Domingo, 13
abril de 2014
Por Léo
Lince*
Os
militares de pensamento democrático (eles existem, basta rememorar os punidos
em 64) sempre foram radicalmente contrários ao uso das forças armadas no papel
de polícia. Ancorados por inúmeras lições da história, acontecidas aqui mesmo
no Brasil e pelo mundo afora, eles sustentam sua tese em posições de princípio
e na análise dos resultados concretos, nefastos na totalidade dos casos, de
semelhantes intervenções.
Nelson Werneck
Sodré, general e de esquerda, foi por algum tempo, nos meados do século
passado, diretor da Biblioteca do Exército.
Autor de uma volumosa e respeitada obra, ele foi responsável pela
primeira edição entre nós de um livro que se tornou referência para o tema em
pauta: “Servidão e grandeza militares”, do grande escritor francês Alfred de
Vigny.
Neste belo
livro (para os interessados: DIFEL, São Paulo, 1967), o consagrado autor produz
uma reflexão comovida sobre os dilemas de sua própria experiência no exercício
do ofício militar. Segundo ele, a grandeza e abnegação dos que entregam a vida
na defesa da pátria se transveste em servidão abjeta quando as baionetas se
voltam contra o “inimigo interno”. Diz
que “ninguém mais do que o soldado sofre com o papel de ‘gendarme’ que lhe
impõem os governos modernos”, ainda mais quando reacionários, impopulares e
corruptos.
A força
bruta pode avassalar, mas não é capaz de convencer as consciências. Foi o que
disse, em outras palavras, Salvador Allende antes de ser assassinado pelo
exército do país que ele, legitimamente, presidia. Não se discute a eficácia temporária da
violência repressiva, mas a corrosão permanente que ela provoca nos aparelhos
que a realizam. Em suma, a história não registra exemplo de grandeza militar
nas tarefas de manutenção da ordem interna.
No
contraponto de tal ensinamento, os militares brasileiros das três armas acabam
de ser convocados pelo governo federal para desempenhar o papel de polícia no
complexo de favelas da Maré, no Rio de Janeiro. As razões e as consequências de
tão grave decisão ainda estão envoltas nas nuvens do mistério. A chefia do
governo central não cuidou de explicar nada, apenas assinou o decreto como se
de coisa corriqueira se tratasse.
Ninguém
sabe, ao certo, de nada. Os jornais diários trazem notícias desencontradas. Até
o tempo de duração da ocupação, que o decreto que a deliberou deveria
estipular, não foi objeto de informação oficial. Alguns dizem ser o final de
julho, o que explicitaria o objetivo primordial de prevenir manifestações
durante os jogos da Copa. Sobre os
efetivos destacados para a ocupação, a depender do jornal, serão menos de dois
mil, oito mil ou até quinze mil. Anuncia-se o uso vasos de guerra e blindados da
Marinha, helicópteros e aviões da Aeronáutica, tropas de elite do Exército,
batalhão de paraquedistas, brigadas da infantaria, além das múltiplas polícias
do poder local.
Em meio à
confusão generalizada, algumas questões se mostram com meridiana clareza. Uma
delas é a desmoralização completa do governo estadual e a falência de sua antes
tão decantada política de segurança pública. Outra é o ânimo autoritário do
poder judiciário local. A concessão do mandado de busca coletiva, que deve ter
sido objeto das tratativas secretas que prepararam a ocupação, é uma aberração
própria dos períodos totalitários. Ao contrário do preceito que rege o Estado
Democrático de Direito, todos os moradores da Maré são culpados até prova em
contrário. É a criminalização da pobreza, expressão concreta da vigência entre
nós do “Estado Autoritário de Direito”.
Em tais
situações, quando as forças armadas são chamadas a apontar suas baionetas
contra o “inimigo interno”, a cautela recomenda botar as barbas de molho.
Quando se admite, na letra da “lei”, a existência de cidadãos de segunda
categoria, fica claro que em tal sociedade ninguém é cidadão. Quando parte da
população é tratada como estrangeira em seu próprio país, recomenda-se tomar o
máximo cuidado: a próxima vítima pode ser você.
Ainda não
se trata, é claro, de uma nova ditadura meio século depois da outra. Pode ser
um mero arreganho para garantir os lucros da máquina mercante nos negócios da
copa. Desfile de luzidos equipamentos da segurança cenográfica que será
desmontada depois do megaevento. O
aprendiz de feiticeiro, no entanto, desencadeia forças que depois não sabe
controlar. A ocupação da Maré pelas
forças armadas, na base da GLO, sigla terrível, e do mandado coletivo de busca,
que define como marco legal vigente o “Estado Autoritário de Direito”, abre
espaços para as soturnas botas que podem pisotear a nossa precária democracia,
aquela plantinha tenra.
*Léo Lince é
sociólogo
Fonte: http://blogderesistenciasocialista.blogspot.com.br/