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(Millôr Fernandes)

sábado, 10 de dezembro de 2022

A exigência orçamental de um Estado Providência

Sábado, 10 de dezembro de 2022

Da AEPET*
Publicado em 9de dezembro de 2022

Escrito por Prabhat Patnaik*

Experiência mundial mostra que construir um Estado-providência exige aumento do esforço orçamental



O período pós Segunda Guerra Mundial assistiu a uma série de medidas do Estado Providência (welfare state) nos países capitalistas avançados, especialmente na Europa, numa emulação do que a União Soviética estava a fazer. O capitalismo teve de aceitar estas medidas, apesar da sua hostilidade para com elas, porque estava em meio a uma crise existencial, enfraquecido pela guerra, abalado pelo aumento da cólera da classe trabalhadora e aterrorizado com a propagação do socialismo na Europa do Leste. Contudo, com a subsequente consolidação da sua posição a sua hostilidade às medidas do Estado Providência manifestou-se abertamente. Tentou fazê-las recuar, embora, graças à resistência dos trabalhadores, não tivesse o êxito que desejaria. Mesmo uma pessoa como Margaret Thatcher não conseguiu desmantelar o Serviço Nacional de Saúde na Grã-Bretanha. Ao mesmo tempo, ironicamente, o capitalismo retirou algum grau de legitimidade do Estado Providência, com a sua afirmação de que, longe de ser predatório, era na verdade um sistema que garantia o bem-estar do povo.

No entanto, a manutenção do Estado-Providência tem significado um rácio impostos/PIB substancialmente mais elevado em comparação com o período anterior nos países europeus e também em comparação com os números atuais para os países que têm restringido a assistência social. Na lista de países organizados por ordem decrescente do rácio impostos/PIB no ano 2020, 29 dos 30 principais países são da Europa, tanto ocidentais como do leste, ou seja, países que tiveram um legado de governos comunistas ou sociais-democratas; o único país não europeu é Cuba o qual está não só sob governo comunista, mas cujas medidas de Estado-providência são admiradas em todo o mundo.

Governos comunistas a adotarem medidas de Estado-Providência e aumentarem os recursos necessários para este fim através de elevados níveis de tributação – e esta disposição persistiu mesmo após o colapso do comunismo – não deveriam ser uma surpresa. O que impressiona, porém, é que a Social Democracia da Europa Ocidental também tem mantido um elevado rácio imposto/PIB para financiar as suas receitas de Estado-Providência. A França encabeça a lista com um rácio impostos/PIB de 46,2%, seguida pela Dinamarca (46,0), Bélgica (44,6), Suécia (44,0), Finlândia (43,3), Itália (42,4) e Áustria (41,8). A conclusão inevitável que emerge é que a manutenção de um Estado Previdência exige uma pesada tributação, ou seja, uma forte interferência do Estado no padrão da distribuição de rendimentos que é gerada espontaneamente pelo mercado.

Nenhum destes países europeus tem sido caracterizado por taxas de crescimento do PIB tão impressionantes como as das economias de crescimento elevado de hoje, mesmo no auge da chamada Idade de Ouro do capitalismo nos anos imediatos do pós-guerra. As suas taxas de crescimento do PIB caíram para níveis ainda mais baixos no período que seguiu ao colapso da bolha da habitação em 2008. A Índia, pelo contrário, enquanto os seus responsáveis continuavam a dar palmadinhas nas costas por ser uma economia supostamente de alto crescimento, tem medidas de Estado Previdência abissais, e, não surpreendentemente, um rácio impostos/PIB (18,08 por cento) que se aproxima do extremo inferior da escala.

Destas verificações decorrem três proposições. Primeiro, o chamado efeito "gotejamento" ("trickle-down") do crescimento do PIB é um conceito completamente vazio. O resultado do funcionamento do capitalismo irrestrito nunca poderá ter êxito espontaneamente na elevação do nível de bem-estar da massa da população trabalhadora. Isto acontece porque o capitalismo nunca pode funcionar sem um exército de reserva de trabalho, em que uma das suas funções principais é manter os salários baixos mesmo quando a produtividade laboral continua a aumentar, de modo a que a parte do excedente na produção social aumente, levando a um maior consumo por parte dos capitalistas e aos seus "acólitos". Os trabalhadores não obtêm automaticamente os benefícios do crescimento económico sob o capitalismo. É verdade que, se se organizarem, podem lutar por e até obter melhores condições de vida. Mas nesse caso forçariam também o Estado a aumentar o rácio imposto/PIB com o qual lhes proporcionaria um salário social mais elevado. Por outras palavras, o determinante crucial é a sua capacidade de combater eficazmente, não a taxa de crescimento económico cujos benefícios supostamente são "gotejados".

