATIVA POPULAR! Já é um bom começo. Mas tenho uma péssima notícia...
também não é neodesenvolvimentista, seja lá o que isso queira dizer. É um
governo de pacto social que, partindo de um programa e uma concepção pequeno
burguesa, crê ser possível manter as condições para a acumulação de capitais o
que leva a uma brutal concentração de renda e riqueza nas mãos de um pequeno
grupo, ao mesmo tempo em que, pouco a pouco e muito lentamente, apresenta a
limitada intenção de diminuir a pobreza absoluta e incluir os trabalhadores na
sociedade via capacidade de consumo (bolsas, salários e crédito, etc.).
Ora, o que deve fazer a esquerda “sem o mínimo de peso
eleitoral, que não conseguem enraizar sua mensagem programática e nem
contribuir para o avanço da consciência de classe das massas populares”? Dizem
os governistas: votar na Dilma. No entanto, desculpe a insistência de quem faz
análise concreta de situação concreta não só quando chegam as eleições e água
bate na bunda; mas, e se for exatamente este processo de pacto social e de
implementação de um socialiberalismo que está impedindo o “avanço da
consciência de classe”? Depois de 12 anos de governos desta natureza a
consciência de classe está mais avançada que estava nos anos 80 e 90? Nos
parece que não.
Se somos tão insignificantes, irrelevantes e idiotas...
porque é necessário bater desta forma na esquerda? Pelo simples fato que nossa
existência, de uma ESQUERDA, não a pecha de esquerdismo que tenta se impor
contra nós como estigma, é a denuncia explícita dos limites e contradições que
o governismo e seus lacaios querem jogar para debaixo do tapete.
Para manter a “imagem” do governo petista (Sader está
preocupado com a imagem) é preciso uma operação perversa: atacar quem denuncia
os limites desta experiência, não importando o quanto desqualificado e
hipócrita seja o ataque, estigmatizando, despolitizando o debate. Primeiro foi
necessário destruir a esquerda dentro do PT e sabemos os métodos que foram
usados nesta guerra suja. Na verdade o que vemos agora contra a esquerda fora
do PT é uma projeção do ataque vil e brutal que companheiros da esquerda
petista sofreram e (aqueles que ainda resistem lá no PT) ainda sofrem
(esquerdistas, isolados das massas, sem expressão eleitoral, irresponsáveis,
etc.). E depois que conseguirem isolar, estigmatizar e satanizar a critica de
esquerda a esta experiência centrista e rebaixada de governo? Quando forem
atacados pela direita que não guarda nada a não ser desprezo para com os
escravos da casa grande?
As manifestações seriam, segundo os governistas, uma
ofensiva da direita para sujar a imagem bela e idealizada do governo e o
esquerdismo joga água neste moinho. Interessante que a necessidade de uma
análise concreta de uma situação concreta, da correlação de forças e das
classes não é necessária quando se trata das manifestações. MTST, garis,
metroviários, professores, são todos imbecis marionetes da direita, manipulados
por ela e quando pensam lutar por seus direitos e demandas estão fazendo o jogo
da direita. Somos nós que fazemos o jogo da direita... tem certeza?
De nossa parte, não nos incomodamos, porque não esperamos
nada mais que isso como conseqüência do progressivo, e triste, processo de
descaracterização e rebaixamento político. Não será a primeira vez que a
política pequeno burguesa, que se diz representante de todo o povo, se alia ao
trabalho sujo da direita para combater a esquerda.
Respondemos àqueles que acreditam que estamos isolados com
as palavras de Lênin, com quem aprendemos a fazer análise concreta de uma
situação concreta:
Pequeno grupo compacto, seguimos por uma estrada escarpada
e difícil, segurando-nos fortemente pela mão. De todos os lados, estamos
cercados de inimigos, e é preciso marchar quase constantemente debaixo de fogo.
Estamos unidos por uma decisão livremente tomada, precisamente a fim de
combater o inimigo e não cair no pântano ao lado, cujos habitantes desde o
início nos culpam de termos formado um grupo à parte, e preferido o caminho da luta ao caminho da
conciliação. Alguns dos nossos gritam: Vamos para o pântano! E
quando lhes mostramos a vergonha de tal ato, replicam: Como vocês são
atrasados! Não se envergonham de nos negar a liberdade de convidá-los a seguir
um caminho melhor? Sim, senhores, são livres não somente para convidar, mas de
ir para onde bem lhes aprouver, até para o pântano; achamos, inclusive, que seu lugar verdadeiro é
precisamente no pântano, e, na medida de nossas forças, estamos
prontos a ajudá-los a transportar para lá os seus lares. Porém, nesse caso,
larguem-nos a mão, não nos agarrem e não manchem a grande palavra liberdade,
porque também nós somos "livres" para ir aonde nos aprouver, livres
para combater não só o pântano, como também aqueles que para lá se dirigem!
(Lenin, Que fazer?, São Paulo: Expressão Popular, 62).
Publicado no Blog da Boitempo em
16/06/2014
http://blogdaboitempo.com.br/
*Pré candidato à Presidência da República.
1. Resoluções do 12o Encontro Nacional (2001).
Diretório Nacional do Partido dos Trabalhadores, São Paulo, 2001, p. 38.
http://blogdaboitempo.com.br/2014/06/16/o-escravo-da-casa-grande-e-o-desprezo-pela-esquerda/
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Texto extraído do site do PCB