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(Millôr Fernandes)

terça-feira, 23 de janeiro de 2018

A defesa jurídica de Lula nos termos da assim chamada “esquerda socialista”

Terça, 23 de janeiro de 2018
A absolvição ou a condenação de Lula, um dos maiores gerentes do capitalismo brasileiro, não muda as tarefas colocadas para o proletariado no presente momento. O ativismo brasileiro já desperdiçou tempo demais se insurgindo contra golpes inexistentes, provendo uma sobrevida ao fracassado projeto da colaboração de classes e atrasando a urgente construção de um campo operário e socialista. 

Por
Pablo Biondi, de São Paulo. Advogado.

Quando recebemos algum tipo de crítica ou ataque de alguém que deveria estar do nosso lado, costumamos dizer: “com amigos assim, nem precisamos de inimigos”. Se considerarmos a relação de Lula com a chamada esquerda socialista (PSOL e a imensa maioria de suas correntes, principalmente), no que diz respeito à polêmica sobre a sua possível condenação e o subsequente comprometimento jurídico de sua candidatura nas eleições presidenciais de 2018, temos uma situação inversa. O ex-presidente bem poderia dizer, endereçando-se a essa “alternativa de esquerda ao PT”, algo como: “com inimigos como vocês, nem preciso de amigos”.

No momento de maior fragilidade política do PT, que se revelou um aparato político fundamental à dominação burguesa no Brasil das últimas décadas, as organizações de esquerda ligadas ao PSOL ou que dele se aproximam, com raras exceções, empenham-se em salvar Lula e seu partido das mãos do Judiciário e da Polícia Federal perante denúncias de corrupção. Afirmam essas organizações ditas socialistas que o destino do PT e de seu maior expoente não pode ser entregue ao Estado e à classe capitalista que dele se beneficia, levantando uma série de argumentos. Cumpre esmiuçar a argumentação apresentada por esses setores para que se possa, de maneira inequívoca, perceber os erros, as falácias e todo o oportunismo em que incorrem nesse debate.
Argumento n.º 1: “Defender a possibilidade da candidatura de Lula não é o mesmo que defender seu programa”
Esse é talvez o primeiro dos brados de guerra das correntes psolistas e afins (reiteramos aqui a existência de exceções) no debate sobre o caso Lula. É de se notar que essas correntes lançam essa afirmação com muita pompa, reputando-se, logo depois, imunes ao risco de capitulação ao petismo e ao lulismo. Mas há um problema anterior: se é verdade que a defesa da possibilidade da candidatura de Lula não se confunde imediatamente com a aprovação de seu programa, isso por si só não diz por qual motivo a classe trabalhadora deveria tomar para si a causa do ex-presidente. Seria preciso identificar um quadro no qual as liberdades democráticas das massas estivessem sob ataque. Se estivéssemos diante de uma restrição geral aos direitos políticos, representando um fechamento do regime em direção a um golpe de Estado, seria pertinente denunciar não apenas a situação do PT, mas de todos os demais partidos prejudicadas por medidas autoritárias. Não é esse o caso.

Alguns poderiam dizer que há afronta às liberdades das massas ao se inviabilizar a candidatura do pré-candidato que lidera as pesquisas. Esse tipo de argumento revela uma chancela formal do sufrágio: fosse outro o candidato líder (Bolsonaro, por exemplo), haveria a necessidade de, conforme essa lógica, defender a possibilidade de sua candidatura a qualquer custo, a pretexto de se respeitar a vontade popular. Ocorre que a vontade popular é sempre distorcida pelo sufrágio, e por uma razão simples: as massas votam nos candidatos que estão disponíveis, sendo que essa disponibilidade é dada não pelos desejos e anseios do povo, mas sim pelos arranjos interpartidários e, acima de tudo, pelo financiamento capitalista das candidaturas. Não é a vontade do povo que define o cenário eleitoral. Desconsiderar essa distorção fundamental é recair em liberalismo, ou pior do que isso, já que até mesmo um Rousseau no século XVIII mostrava-se cético sobre a legitimidade plena do modelo representativo.

Seja como for, o elemento principal a se tomar em conta é o de que não há um movimento do regime no sentido de se criminalizar o PT ou inviabilizar sua participação política nas eleições. Quem assim pensa olha apenas para o Judiciário e se esquece do órgão principal da democracia liberal: o parlamento. Se considerarmos o que se passa na esfera parlamentar, veremos nitidamente o que se passa: não uma conspiração contra um único partido, e sim um movimento conjunto de defesa do sistema político, um esforço de autopreservação das forças da ordem após o fortíssimo desgaste do último período. O partido de Lula, inclusive, é parte desse esforço, haja vista sua participação na reforma eleitoral, que já trouxe um pacote de mudanças que beneficia as grandes legendas (PT, PMDB e PSDB) e prejudica as pequenas. Voltaremos a isso mais adiante.

