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(Millôr Fernandes)

quarta-feira, 24 de janeiro de 2018

Maurício Barreto: “Preocupa-nos nesse momento atual o que diz respeito às políticas sociais de saúde”

Quarta, 24 de janeiro de 2018
Da Abrasco
Associação Brasileira de Saúde Coletiva
Maurício Barreto durante a conferência “Superando crises econômicas: o papel do desenvolvimento científico tecnológico”, no X Congresso Brasileiro de Epidemiologia, em outubro de 2017  – Fotos: Rafael Venuto/Abrasco
Ph.D. em Epidemiologia (Universidade de Londres), professor titular aposentado do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia (ISC/UFBA), professor permanente do Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da mesma instituição, pesquisador sênior do Instituto Gonçalo Moniz da Fiocruz (Fiocruz-Bahia), coordenador do Cidacs – Centro de Integração de Dados e Conhecimentos para Saúde, membro titular da Academia Brasileira de Ciências. Este é Maurício Barreto, o primeiro entrevistado de 2018 do Observatório de Análise Política em Saúde (OAPS). No bate-papo, o pesquisador toca em temas como os desafios para implantação do Cidacs, o uso de grandes bases de dados nacionais para pesquisa no campo da saúde, a investigação sobre os efeitos dos cortes em políticas sociais para a saúde da população e o sistema de saúde brasileiro. “Houve aumento importante na expectativa de vida média da população, inclusive na expectativa de vida saudável, redução significativa e importante da mortalidade infantil, redução da mortalidade por doenças cardiovasculares etc. Há, portanto, uma acumulação de eventos positivos que se refletiram em benefícios na saúde da população. Preocupa-nos esse momento atual, principalmente no que diz respeito às políticas sociais e de saúde e outras medidas restritivas, ficando a pergunta do quanto tudo isto pode trazer de reduções ou de não-ganhos dos avanços anteriores”, avalia.
Observatório de Análise Política em Saúde (OAPS): Você coordena o Cidacs – Centro de Integração de Dados e Conhecimentos para Saúde, que completou um ano de implantação em dezembro de 2017. Fale um pouco sobre essa iniciativa e quais as perspectivas do projeto. O cenário de cortes na área de Ciência e Tecnologia tem impactado o Cidacs?

