Imprensa é oposição. O resto é armazém de secos e molhados."

(Millôr Fernandes)

sexta-feira, 4 de abril de 2014

Maré: a pacificação e os três lados da moeda

Sexta, 4 de abril de 2014
Jornal do Brasil 
Walmyr Júnior
O processo de pacificação das 16 favelas da Maré traz à tona os mais variados interesses, que utilizam a pobreza como instrumento de marketing e publicidade de uma teórica ‘ordem social’, que tem por objetivo fazer da cidade do Rio de Janeiro a vitrine de luxo do país.  A pacificação da favela serve como objeto de pesquisa de um planejamento urbano, que tem por finalidade maquiar a cidade para que o turismo cresça. Já o contexto urbano de violência diária que vivemos nas ruas, becos e vielas das favelas do Rio de Janeiro não muda com a pacificação. 

Com as condições apresentadas aqui acima, vemos o interesse do Estado sobrepor o direito do morador, e com isso as associações de moradores, das 16 favelas pacificadas, ficam em uma verdadeira ‘sinuca de bico’. 
  
Ainda que por ora já tenha dito que tal justificativa de pacificação da Maré só corrobora para a estratégia de minimização do estrago político e social que o governo do senhor Sérgio Cabral/Pezão vem sustentando no estado do Rio de Janeiro, não podemos deixar de analisar e citar quais são os outros personagens desta trama e quais os papéis de cada um deles dentro dessa ópera orquestrada. Não posso negar também que tal enredo influencia no direito de liberdade que os coadjuvantes favelados posam vir a ter, até porque a UPP não acaba com o tráfico de drogas dentro da favela. 

Para o presidente da Associação de Moradores do Conjunto Esperança, Pedro Francisco dos Santos, o morador da comunidade está à mercê de dois poderes. “Um é o poder militar e o outro é o poder paralelo. Conviver com os dois poderes será um desafio para o morador exercer sua cidadania dentro da nova configuração do espaço da comunidade. Com isso temos que praticar o mútuo respeito para conseguirmos viver em paz” declara o presidente.


Segundo Pedro “o morador vive com um ar de desconfiança. Isso porque a UPP em várias outras favelas deixa à mostra muitos fatos de usurpação dos direitos humanos. Não se sabe ainda quais benefícios que a comunidade vai ter com a pacificação, só se sabe o que ela já fez de ruim nas comunidades que atua”.

Dona Maria Angélica, moradora do Parque União, fica insegura com a quantidade de militares que está entrando na comunidade para ‘pacificar a Maré’. Para ela, a imagem refletida nas atuações da UPP só mostra que tal iniciativa de pacificação coloca em xeque o trabalhador que mora na favela. “Os risco passam a aumentar, pois não se sabe a hora nem o local que a polícia vai atirar em cima dos meninos do tráfico, e nas ruas da nossa comunidade as crianças vão e voltam da escola, brincam de pique e de bola. Não sabemos também quando a polícia vai entrar nas nossas casas para tentar achar os meninos que fogem da policia. Tenho muito medo, porque fico sozinha em casa e vejo meu filho indo trabalhar e não sei o que vai acontecer aqui quando ele voltar” declarou Dona Maria.

Pedro ainda tem esperança de que a UPP possa provocar ‘a reconquista da cidadania’. Para ele, a UPP daria mais certo se entrasse com a educação ao invés do fuzil do policial. “A UPP pode ocupar os espaços que estão abandonados na favela, assim os frutos dessa política pode aparecer. Temos direitos de sermos cidadãos e por isso merecemos respeitos. Eu acredito que projetos sociais podem surgir e mudar a realidade social dos nossos jovens e crianças, mas isso só vai acontecer se os órgãos públicos entrarem aqui e fizer a sua parte”.

Bom, sabemos que de um lado da moeda dessa política de segurança está o governo do estado tentando maquiar as favelas com sua política de pacificação. Do outro lado está o morador da favela ocupada, que por muitas vezes tem seus direitos violados e não enxerga a real mudança do seu território. Enxergo ainda nessa análise de conjuntura um outro sujeito. 

A prática do racismo branco, institucionalizado pela UPP, possibilita que a especulação imobiliária, a segregação social e o aumento do custo de vida dentro das favelas entrem em cena. É fácil perceber esta teoria quando olhamos para o aluguel de casas nas favelas pacificadas como a Rocinha, o Morro do Santa Marta, Vidigal e até mesmo o Chapéu Mangueira. O capitalismo covarde começa a ganhar espaço dentro das periferias e mostrando que o governo compactua desta política que favorece um padrão de vida espelhado em uma única classe. 

Temos que ter às claras que a política de implementação de uma ‘ordem social’ na favela tem por fim abrir o comércio legal para os grandes empresários, como por exemplo, as TVs por assinaturas, os comércios alimentícios ligados ao fastfood, grandes redes de bancos, etc.. 

Não quero afirmar que o cidadão favelado não tenha que ter acesso a algumas dessas utilidades, mas quando o direito básico não faz parte nem da vida e nem do vocabulário do morador da favela, fica difícil de viver em uma favela pacificada. Vemos que a interiorização das favelas no estado do Rio de Janeiro reproduzem a ordem do dia: ‘saiam da minha favela pacificada e leve a sua pobreza para o interior, lá não tem turista para te ver’.

* Walmyr Júnior Integra a Pastoral da Juventude da Arquidiocese do Rio de Janeiro. É membro do Coletivo de Juventude Negra - Enegrecer. Graduado em História pela PUC-RJ e representou a sociedade civil em encontro com o Papa Francisco no Theatro Municipal, durante a JMJ.