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(Millôr Fernandes)

sexta-feira, 23 de fevereiro de 2018

Intervenção no Rio: as regras do jogo democrático não são um “luxo para tempos de paz”

Sexta, 23 de fevereiro de 2018
OPINIÃO
Marta Rodriguez de Assis Machado e Maíra Zapater
Soldados em penitenciária do Rio de Janeiro.
Soldados em penitenciária do Rio de Janeiro. RICARDO MORAES REUTERS
A defesa do ministro da Defesa, Raul Jungmann, da expedição pela Justiça de mandados “coletivos de busca, apreensão e captura” padece de diversos problemas, a começar pela sua incongruência com a lei. O artigo 243 do Código de Processo Penal determina que mandado de busca deverá “indicar, o mais precisamente possível, a casa em que será realizada a diligência e o nome do respectivo proprietário ou morador; ou, no caso de busca pessoal, o nome da pessoa que terá de sofrê-la ou os sinais que a identifiquem” e “mencionar o motivo e os fins da diligência”, devendo, ainda contemplar em seu texto eventual ordem de prisão preexistente.

Mesmo tendo sido produzido em 1941, na vigência da ditadura do Estado Novo, ainda assim o Código de Processo Penal estabeleceu exigências mínimas em respeito ao direito fundamental à privacidade, à inviolabilidade do domicílio e à individualização da pessoa acusada. Medidas tão invasivas tomadas contra pessoas que não têm condenação só podem acontecer se existirem “fundadas razões”, nas palavras da lei, e estas estiverem devidamente explicitadas na ordem judicial.
Não há no texto legal qualquer exceção ou possibilidade de alargamento de uma interpretação em prejuízo de direitos fundamentais do cidadão. A “realidade urbanística” mencionada pelo ministro, que dificultaria o cumprimento de tais medidas da forma como prevista na lei, podem até exigir diferentes estratégias de ação policial, mas jamais poderia justificar que cidadãos residentes em diferentes áreas urbanas tenham seus direitos constitucionais respeitados de forma desigual. Todos sabem, na realidade, que o ministro usou de um eufemismo para se referir às comunidades de favelas.
O ministro também incluiu a possibilidade de “captura” no conteúdo dos mandados, instituto não contemplado pela lei. Esperamos aqui que ele tenha se referido a mandados de prisão expedidos judicialmente e fundamentados nos termos do Código de Processo Penal e não a uma inovação nas hipóteses de restrição da liberdade dos cidadãos.
Não é novidade falar em violação de direitos e seletividade na aplicação da lei no dia a dia do sistema de Justiça criminal, mas o momento atual parece exigir uma cautela maior.
A intervenção federal, tal como prevista, é uma medida excepcional, que envolve a substituicão de uma autoridade estadual por uma federal, mas não justifica qualquer tipo de suspensão de direitos constitucionais. O decreto de intervenção, ao expressar que se trata de uma intervenção “de natureza militar”, estipula algo jamais previsto na Constituição. E o que é mais grave, significa na prática que arbitrariedades e lesões a direitos de qualquer ordem praticadas no âmbito da intervenção, não estarão sujeitas às regras e jurisdição civis, apenas à Justiça Militar.
Na reunião com o Conselho da República, o general Villas Bôas, comandante do Exército, afirmou ser necessário dar aos militares “garantia para agir sem o risco de surgir uma nova Comissão da Verdade”. É preocupante o desejo de uma autoridade de não ser responsabilizada pelos seus atos. A declaração de um ministro de Estado, na mesma data, anunciando uma exceção à lei na primeira medida concreta anunciada nessa operação parece ser mais um sinal sério de que a Constituição não será o parâmetro para as operações que acontecerem nas favelas do Rio de Janeiro.
As regras do jogo democrático não são um “luxo para tempos de paz”. É nos períodos conturbados que as garantias legais mostram sua função. Quando aquele que ocupa o cargo máximo do Poder Executivo requer autorização judicial para descumprir a Constituição, o que se espera é que os juízes cumpram seu papel mínimo, de restabeceler a aplicação do direito para todos, como já fez anteriormente o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro em outros casos de mandados “coletivos”.
Marta Rodriguez de Assis Machado e Maíra Zapater são professoras da Escola de Direito de São Paulo da FGV