Maurício Barreto: O Cidacs é um projeto que nasceu de algumas ideias durante o período em que eu estava trabalhando mais ativamente no Instituto de Saúde Coletiva, e buscava dar continuidade a uma linha de trabalho de avaliação dos impactos de intervenções de políticas sociais na saúde. Os primeiros estudos foram feitos utilizando dados agregados, na sequência surgiu a ideia de trabalhar com grandes bases de dados individuados. Para isto, era necessária uma abordagem totalmente diferente porque implicava no uso e acesso a grandes bases de dados individuais e identificadas, desde quando era preciso fazer vinculação entre bases de dados. Seria então necessário construir uma estrutura para receber, preservar e processar estas grandes bases de dados. Existe uma questão de privacidade e de capacidade de processar esses dados.
O Cidacs nasceu destas ideias iniciais, como um local para albergar o projeto que denominamos ‘Coorte de 100 milhões de brasileiros’. É um projeto inovador e diferente do que normalmente fazemos no campo da Epidemiologia. Busca responder a questões científicas relevantes, através de uma abordagem diferenciada, já que é baseado no uso de dados existentes e não em dados a coletar, buscando através da vinculação destes dados responder a questões científicas que não poderiam ser respondidas de outra maneira.
O Cidacs foi criado em um momento difícil. Comemorou o seu primeiro ano em dezembro passado, tendo sido inaugurado em dezembro de 2016, sendo parte da Fiocruz-Bahia. É um momento difícil no que tange ao financiamento de ciência e tecnologia, tendo a ideia prosperado graças a uma série de eventos positivos que aconteceram, em especial os esforços para agregar recursos que viabilizassem seu nascimento. Apesar das dificuldades, o grupo que liderou a fundação do Cidacs entendeu que existem uma série de recursos que, de alguma forma, podem ser integrados, tendo-se feito o máximo para usar este potencial existente e com espírito bastante colaborativo. Se o Cidacs tivesse que ser construído do zero seria praticamente impensável, impossível naquele momento. Desde o espaço em que funcionamos, que foi cedido pela Secretaria de Ciência e Tecnologia do Estado da Bahia, o uso de espaço no Centro de Supercomputação do Senai-Cimatec [Centro Integrado de Manufatura e Tecnologia] e recursos diversos, como por exemplo, da Finep [Financiadora de Estudos e Projetos] e da Fiocruz-Bahia. Outros investimentos necessários vieram de uma série de chamadas que aplicamos e conseguimos sucesso, como da Fapesb [Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia] e de uma chamada que envolve o CNPq [Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico], a Fundação Gates e o Ministério da Saúde, a qual tem sido a principal fonte do financiamento; além do Ministério da Saúde, que diretamente também nos deu alguns recursos.
O Cidacs foi fruto desse esforço e da capacidade de agregar grupos e interesses diversos em torno de uma ideia. Ele nasceu em torno do projeto denominado ‘Coorte de 100 milhões de brasileiros’, porém, na medida em que se desenvolve, tem aparecido interesses e demandas no que o Cidacs vem fazendo. Assim, no momento temos uma série outra de projetos sendo gestados e, caso algum deles tenha sucesso, irão se abrindo novas possibilidades para o uso de grandes bases de dados nacionais para resolver problemas científicos no campo da saúde, da saúde coletiva e da epidemiologia. Essas grandes bases de dados podem ser uma incansável fonte de conhecimentos sobre questões de saúde da população brasileira. Neste sentido o Cidacs tem se movimentado na direção de ampliar seu escopo, seu campo de atuação, suas possibilidades, com a visão sempre integrativa, devido a necessidade de integrar conhecimentos no campo da saúde. A investigação científica no campo da saúde é muito intensa, porém grande parte do conhecimento é pouco integrado e essa ideia integrativa é central nos esforços que o Cidacs vem fazendo. Utilizar grandes bases de dados e, através da integração dessas bases e de abordagens multidisciplinares, envolvendo diferentes disciplinas, como a computação científica, a bioinformática, a epidemiologia, ciências sociais, economia, estatística, matemática etc, dar respostas a questões científicas complexas no campo da saúde.
Observatório de Análise Política em Saúde (OAPS): Essas plataformas foram selecionadas ou criadas a partir dos desdobramentos dessa ideia que começou com a coorte de 100 milhões?
Maurício Barreto: Exatamente, em grande parte sim, o movimento básico foi a coorte de 100 milhões, mas outras coisas rapidamente cresceram na medida em que outros interesses se agregaram ao Cidacs e também a visão do Cidacs foi se ampliando para não só atender a um projeto, mas atender toda uma concepção do uso de grandes bases de dados para resolver ou trazer à tona questões científicas relevantes no campo da saúde. Sempre com a visão de que muitos problemas no campo da saúde são complexos e que exigem abordagens integrativas e multidisciplinares.
Observatório de Análise Política em Saúde (OAPS): O uso das bases de dados brasileiras para a realização desses estudos tem sido um desafio?
Maurício Barreto: Tem sido um grande desafio, desafios de várias ordens. Uma delas é ter acesso a essa bases, como usamos em alguns momentos bases identificadas para fazer linkage, o acesso a essas bases não tem sido totalmente equacionada – conseguimos acesso a algumas bases, porém outras que necessitamos o acesso é mais dificultado. Há uma questão de acesso que não está bem definida entre os gestores públicos que têm a guarda dessas bases de dados, apesar de o Cidacs ter criado uma grande estrutura de segurança de dados, seguindo padrões internacionais nesta área.
Temos problemas metodológicos e operacionais. Grandes bases de dados exigem estrutura computacional e pessoas especializadas. Contamos com uma equipe de jovens desenvolvedores que estão trabalhando para acelerar esses processos computacionais. O Cidacs está se desenvolvendo como um centro para produzir pesquisas, para produzir conhecimentos, mas também para vir a ser um centro de dados o mais aberto possível, para que os dados que estejam no Cidacs possam ser acessados por outros pesquisadores. Isso implica na montagem de uma infraestrutura e de procedimentos de governança que são razoavelmente complexos e, no atual estágio, o grupo está em processo de aprendizado e desenvolvimento de ferramentas que atendam estes objetivos. São desafios que tentamos acelerar por associação a outros grupos mais experientes. Por exemplo, desde que o Cidacs foi concebido temos uma colaboração com o Farr Institute, que é um instituto ligado a algumas universidades britânicas, criado com objetivo maior de dar utilidade a bases de dados geradas pelo sistema nacional de saúde inglês para pesquisas. Isso se assemelha muito aos propósitos do Cidacs, então temos tentado acelerar o nosso processo de aprendizado acompanhando a experiência do Farr Institute.