Imprensa é oposição. O resto é armazém de secos e molhados."

(Millôr Fernandes)

quarta-feira, 13 de março de 2013

Transferência de responsabilidade

Qarta, 13 de março de 2013
Por Ivan de Carvalho
         1. Estou concluindo a leitura de um livro – Busque e Destrua. Com o subtítulo “Por que você não pode confiar no Google Inc.”. O autor, Scott Cleland, especialista em Google é considerado por muitos o principal crítico “da empresa mais poderosa do mundo”.

            Há toda uma robusta fundamentação e conclusões distribuídas nas suas 286 páginas (sem contar as 62 ocupadas pelas notas bibliográficas) que nos levam à impressão, quase convicção, de que o Google Inc. está se tornando a grande base para a imposição global do Big Brother – o Grande Irmão totalitário de “1984”, o livro profético de George Orwell.

Só um detalhe, quanto a isso: reagindo a um ataque massivo de hackers da China contra seus bancos de dados, o Google buscou a ajuda do mais poderoso e tecnológico serviço secreto norte-americano – a NSA, Agência de Segurança Nacional. Estabeleceu-se aí uma colaboração não mais interrompida entre o Google Inc. e a NSA. Objetivo declarado do Google: ter toda a informação do mundo. Sobre isso, muito mais está no livro.

Mas vamos a outro aspecto. A fundamentação de “Busque e Destrua” sustenta que só a privacidade do Google Inc. é importante para esta empresa. Não a das outras empresas, organizações e dos indivíduos. Nunca a teletela do Big Brother esteve tão operante quanto agora, graças ao Google. Pois bem. O Google grava tudo em seu sistema de servidores – e não apaga nunca, nunca. Mesmo que você mande para a lixeira e exclua, você apenas perdeu seu acesso ao material, mas o Google o mantém e pode entregá-lo a um governo que o solicite “legalmente”, inclusive o conteúdo dos emails que você envia ou recebe pelo Gmail e até o conteúdo dos rascunhos que você haja resolvido descartar. O Google bisbilhota sua lixeira, assegura Scott Clelland.

Ela quer saber absolutamente tudo sobre você e tem até um programa para aprender seu modo de mover a seta do mouse na tela. O objetivo é servir aos anunciantes da maneira mais eficaz possível (embora diga que sua prioridade são os usuários). Como a invasão da privacidade alheia é quase absoluta e como os sistemas de segurança do Google em relação aos dados de terceiros não são uma prioridade, também é grande o risco de invasões de hackers. Por esta e outras razões, o Google Inc. tornou-se especialista no que o livro de Scott Clelland chama de “transferência de responsabilidade”.

Um aspecto. Se seus dados armazenados no Google são “raqueados”, a empresa inverte a responsabilidade: ensina que os usuários devem ser cuidadosos, rápidos em avisar quaisquer anomalias notadas e tomar tantas precauções que parece que eles é que têm a obrigação de impedir que os hackers invadam os bancos de dados do Google. Ah, o Google Inc., segundo o livro de Clelland, se apresenta em pele de cordeiro, mas escolheu uma réplica de Tiranossaurus Rex em tamanho natural como sua mascote. A novilíngua de Orwell: Liberdade é Escravidão; Cordeiro é Tiranossaurus Rex.

            2. Bem, chega de Google. Mas não de transferência de responsabilidade. Lembre-se o leitor que as agências bancárias estiveram fechadas por alguns dias, por causa de uma greve dos vigilantes. Uma lei impede que uma agência bancária funcione sem pelo menos dois vigilantes (particulares) em seus postos. Mas, pela Constituição, a segurança pública é responsabilidade do Estado. A tal lei é uma transferência de responsabilidade, talvez até inconstitucional.

            Outro caso: entre os conselhos encontrados no site da Secretaria da Segurança Pública do Estado da Bahia para aconselhar a população a se proteger está o de levar sempre o cidadão algum dinheiro para o ladrão. O agora chamado “imposto do ladrão”. Assim, haveria mais chances de ele ficar satisfeito e ir embora sem praticar outros crimes. Não vou dizer que o conselho é errado. Afinal, muitas pessoas, por conta própria, pois o Estado não fornece a grana, já levam – quando têm – o “dinheiro do ladrão”. Errado é o Estado estar transferindo aos cidadãos a responsabilidade pela segurança pública, que é dele. É quase como se dissesse: “Se os bandidos saírem matando pessoas por aí por não estarem levando o dinheiro para eles, a culpa é dos mortos”.
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Este artigo foi publicado originariamente na Tribuna da Bahia desta quarta.
Ivan de Carvalho é jornalista baiano.