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(Millôr Fernandes)

sexta-feira, 23 de fevereiro de 2018

Rio de Janeiro: Em operação feita “sem objetivo”, apenas para “abaixar a bola deles”, militares revistaram mochilas de crianças sem presença de conselho tutelar

Sexta, 23 de fevereiro de 2018
“Quando você faz isso você quer mandar um recado de terror para as famílias”

Revista ocorreu durante operação feita “sem objetivo”, apenas para “abaixar a bola deles”, segundo porta-voz militar; Conselho Nacional de Direitos Humanos diz que ação foi inconstitucional.

Por Ponte Jornalismo
e Portal ContextoExato
Foto: Causaoperaria.Org.Br

Uma operação conjunta das Forças Armadas e das Polícias Civil e Militar revistou nesta terça-feira (20/2) as mochilas de crianças da comunidade Kelsons, localizada na Penha, zona norte da cidade do Rio de Janeiro, sem a presença de conselheiros tutelares. O Comando Militar do Leste afirmou, em entrevista coletiva, por meio de seu porta-voz coronel Roberto Itamar, que a operação foi feita sem um objetivo, apenas para mandar um “recado” a criminosos e “abaixar a bola deles”.

A ação, vinculada ao decreto presidencial de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) em apoio ao Plano Nacional de Segurança Pública, assinado em 28 de julho de 2017, não tinha oficialmente ligação com a intervenção federal anunciada na última sexta-feira pelo presidente Michel Temer (PMDB). “Não existe um objetivo a ser cumprido, é mais para coibir a criminalidade, abaixar a bola deles”, afirmou o porta-voz, pontuando ainda que mais operações semelhantes podem vir a acontecer.

Segundo um agente do conselho tutelar ouvido pela reportagem, que pediu para não ser identificado, o órgão não foi informado sobre essa operação. “Diante da lei, se as crianças não apresentam riscos, não se faz necessário a revista” disse, deixando claro que é necessário questionar quais foram os critérios utilizados pelos responsáveis.

O conselho tutelar é um órgão autônomo da administração pública que possui a atribuição de zelar pelo cumprimento dos direitos das crianças e adolescentes. Ele pode ser acionado por qualquer cidadão sempre que se perceba abuso ou situações de risco contra a criança ou o adolescente.

“Atualmente há um entendimento de que o conselho tutelar não atua em situações parecidas, mas há inclusive precedentes para uma ação conjunta. Quando houve uma série de arrastões nas praias da zona sul, exigiu-se que fosse criado um aparato mais amplo, que incluiu o conselho tutelar. Mas isso tem que ser construído com cuidado pedagógico”, afirma Marcelo Burgo, professor do Departamento de Ciências Sociais da PUC-Rio.

Segundo nota da Seseg (Secretaria de Estado de Segurança), todas as 11 pessoas presas na operação eram maiores de idade, autuadas em flagrante ou em cumprimento de mandados. A secretaria afirmou à reportagem que quem deve responder pela revista das crianças é o Comando Militar do Leste.

Procurado pela Ponte, o Comando Militar do Leste não respondeu até agora.

Morador da Kelsons, o jornalista Anderson Gonçalves confirmou à Ponte que viu crianças em uniforme escolar tendo as mochilas revistadas enquanto se dirigiam às escolas municipais mais próximas da comunidade: a Souza Carneiro e a Presidente Eurico Dutra.

A cena de militares inspecionando mochilas foi flagrada pelo fotógrafo Léo Correa, da Associated Press, e publicada ontem na primeira página da Folha de S.Paulo. Embora o jornal não tenha achado que a revista às crianças era importante a ponto de mencioná-la no texto da reportagem, a imagem viralizou nas redes sociais.

“Se ocorresse na zona sul…”

“Não há qualquer justificativa para esse tipo de ação. Ela é desproporcional e inconstitucional”, disse à Ponte Fabiana Severo, representante da Defensoria Pública da União (DPU) e atual presidente do Conselho Nacional de Direitos Humanos. Para ela, a ação revela uma prática de racismo institucional. “É preciso chamar atenção das instituições brasileiras e da própria sociedade que está sob ameaça. Estamos à beira de uma crise sem precedentes desde a redemocratização”, afirmou.

Para Pedro Pereira, coordenador do Cedeca (Centro de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente), esse tipo de revista pode se caracterizar como abuso de autoridade e um vexame ou constrangimento, segundo o artigo 232 do ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente). “Alguns podem achar que isso é natural, mas se isso acontecesse em escola tradicional na zona sul haveria uma repercussão imensa”, compara. Em nota publicada hoje, o Conanda (Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente) também aponta a violação do ECA – no caso, do artigo 18, que proíbe submeter criança ou adolescente sob sua autoridade, guarda ou vigilância a vexame ou a constrangimento – e pede que “sejam evitadas situações de ameaça e violação de direito infanto-juvenil”.

“Essa atitude fere completamente o Estatuto da Criança e do Adolescente”, disse Marcelo Freixo (Psol), deputado estadual e presidente da Comissão de Direitos Humanos da Alerj (Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro). Ele disse que convocou uma reunião para essa quinta-feira (23/2), conjuntamente com outros órgãos, para discutir como protegê-los nesse novo contexto de operações na cidade.

Para Yvonne Bezerra de Mello, linguista e coordenadora do projeto Uerê, referência em educação e instrução de qualidade para crianças e jovens em risco social, essa ação precisa ser denunciada ao Ministério Público. “Se você deixar isso acontecer agora, antes mesmo da intervenção efetivamente começar, é porque a situação vai ficar feia”.

O posicionamento da Comissão de Direitos Humanos da OAB é igualmente crítico à revista, pois, para o presidente da comissão, Marcelo Chalreo, ações assim repercutem nas populações pobres e periféricas. “Quando você faz isso você quer mandar um recado de terror para as famílias”, disse.

Há 11 anos, o mesmo comportamento

Em 15 de março de 2007, um caso semelhante também emergiu entre agentes de segurança e crianças. Durante uma operação na favela de Vigário Geral, policiais civis revistaram mochilas de crianças e, segundo o jornal Extra, argumentaram que um traficante estaria obrigando uma criança de 8 anos a levar sua arma na mochila.

Um dia depois, durante o plantão noturno do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, a ONG Projeto Legal pediu um habeas corpus proibindo a revista generalizada de crianças no Estado, que foi aceito pela desembargadora Cristina Tereza Gaulia.

No pedido, a ONG solicitava que a inspeção acontecesse apenas com “fundada suspeita” e em companhia do responsável ou de um conselheiro tutelar. “Nesse passo, a medida noticiada – a busca e apreensão de mochilas escolares trazidas por crianças ou adolescentes – viola o direito à privacidade, o que se revela mais aviltante quando estamos diante de crianças, mormente se ainda realizado por agentes fortemente armados, a intimidar menores.”