Argumento n.º 2: “Não há provas de que Lula cometeu crimes”
Como já se comentou uma vez nas redes sociais, e de maneira muito espirituosa, Lula é o maior beneficiário de advocacia voluntária de toda a história. Inúmeros ativistas progressistas da internet (digital influencers de esquerda!) deixam vir à tona o jurista que trazem dentro si (justiça seja feita aos que já são juristas) e se engajam em discussões intermináveis de técnica jurídico-processual. Verdadeiros sentinelas da legalidade, esses agentes estão na primeira linha da defesa processual de Lula, e se lhes fosse possível, forneceriam gratuitamente os serviços que são prestados a título oneroso pelos representantes oficiais do ex-presidente. E o mais curioso: muitos desses agentes surgem das fileiras da “esquerda socialista”.

É algo realmente curioso, pois os militantes políticos enaltecem certas sutilezas jurídicas e abrem mão de debater o conteúdo político real da situação de Lula. O que está colocado, objetivamente, é o envolvimento orgânico do pré-candidato do PT com a burguesia, e esse é o ponto-chave da situação dele. Do ponto de vista político, não faz diferença saber se essas relações se restringem àquilo que juridicamente é admitido (doações de campanha admitidas pela justiça eleitoral) ou se elas vão além (doações consideradas ilícitas). Politicamente falando, Lula é um agente da Odebrecht e se encontra na condição de réu precisamente porque se envolveu demais nas zonas cinzentas de operação do capital. E essas zonas são cinzentas porque o capital estabelece um intercâmbio permanente com o aparato estatal, sendo que uma parte desse intercâmbio é legal e a outra é ilegal – o que é inevitável, pois a política e a ganância do capital vão muito além das fronteiras traçadas pela lei. Juridicamente, faz toda a diferença saber se Lula cruzou a fronteira legal, mas isso é irrelevante no que diz respeito ao conteúdo político, ou seja, no que diz respeito ao que realmente importa no debate da esquerda socialista. O fato de existir uma promiscuidade lícita e uma promiscuidade ilícita entre capital e Estado faz parte da hipocrisia objetiva do capitalismo e do direito eleitoral, mas se olharmos para o conteúdo do que está colocado, a promiscuidade é a mesma, ela não muda de caráter por ser legal ou ilegal. Daí o preciosismo dos debates jurídicos sobre o caso. Lula encontra-se na situação atual por manter relações objetivas com o capital, por participar ativamente de seus negócios obscuros.

Assim sendo, do ponto de vista político, o conteúdo da questão é o sólido liame entre Lula, seu partido e os empresários. O reconhecimento como lícito ou não desse liame é um tema secundário para os marxistas, pois os serviços prestados pelo PT à burguesia não mudam de caráter, quer sua relação com ela seja considerada lícita, quer seja taxada como “crime de corrupção”. O que importa aqui é o profundo intercâmbio entre o capital e sua representação política petista. Quem ignora essa objetividade não faz mais do que se render a uma espécie de estima pelo “filho pródigo”. Para os reformistas, com efeito, o PT cometeu muitos erros, afastou-se da “verdadeira esquerda”, mas ainda pertence ao mesmo campo de origem. Veremos mais adiante que também esse argumento é infundado.

Distinto é o tema do direito de Lula à defesa processual. Mesmo envolvido profundamente nas atividades do empresariado, o líder petista merece o respeito às garantias processuais que o regime democrático-liberal supostamente assegura a todos os cidadãos. Assim como dizemos que ele não é um ser acima da lei, também entendemos que ele não está abaixo dela. E nesse quesito, ele conta com recursos financeiros e políticos muito superiores aos da imensa maioria dos trabalhadores brasileiros para fazer valer a norma constitucional. É dizer: suas condições de providenciar uma defesa processual adequada são infinitamente melhores daquelas em que se encontram os trabalhadores comuns e os ativistas do movimento de massas verdadeiramente perseguidos pela repressão.

