Imprensa é oposição. O resto é armazém de secos e molhados."

(Millôr Fernandes)

sexta-feira, 16 de dezembro de 2022

CORRUPÇÃO, PREVENÇÃO E DESIGUALDADE PARTE VI — O SERVIDOR QUE RECUSA A CORRUPÇÃO

Sexta, 16 de dezembro de 2022

Aldemario Araujo Castro
Advogado
Mestre em Direito
Procurador da Fazenda Nacional
Brasília, 16 de dezembro de 2022

Nesta série de textos abordarei, de forma sucinta, vários temas relacionados com um dos mais relevantes problemas da realidade brasileira: a corrupção sistêmica. Não é o maior dos nossos problemas (a extrema desigualdade socioeconômica ocupa esse posto). Também não é momentâneo ou transitório (está presente em todos os governos, sem exceção, desde que Cabral chegou por aqui). Não está circunscrito a um partido ou grupamento político (manifesta-se de forma ampla no espectro político-partidário). Não está presente somente no espaço público (a corrupção na seara privada é igualmente significativa). Não será extinta ou reduzida a níveis mínimos com cruzadas morais ou foco exclusivo na repressão (será preciso uma ação planejada, organizada e institucional em torno de uma série de medidas preventivas). Não obstante esses traços característicos, tenho uma forte convicção. A construção de uma sociedade democrática, justa, solidária e sustentável, centrada na dignidade da pessoa humana em suas múltiplas facetas e manifestações, exige um combate firme, consistente e eficiente a essa relevantíssima mazela do perverso cenário tupiniquim.

Ao lançar luz sobre práticas corruptas e ilícitas conexas é comum o esquecimento em relação aos servidores que recusam, inúmeras vezes com “perdas” de diversas ordens, a participação em atos e esquemas voltados para atacar a moralidade e o patrimônio públicos.

A título de ilustração da consideração anteriormente realizada, transcrevo o emblemático relato de um servidor público: “Tive uma situação clássica de vivenciar as garras da corrupção. Na ocasião, não tinha as informações nem sabia como agir diante de tamanha violência ao servidor, mas agi com os meus princípios humanos. Tinha eu sido nomeado para um cargo na área de Tecnologia da Informação. Logo após ter estourado a Operação Arapuca de Ouro a situação era sensível. Me designaram para ser Executor de Contrato de uma das empresas implicadas na Operação. Certa vez, ao analisar os processos de pagamento, decidi pela glosa de algumas das faturas com irregularidades em montante próximo a dois milhões de reais. Recebi, dias depois, a visita de um representante da empresa. Ele já sabia o valor da glosa. Para minha surpresa, escreveu em um papel o valor de R$310.000,00 e ficou circulando a caneta no número e me olhando nos olhos. Disse que eu podia terminar a obra da minha casa e deixar de andar de ônibus. Agradeci a preocupação e disse que a minha atuação funcional já estava realizada no processo”.

Deve ser destacado que os malfeitores da coisa pública, com maior ou menor intensidade, convivem com o risco dos esquemas de corrupção serem institucionalmente descobertos e desarticulados, inclusive com a aplicação das sanções cabíveis. Assim, uma preocupação permanente nessas mentes criminosas consiste em reduzir ou eliminar as ameaças que normalmente pairam sobre os mecanismos cuidadosamente construídos para rapinar os cofres públicos. Em regra, as ameaças podem partir das seguintes fontes: a) superiores hierárquicos, notadamente os governantes máximos; b) órgãos de controles interno; c) Tribunais de Contas; d) Ministério Público e e) dos malditos “certinhos” dentro e fora da Administração Pública, particularmente nas chamadas organizações não-governamentais (ONGs).

Os “certinhos” são pedras no sapato dos esquemas criminosos. “Não entendem ou não querem entender como funciona a vida …”, como pensam e verbalizam os ditos malfeitores da coisa pública. Atuam, alimentando por convicções éticas, por intermédio de denúncias, anônimas ou não, fiscalizações, impugnações e um apego “indesejado” aos princípios e regras constitucionais e legais. Normalmente, são afastados ou silenciados com a utilização dos mais variados expedientes. No submundo daqueles que operam os esquemas de corrupção e malversação da coisa pública também são realizadas as ações mais vis e repugnantes. Elas envolvem: a) gravações remotas e ambientais de conversas e reuniões; b) chantagens; c) intimidações; d) ameaças que se estendem até a parentes; e) perseguições e f) mortes (no limite da “incompreensão”).

Um dos caminhos para identificar o envolvimento de agentes públicos com atos de corrupção e similares são as verificações de acréscimos patrimoniais incompatíveis com a evolução da situação econômico-financeira. Esse tipo de análise pode ser realizado em caráter geral a partir da obrigação definida no art. 13 da Lei n. 8.429, de 1992, conhecida como Lei de Improbidade Administrativa.

A apresentação de declaração dos bens e valores que compõem o patrimônio do servidor público deve ser atualizada anualmente (parágrafo segundo do art. 13 citado). Assim, a conjugação dessa exigência legal com um sistema informatizado, como SISPATRI (Sistema de Registro de Bens dos Agentes Públicos) do Estado do Rio de Janeiro, que recuperasse e cruzasse informações de várias fontes apontaria fortes indícios de enriquecimento ilícito, a serem investigados mediante sindicâncias patrimoniais.

Outra medida extremamente importante (e polêmica) sugerida nos últimos tempos é o chamado “teste de integridade” ou “teste de honestidade”. Trata-se, em linhas gerais, da preparação de uma situação na qual um agente público é provocado a tomar uma decisão entre praticar ou não um ato ilícito (corrupção ou similar). O teste, obviamente, é realizado sem o conhecimento do agente. No caso de “aceitação” da proposta oferecida, o funcionário pode ser responsabilizado. Essa novidade, no âmbito  do Brasil, já é utilizada em vários países, como Estados Unidos, Austrália, Reino Unido, Geórgia e Hong Kong. Diversas organizações internacionais sugerem a adoção do teste de integridade como importante medida de combate a corrupção.

A realização de “testes de integridade” é a uma proposta muito sedutora. Afinal, seria possível “se livrar do corrupto” antes mesmo dos prejuízos serem suportados pela Administração Pública. Ademais, o ambiente de controle restaria fortalecido e inibidas as iniciativas deletérias. Entretanto, cautelas especiais precisariam ser implementadas para tornar os testes uma realidade. Entre outras providências, seria preciso: a) escolher os agentes públicos testados a partir de critérios objetivos e b) submeter os responsáveis pela aplicação dos testes a fortes mecanismos de controle.

“O homem que tem virtude não precisa de absolutamente nada para viver bem” (Cícero). Summum Bonum.


Textos anteriores da série:

PARTE I – O SENTIDO COLOQUIAL DE CORRUPÇÃO
PARTE II – A CULTURA DE LEVAR VANTAGEM
PARTE III – O SERVIDOR CORRUPTO SOZINHO
PARTE IV – O CANDIDATO CORRUPTO
PARTE V – O MITO DA FALTA DE PUNIÇÕES

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