O mesmo se pode dizer acerca da crença de que, apesar dos baixos níveis de tributação, uma elevada taxa de crescimento do PIB colocará automaticamente tantos recursos nas mãos do governo que este será capaz de gastar montantes adequados para elevar o bem-estar dos trabalhadores. Isto é uma crença completamente descabida: a transição para um Estado-providência nunca ocorre furtivamente ou por pequenos acréscimos de medidas supostamente benevolentes. Ela ocorre como uma rutura, da qual a mobilização dos recursos necessários através de um aumento substancial do rácio impostos/PIB é um reflexo.

A segunda proposição é a seguinte. Não só o crescimento per se do PIB não leva a um Estado-providência, mas, de facto, fetichizar o crescimento do PIB torna-se um meio de impedir qualquer transição para um Estado-providência, de criar uma falsa narrativa de que os trabalhadores ficariam realmente melhor ao permitir transferências de recursos para os capitalistas, de modo a que estes possam empreender um maior investimento e, desse modo, dar início a um maior crescimento do PIB, do que por insistir em transferências para si próprios para a criação de um Estado-providência. Esta última posição é mesmo pejorativamente chamada "populismo" e ridicularizada como sendo esbanjadora e míope porque implica a distribuição dos chamados "brindes" ("freebies"). Esta fetichização do crescimento do PIB é utilizada como argumento para manter baixo o rácio impostos/PIB, pois qualquer aumento do mesmo, que tipicamente exigiria tributar os capitalistas, é alegadamente suposto para destruir a sua "empresa" e consequentemente o seu incentivo a investir, assim prejudicando o crescimento do PIB.

O raciocínio aqui está com certeza analiticamente errado: os capitalistas não investem mais apenas porque têm maiores recursos à sua disposição. As suas decisões de investimento são governadas pelo crescimento esperado do mercado e, portanto, não aumentam simplesmente porque lhes são dados maiores recursos através de transferências. Mas mesmo este argumento analiticamente erróneo é utilizado para desacreditar qualquer reivindicação de um estado previdência e subverter qualquer movimento em direção a ele. No entanto, o que mostra a experiência dos Estados-Providência em todo o mundo é que o rácio impostos/PIB tem de ser grandemente aumentado para alcançar um tal Estado, o que envolve um aumento substancial da tributação dos capitalistas e ignorar completamente o argumento acerca das suas danosas perspetivas de crescimento. A exigência de um Estado-Providência, por outras palavras, deve ultrapassar a fetichização do crescimento do PIB o qual faz parte da apologia burguesa.

A terceira proposição diz respeito à dialética da exclusão. Como as transferências de recursos são feitas do orçamento do governo para os capitalistas a fim de estimular o crescimento do PIB, e como a magnitude relativa das transferências aumenta com o início da recessão e da estagnação que tipicamente constitui o desfecho do capitalismo neoliberal, restam menos recursos, mesmo para as despesas de bem-estar miseráveis que estavam a ser feitas anteriormente a partir do orçamento. Isto resulta na privatização da educação, saúde e outros serviços essenciais, o que leva a uma maior exclusão dos trabalhadores de todos estes serviços. Uma vez que as transferências feitas para os capitalistas não provocam qualquer aumento do investimento ou mesmo um aumento muito imediato do seu consumo, a redução das despesas de bem-estar que correspondem a tais transferências, tem o efeito de reduzir acima de tudo a procura agregada. Isto tem o efeito de reduzir a taxa de crescimento do PIB, de modo que o esforço para elevar a taxa de crescimento desta forma tem paradoxalmente o efeito exatamente oposto, mas isto torna-se uma desculpa para novos aumentos nas transferências para os capitalistas, os quais têm o efeito de reduzir ainda mais a taxa de crescimento. Uma vez que o reverso de tais transferências é uma redução das despesas de bem-estar, a escala de tais despesas diminui gradualmente. Em suma, afastamo-nos cada vez mais de quaisquer perspetivas de um Estado-providência ao invés de avançarmos para ele.

Nós na Índia estamos atualmente no meio de uma tal dialética. Tal é a pressão sobre os recursos orçamentais, tanto devido ao baixo rácio impostos/PIB como à crescente escala de transferências para capitalistas sob a ideia errada de promover o investimento e o crescimento do PIB, que o governo central está mesmo a dissolver o Esquema Nacional de Garantia de Emprego Rural Mahatma Gandhi, que anteriormente servira como linha de salvação para os pobres rurais.

Existem, para esclarecer e recapitular, dois problemas distintos com o fetichismo do crescimento do PIB que é propagado na presente era de capitalismo neoliberal: um, o erro analítico subjacente à afirmação de que dar maiores transferências aos capitalistas leva a um maior investimento e, consequentemente, a um crescimento; e dois, a afirmação de que um maior crescimento do PIB leva por si mesmo a um maior bem-estar para o povo, mesmo que o rácio impostos/PIB seja pequeno. A experiência em todo o mundo mostra que a construção de um Estado-providência exige um enorme aumento do esforço orçamental.

04/Dezembro/2022

*Prabhat Patnaik — Economista, indiano


Tradução de JF.
Este artigo encontra-se em resistir.info