Argumento n.º 3: “Lula e o PT só podem ser julgados politicamente pelo proletariado”
De todas as justificativas para a defesa da viabilidade da candidatura Lula, essa é a mais esdrúxula. Ela chega a ser reacionária no sentido rigoroso do termo, invocando uma espécie de privilégio político pré-liberal sob uma máscara classista. Vejamos: os reformistas dizem que o petismo deve ser vencido não nos tribunais, e sim nas urnas. Imediatamente salta aos olhos o cretinismo eleitoral desse ponto de vista, mas não é esse o aspecto que queremos enfatizar. O que nos chama atenção é o fato de que, para eles, o PT pode estabelecer todo tipo de relações orgânicas com o capital, pode reproduzir todas as práticas dos partidos burgueses tradicionais e, ainda assim, ser “digno” de ser julgado apenas politicamente pela classe trabalhadora.

A mensagem do reformismo à burguesia e às instituições estatais é mais ou menos assim: “Não toquem no Lula! Não gostamos dos rumos que ele tomou, mas ainda é um dos nossos, e somos nós que devemos julgá-lo, sobretudo nas eleições”. Lula está, nessa visão, acima dos tribunais estatais, acima da justiça burguesa, por mais que ele tenha se metido em muitas atividades burguesas – embora somente nas atividades lícitas, segundo seus advogados.

Esse estranho posicionamento nos remete a um passado distante. Como é sabido, o absolutismo tinha como um de seus princípios a supremacia do rei sobre a justiça temporal. O monarca respondia somente a Deus, e não aos súditos ou a qualquer outra autoridade mundana, e por isso mesmo suas condutas não poderiam ser responsabilizadas criminalmente. Perante os homens, o rei não erra (“The king can do no wrong”; “Le roi ne peut mal faire”). Com Lula também é assim, mas os reformistas trocaram Deus pelo proletariado em seu raciocínio – o que é mais uma abominação política do que um sacrilégio propriamente. Quaisquer que sejam os crimes de Lula, ele deve estar fora do alcance do Estado!

Estaríamos dizendo que a jurisdição estatal deve ter poderes sobre Lula? Até que nos provem algum desígnio divino em sentido contrário, não nos causa espanto ou incômodo que tais poderes possam tocá-lo. No entanto, parece mais razoável inverter a pergunta: por qual motivo Lula mereceria um julgamento puramente político, ao passo que os demais políticos burgueses, diferentemente, seriam merecedores da jurisdição do Estado? A resposta dos reformistas está associada a outra problemática que enfrentaremos mais à frente. Seja como for, já se percebe a busca de um privilégio em favor do ex-presidente, ou pior, a construção ou ao menos a insinuação da tese de que ele estaria em situação pior do que aquela a que estão submetidos os trabalhadores no âmbito do Poder Judiciário.

Argumento n.º 4: “Condenar Lula enquanto os tucanos estão soltos é injusto”
Seria preferível, e até mesmo mais cômodo, que todos os partidos do sistema político burguês naufragassem ao mesmo tempo na Lava Jato, numa espécie de desmoronamento coletivo. Seria mais cômodo ainda se o próprio capitalismo caísse fulminado por uma crise terminal. Infelizmente, a realidade não nos brinda com comodidades dessa natureza.

Sendo a Operação Lava Jato um fenômeno de destruição controlada do sistema político para fins de renovação, tal como se dá nas próprias crises econômicas com os capitais individuais que compõem o capital social total, é de se imaginar que nem todas as forças políticas sofrerão igualmente o ônus desse processo. Os partidos e lideranças com mais recursos políticos conseguem resistir com mais tenacidade a esse grande (e farsesco) processo de “saneamento” institucional. Assim, os componentes do sistema político acabam sendo atingidos desigualmente por essa tempestade, tanto quanto os capitais mais sólidos sofrem menos nos períodos de depressão econômica.

Se o PSDB teve a habilidade política para “sofrer menos” nessa purgação sistêmica, contando com a lealdade de figuras como Gilmar Mendes e Alexandre de Moraes, apenas para ficarmos com alguns exemplos, isso em nada atesta a inocência de Lula ou caracteriza a existência de uma conspiração antipetista. O que se verifica apenas é que, nas disputas interburguesas, as quais se acirram nos momentos de crise, o PT saiu derrotado, sendo ainda muito cedo para se definir quem venceu – se tomarmos o PSDB como contendor vitorioso, seria preciso ponderar, no mínimo, que o vencedor está bastante fragilizado.

