Quinta, 3 de abril de 2014
“Dispensou um último tapa forte na minha coxa – foi embora caminhando. Minhas mãos desceram à virilha; manchei-as com aquela mistura de branco com vermelho: jamais unir-se-ão em rosa. Não sei quanto tempo larguei-me ali. De pernas abertas. De roupa rasgada. De olhar perdido. Quando me encontraram, já era tarde. Tarde na hora do relógio, tarde na hora impossível de se evitar: ninguém mais poderia me salvar, minha vida acabara ali”. (O nojo do gozo que não participei – sobre estupro e outras formas de machismo)
São
de deixar preocupada qualquer pessoa minimamente sensível à humanidade –
no bom sentido da palavra – os resultados apresentados pela pesquisa
divulgada nesta quinta-feira (27/03) pelo Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada (Ipea), que mostra que 58,5% dos entrevistados
concordam totalmente (35,3%) ou parcialmente (23,2%) com a frase “Se as
mulheres soubessem como se comportar, haveria menos estupros”.
Leia a íntegra clicando no link a seguir
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Para além do choque imediato com a prevalência de tal opinião no
universo de 3.810 brasileiros, sendo a maioria mulheres, a pesquisa
aponta ainda que os principais responsáveis por estupros de crianças
foram amigos ou conhecidos (32,2%) e pais ou padrastos (24,1%). Além das
que geraram tais dados terríveis, foram feitas outras perguntas. Quando
estimulados pela frase “Homem que bate na esposa tem que ir para a
cadeia”, 78% concordam totalmente e mais 13% concordam parcialmente, o
que revela, pelo menos no discurso desta amostra, que a população
rejeita a violência doméstica contra a mulher.
No entanto, a maior violência que alguém pode sofrer é o estupro.
Transformar o prazer em dor, o gozo em nojo, o sexo em violência é uma
forma de tortura que marca toda a vida. A dignidade e a sexualidade
serão para sempre machucadas. Quem conhece alguma vítima ou já foi
vítima, sabe muito bem disso. Neste sentido, seria importante fazer uma
pergunta, que não está na pesquisa, aos 58%. Se sua filha, sua esposa,
sua irmã ou sua mãe “não soubessem se comportar”, mereceriam ser
estupradas? Certamente a resposta não seria a mesma.
Ao tratarmos como tema individual ou familiar o crime do estupro, não
se ataca socialmente o maior problema: o machismo que absolve os homens
de praticá-lo. Dessa forma, a vítima torna-se culpada e o culpado segue
livre para fazer mais vítimas. A sociedade que incentiva a visão da
mulher como coisa ou propriedade do homem torna-se inocente. Isso fica
ainda mais evidente no estímulo “Mulheres que usam roupas que mostram o
corpo merecem ser atacadas” no qual 42,7% concordaram totalmente com a
afirmação, 22,4% parcialmente.
A criação do outro como estranho ou como coisa pode nos transformar
em coisas estranhas à humanidade. O outro não está tão longe, pode estar
dentro de casa e a indiferença que absolve o estupro pode ser um
incentivo para que os estupradores sintam-se à vontade para seguir
mutilando o prazer e o corpo das mulheres. É preciso um trabalho árduo
para desmanchar tais preconceitos sociais. Depois pode ser tarde.
*Bernardo Corrêa é sociólogo