Terça, 27 de fevereiro de 2018
Por: Priscila Martins de Oliveira Santana*
No ano passado, chegou ao Brasil a versão em português do livro “Austeridade: a história de uma idea perigosa”, cujo autor é o professor Mark Blyth, que ministra aulas de Economia na Universidade de Brown (EUA). Neste livro, o professor vai explicar justamente que o orçamento do governo é algo totalmente distinto do orçamento das famílias e não devem ser comparados. Na verdade, a ideia de que o orçamento público é como o das famílias tem propiciado uma grande distorção sobre a compreensão do que é orçamento público. A partir dessa concepção equivocada, muitos governos têm realizado reformas com sérios impactos sociais e econômicos por onde passa, como aconteceu em Portugal, Espanha e Grécia.
A vítima da ideia perigosa dessa vez é o Brasil, que está enfrentando uma histórica crise social e econômica como resultado dos cortes orçamentários. O bordão “o governo é como uma família, e por isso deve cortar os seus gastos para saldar as dívidas” tem sido disseminado pelo Governo Temer, pela grande imprensa e os supostos “especialistas” do mercado na tentativa de “fabricar um consenso” em torno da aceitação dos violentos cortes sobre as despesas primárias (saúde, educação, ciência e tecnologia, programas sociais, etc.) e de investimento, mas não dos serviços da dívida pública.
Essa noção sobre as contas do governo se transformou num dos principais “slogans” do governo ilegítimo de Michel Temer, sendo inclusive parte do seu discurso de posse. Vale recordar que no seu primeiro pronunciamento como presidente, na noite do dia 31 de agosto de 2016, Temer reproduziu em cadeia nacional exatamente a seguinte frase: “o governo é como a sua família. Se estiver endividada, precisa diminuir despesas para pagar as dívidas.” Desde então, a expressão se alastrou como faísca de fogo em rastro de pólvora, empobrecendo a compreensão sobre as finanças públicas no país. Um tema que envolve um conjunto de conhecimentos de áreas como a Economia, a Contabilidade Pública e o Direito Financeiro, passou a ser tratado de maneira simplista pelos grandes meios de comunicação e seus especialistas, construindo um quadro de desinformação generalizada da opinião pública, com o objetivo claro de convencer a sociedade a aceitar um ajuste fiscal do governo que atinge diretamente a população mais pobre.
Pretendo, neste breve espaço, trazer algumas informações, para o entendimento desse assunto que é de suma importância para a coletividade. O orçamento público tem uma capacidade significativa de interferir na distribuição de renda da sociedade, e essa característica por si só já é um argumento potente para desmontar o discurso daqueles que insistem na comparação de que o orçamento do governo é igual ao das famílias, ou seja, quando falamos em orçamento público estamos falando de agregados completamente diferentes, pois a responsabilidade do governo é com uma Nação, a qual envolve vários setores da sociedade e a decisão do governo afeta diretamente a todos. Mas vou além disso, buscarei explorar os seguintes pontos: i) quais são os principais aspectos do orçamento público em nosso país?; ii) no orçamento de 2017, quais foram as despesas cortadas e quais foram as que o governo garantiu o pagamento?
O orçamento público obedece a princípios específicos e busca atingir objetivos totalmente distintos daqueles que são perseguidos pelas pessoas na gestão do orçamento doméstico. Do ponto de vista econômico, a família é basicamente uma unidade de consumo, e a sua receita – normalmente composta de salários, rendas oriundas dos famosos “bicos”, transferências do governo e aposentadorias – tem como objetivo o atendimento das despesas de consumo (alimentação, saúde, habitação, educação, transporte, lazer, etc.) que são indispensáveis para a manutenção da vida. O governo, por outro lado, é mais complexo economicamente e politicamente do que as famílias, ele é mais do que uma unidade de consumo, é também uma unidade de produção e vetor de distribuição de renda nas sociedades capitalistas, isto é, as decisões do governo tem elevado poder de impactar na dinâmica da economia, principalmente estimulando ou retraindo a atividade econômica e afetando as possibilidades das famílias e das empresas lograrem mais renda e lucro, respectivamente.
Enquanto as famílias dispõem de elevado poder de decisão pessoal para definir como gastar os seus recursos, o governo se submete às necessidades da população, que é a sua razão de existir. Diga-se de passagem, nem mesmo as famílias cortam despesas de qualquer jeito, como a propaganda do Governo Temer quer fazer a população acreditar. É preciso dizer muito claramente que o governo não decide sobre os seus gastos como as famílias, pois ele se submete a um conjunto de normas e objetivos que deve ter como prioridade o atendimento das necessidades sociais de saúde, educação, moradia, previdência, assistência social, dentre outras.
O orçamento público brasileiro, meu caro leitor, além de ser formalmente uma lei autorizativa, conhecida como Lei Orçamentária Anual (LOA), tem também um caráter político. Ele é uma peça disputada pelos grupos econômicos mais influentes da sociedade, e no caso do Brasil, como a atual conjuntura política tem revelado, sabemos que esses grupos têm fortes influências sobre os poderes políticos. Para visualizar como esse processo tem ocorrido no país, basta ver como o Governo Temer gastou os recursos autorizados na LOA (lei orçamentária anual) de 2017. No ano passado, enquanto o governo federal cortou violentamente as despesas com saúde, educação, habitação e programas sociais, e iniciou um sujo ataque contra a previdência, destinou para os grandes bancos R$ 203,1 bilhões de reais na forma de juros da dívida pública.
No mesmo ano, a despesa com investimentos, que significa a construção de novas unidades hospitalares, escolares, habitacionais, infraestrutura, etc., foi de apenas R$ 18,4 bilhões, ou seja, um valor medíocre em comparação ao total do orçamento abocanhado pelos grandes bancos que seguem batendo recordes de lucro no país.
Como se não bastasse, o governo ainda abriu mão de cobrar dívidas bilionárias dos empresários para com a União, como no caso da renúncia fiscal dos mais de R$ 10 bilhões de dívidas que o agronegócio acumulava com a previdência. Esse pequeno exemplo mostra que o Governo Temer tem promovido uma transferência de renda dos pobres para os ricos, tendo como um dos efeitos dessas ações a piora na distribuição de renda do país, pois ao privilegiar os grandes bancos e as grandes empresas, o governo está atuando como um agente promotor da concentração de renda via orçamento público.
Os absurdos não se limitam à execução do orçamento do ano passado, já que a LOA de 2018 autorizou para o pagamento de juros da dívida pública mais de R$ 316 bilhões. Por isso, quando o Governo Temer lança mão da campanha “o orçamento do governo é igual ao da família”, ele tem um único objetivo: fazer você acreditar que é você quem deve pagar a conta pela farra dos milionários invisíveis, enquanto a grande maioria da sociedade brasileira ficará sem o atendimento público gratuito e de qualidade necessário em serviços básicos como saúde, educação, estradas, rodovias, segurança, etc.
*Priscila Martins de Oliveira Santana é Integrante do Núcleo de Estudos Conjunturais (NEC) da UFBA - Mestra em Economia pela Universidade Federal da Bahia. Desenvolve pesquisas em Economia no Grupo de Estudos em Economia Política e Desenvolvimento (GEPODE) e no Núcleo de Estudos Conjunturais (NEC) da UFBA. Integrante do Comitê Internacional pela Investigação e Anulação das Dívidas Ilegítimas (CADTM).
Fonte: Bacão News