No mundo dos sonhos do reformismo, todos os partidos da ordem seriam aniquilados ao mesmo tempo. Se todos tivessem tombado com mais sincronia e com a mesma intensidade, seria justo, mas como alguns foram mais sacrificados do que outros, ou seja, como o pobre PT foi “discriminado” em favor do malvado PSDB, então o resultado é inaceitável. Eis a lógica peculiar que nos é apresentada. Se analisarmos seriamente o sistema político, por outro lado, compreenderemos que a destruição simétrica dos partidos é impossível, a não ser num hipotético equilíbrio absoluto entre as forças políticas. Mas por que levar em conta as relações de força entre os partidos e os capitais rivais, assim como a dinâmica própria do sistema político, se podemos reduzir tudo a tramas palacianas, conspirações, golpes e coisas do tipo? Com esse tipo de redução, chega-se a um resultado assombroso: o PT de Lula, lacaio da burguesia e algoz do proletariado por tantos anos, torna-se agora “vítima” da classe capitalista e do Estado que geriu por tanto tempo.

Argumento n.º 5: “A prisão de Lula abre precedentes perigosos para a democracia”
Não há o que se dizer sobre essa “pérola”, a não ser o óbvio: quaisquer que sejam as arbitrariedades e ilegalidades que possam ocorrer no processo de Lula (e ele possui meios extraordinários para se proteger delas), não há nada que o Judiciário e a Polícia já não tenham experimentado e utilizado contra a classe trabalhadora, desde muito antes de Lula e, inclusive, sob o seu governo. Dizer que a condução do processo contra o ex-presidente é uma ameaça para toda a classe trabalhadora implica ignorar toda a opressão exercida pela reluzente “democracia” dos liberais contra as massas no seu cotidiano.

Há aqueles que afirmam que não há contradição entre reivindicar direitos para Lula e reivindicar os mesmos direitos para o povo pobre explorado. Os que assim pensam devem ter dificuldades em diferenciar o ato de se tomar partido dos escravos e o ato de se tomar partido do capitão-do-mato. De resto, basta verificar a diferença objetiva de peso (em termos de pauta e mobilização), por parte da esquerda, no tratamento dado ao caso de Lula e no tratamento dado ao caso de Rafael Braga e de tantos outros que, ao contrário do líder petista, são autênticos representantes da situação social do proletariado.

Argumento n.º 6: “Um processo eleitoral sem Lula seria um novo golpe contra os trabalhadores”
De forma impressionante, PSOL e afins denunciam a possível cassação da candidatura de Lula com muita mais indignação do que o fazem no tocante às restrições à participação dos partidos menos expressivos eleitoralmente no processo. O próprio PSOL amargará prejuízos num certame eleitoral que será ainda mais oligárquico, ainda mais favorável às grandes siglas do capital (dentre elas, o PT), e só o que lhe ocorre é fazer alarde em torno do caso Lula. O tema da cláusula de barreira para fins de propaganda na mídia, fundo partidário e participação nos debates é muito mais grave do que o julgamento de um único indivíduo, por mais que se queira elevá-lo acima das pessoas comuns.

Novamente, Lula surge como um ente com poderes místicos. Estamos falando de um ser que, de fato, não deve ser desse mundo, pois a sua ausência ou presença nas eleições, segundo os reformistas, faz toda a diferença na legitimidade do pleito. Não importa o poder desmedido do capital sobre as campanhas eleitorais; não importa a ideologia do sufrágio; não importa o papel objetivo do Estado na reprodução do capitalismo: se o eleitor brasileiro não tiver condições de votar em Lula, então estaremos diante de uma farsa!

Depois que o termo “golpe” foi banalizado ao extremo desde a campanha frente-populista pela salvação do mandato de Dilma Rousseff, não admira que as ilusões na democracia burguesa atinjam esse patamar. E que patamar: Lula é projetado como a medida da democracia, e a democracia burguesa, por sua vez, é projetada como a medida da realização dos interesses do proletariado, como a aura de legitimidade de um sistema político que, para os marxistas, deve ser demolido, e não regenerado.

Argumento n.º 7: “Lula é perseguido por ser operário e nordestino”
Lula é, no mínimo, dono de uma empresa de palestras e possui investimentos elevados em pelo menos três instituições financeiras. Enquanto proprietário do capital, ou de ativos que funcionam como capital, Lula é um capitalista. Ao menos é assim segundo a teoria do valor de Marx, na qual os indivíduos personificam as relações de produção conforme sua posição estrutural na sociedade. Contudo, como a figura máxima do PT, segundo os reformistas, deve pairar acima da lei do Estado, é provável que, para eles, ela também paire acima da lei do valor. Exageramos? De modo nenhum, pois eles nos asseguram que os processos da Lava Jato têm como objetivo destruir o Lula operário do passado, e não o Lula do presente.

Vale ponderar que os reformistas ainda não se puseram de acordo nessa polêmica (se Lula é ou não um operário). Os que dizem que sim já abandonaram Marx por completo. Os que dizem que não, no fundo, propõem uma releitura do materialismo histórico: a posição estrutural do indivíduo no passado seria mais determinante do que a posição estrutural do indivíduo no presente. Seria como dizer que, no fundo, o ultracapitalista Silvio Santos ainda seria um camelô (um pequeno-burguês pobre) em função de sua origem humilde. Bem se vê que se trata de um tipo de materialismo histórico que se agarra à origem histórica das coisas com tanto empenho que simplesmente se esquece de conferir tudo o que se passou depois. Seria um excesso infeliz de virtude? Não importa. O que importa é que o Lula situado como réu na Operação Lava Jato é um gerente do Estado capitalista reverenciado internacionalmente pelo imperialismo, e que, como tal, acumulou propriedades e se tornou um capitalista. Se ele o fez por meios puramente admitidos pelo direito brasileiro, francamente, não faz diferença numa análise política de classe.

Mais descabida ainda é a tese de que a prisão de Lula seria motivada por sua origem nordestina. Aqueles que sustentam essa posição são incapazes de caracterizar seriamente as movimentações políticas das classes dominantes, como também estão a um passo de inventar um “campismo regional”: estão quase dizendo que há uma cisão política fundamental entre um campo progressivo, a favor dos pobres e nordestinos, e outro, reacionário, a favor dos ricos, da classe média e dos sulistas. Também aí não há nenhuma surpresa, dado que é próprio do reformismo distanciar-se cada vez mais do prisma das classes sociais, substituindo-o de modo sub-reptício por análises campistas.

Argumento n.º 8: “Não se pode ser indiferente à possível condenação de Lula”
Por último, os reformistas estão convencidos de que é preciso ser contra ou a favor da viabilidade da candidatura de Lula, tanto como se deveria tomar o lado de uma das partes num confronto bélico. Não fazê-lo seria uma postura abstencionista que auxiliaria a burguesia. Essa é a última cartada com a qual os psolistas suplicam aos revolucionários para que se juntem a eles no séquito pró-Lula que se recusa a se aceitar como tal.

Cumpre explicar aos reformistas que o abstencionismo consiste numa fuga do debate, numa recusa de se tomar uma posição. Não é o que acontece se uma organização política, diante de dois campos em disputa, opta por se contrapor a ambos. Tal conduta não se equipara a uma abstenção. Trata-se, ao contrário, de um posicionamento próprio de um terceiro campo, da afirmação da independência de classe do proletariado no plano político e programático. Opor-se tanto ao entusiasmo burguês pela Lava Jato quanto à narrativa que coloca Lula como mártir consiste precisamente na afirmação dessa independência. Se Lula passou para o lado da burguesia, ele que lhe preste contas daquilo que fez e que implore para servi-la novamente, como já vem fazendo.

Tudo isso é inadmissível para os reformistas. Para eles, o centro da polarização do país é a disjuntiva “eleições com Lula x eleições sem Lula”. Isso se deve, sem dúvida, à fé supersticiosa que nutrem em relação à democracia liberal e ao sufrágio, assim como ao simbolismo que enxergam no representante do PT. Nossa esquerda equipara, sem nenhum pudor, o destino pessoal de Lula ao destino do proletariado brasileiro. “Depois de Lula, o dilúvio”! Percebe-se que, realmente, o que está em jogo é muito mais do que o voto ou não no ex-presidente. O que está em jogo é o próprio fetiche do lulismo (ou do que resta dele), o último ponto de apoio e o primeiro ponto de unidade da combalida frente-popular.

Conclusão

A absolvição ou a condenação de Lula, um dos maiores gerentes do capitalismo brasileiro, não muda as tarefas colocadas para o proletariado no presente momento. O ativismo brasileiro já desperdiçou tempo demais se insurgindo contra golpes inexistentes, provendo uma sobrevida ao fracassado projeto da colaboração de classes e atrasando a urgente construção de um campo operário e socialista. Deixemos que os reformistas e a alta cúpula do Estado se esvaiam na disputa sem fim sobre a inocência ou culpa de Lula. De nossa parte, não temos dúvida: temos que lutar contra todos eles, fazer a revolução proletária contra todos eles.