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(Millôr Fernandes)

sábado, 15 de junho de 2019

Condenado por abusos sexuais contra meninas indígenas recebe homenagem da Comissão da Mulher de São Gabriel

Sábado, 15 de junho de 2019
Do IHU
Instituto Humanitas Unisinos

Manuel Carneiro e os dois irmãos levaram uma pena que totaliza mais de 100 anos de prisão.
A reportagem é de Elaíze Farias e Elvira Eliza França, publicada por Amazônia Real, 06-06-2019.
 O vereador Feliciano Borges, à esquerda, entregando o diploma da homenagem a Manuel Carneiro. (Foto: CM SGC)
O comerciante Manuel Carneiro Pinto, um dos quatro condenados pela Justiça Estadual do Amazonas por um dos crimes mais graves previstos no Código Penal, os abusos sexuais contra meninas indígenas de São Gabriel da Cachoeira (a 885 quilômetros de Manaus), foi homenageado pela Câmara do Município. Carneiro, que foi condenado a 29 anos de reclusão em regime fechado, mas está em liberdade por força de recursos, recebeu o título de Guardião da Fronteira da Cabeça do Cachorro em uma sessão solene realizada em 29 de maio.
Quem entregou o título ao comerciante foi o vereador e militar reformado do Exército brasileiro, Feliciano Borges (PROS), conforme divulgou o site Fato Amazônico.
Segundo registro na página da Câmara Municipal de São Gabriel no Facebook, a concessão do “título de honraria” dada ao comerciante Manuel Carneiro Pinto e mais 25 pessoas, foi uma decisão da Comissão dos Direitos da Mulher. O objetivo foi homenagear aquelas pessoas que contribuíram com o desenvolvimento do município de São Gabriel da Cachoeira AM, “tanto na parte política, empresarial e eclesiástica”.
“Sempre dedicaram-se de modo direto em suas vidas, enfrentando as dificuldades no cumprimento de suas missões”, diz o texto da Comissão. Entre os homenageados estava a missionária religiosa Maria Del Anunciacion Calvo Sanches.
A reportagem não conseguiu falar com a presidente da Comissão do Direito da Mulher, vereadora Jackeline Vieira Silva (PROS). Ela não atendeu às ligações.
Manuel Carneiro Pinto foi condenado em setembro de 2018, junto com os irmãos Marcelo Carneiro Pinto (68 anos de prisão) e Arimatéia Carneiro Pinto (42 anos de prisão). Na sentença, o juiz Flávio Albuquerque de Freitas, que foi designado pela Presidência do Tribunal de Justiça do Amazonas (TJAM) para julgar a ação penal, também condenou Agenor Lopes de Souza, empresário do ramo de tijolo, a 12 anos de prisão. Os irmãos Carneiro Pinto são proprietários de supermercados no município.
As penas dos quatro homens somam, juntas, 151 anos de reclusão em regime fechado. Na decisão, o juiz determinou que os acusados apelassem em liberdade; por isso estão sem cumprir a pena até o momento em razão de recursos que foram impetrados na Justiça.
Segundo informações do juiz Flávio Albuquerque de Freitas, eles foram condenados pelos crimes que constam nos artigos 217-A, 219-A e 218-B do Código Penal. O primeiro, refere-se à conjunção carnal ou prática de outro ato libidinoso com menor de 14 anos. O segundo, quando o réu praticou, na presença de alguém menor de 14 anos, ou induziu a presenciar, conjunção carnal ou outro ato libidinoso, a fim de satisfazer lascívia própria ou de outrem. O terceiro artigo refere-se quando o réu submete, induz ou atrai à prostituição ou outra forma de exploração sexual alguém menor de 18 (dezoito) anos ou que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, facilitá-la, impedir ou dificultar que a abandone.
Em entrevista à Amazônia Real, o vereador Feliciano Borges disse que a “proposta foi homenagear pessoas de São Gabriel que, no passado, contribuíram pelo desenvolvimento do município”. O município fica localizado no norte do Amazonas, na fronteira do Brasil com Colômbia e Venezuela. A população é 90% formada por indígenas de 23 etnias.
“Alguns ex-vereadores também foram homenageados. Ele [Manuel] foi um vereador e autor da Lei Orgânica do Município”, disse Borges, que não respondeu à pergunta da reportagem se a Câmara não se sentia desconfortável com o fato do comerciante ser um condenado da Justiça do Amazonas.
O presidente da Câmara de São Gabriel da Cachoeira, Dieck Diógenes (PR), também foi procurado pela reportagem para falar sobre a homenagem a Manuel Carneiro, mas ele não fez referência à condenação do comerciante. “Não foi apenas o Sr. Manuel Carneiro que recebeu essa homenagem. Foram mais de 25 pessoas e os critérios foram as pessoas que, de alguma forma, somaram com São Gabriel da Cachoeira tanto na parte política e empresarial. Esse foi o critério!”, disse ele, em uma mensagem via rede social, à reportagem.
Sob sigilo, por temer ameaças contra sua vida, uma das pessoas que denunciaram, em 2012, os abusos sexuais das meninas indígenas, disse à Amazônia Real que a homenagem é “um absurdo e demonstra a ignorância e o descaso dos vereadores”. “Isso é São Gabriel. Acontece dessas coisas”, disse.
Procurado, o promotor de São Gabriel da Cachoeira e autor da denúncia que pediu a condenação dos réus, Paulo Beriba, disse, através da assessoria de imprensa do Ministério Público Estadual, que “a Promotoria de Justiça de São Gabriel da Cachoeira não vai se pronunciar sobre o caso por entender que a concessão de comendas por parte da Câmara Municipal é de responsabilidade e autonomia, exclusivas, daquela casa parlamentar”. Ele também disse que “alguns condenados no processo citado estão recorrendo da sentença em liberdade”.
As professoras indígenas Sidneia Fontes Miguel, da etnia Pira-Tapuia, e Lorena Araújo, da etnia Tariana, de São Gabriel da Cachoeira, manifestaram indignação com a homenagem.
Sidneia disse à Amazônia Real que a homenagem ao comerciante é um “total descaso e falta de respeito com as mulheres de São Gabriel da Cachoeira”. “Estou indignada com isso. Um cidadão que foi condenado por abusar de meninas que eram crianças, adolescentes, muitas correndo riscos. Isso desqualifica as mulheres indígenas e não-indígenas de São Gabriel”, disse Sidneia.
Lorena Araújo disse à reportagem que, como mãe e como professora, “repudia veementemente a condecoração”. Segundo Lorena, a homenagem é “irresponsável e vergonhosa”.
“Assim como no passado ele ajudou o crescimento do município, segundo os argumentos dos parlamentares, nesse mesmo passado ele ajudou a destruir a vida e o sonho das meninas e de seus familiares. Então, nesse caso, o passado dele o condena”, afirmou Lorena.

Dez anos de impunidade

Os crimes de exploração e abuso das meninas indígenas já vinham sendo denunciados desde 2008 pelo Conselho Tutelar. Contudo, só começaram a ser investigados em 2012, depois de uma denúncia pública na imprensa local e nacional, a pedido do Ministério Público Federal.
Em 2013, foi decretada a prisão de 10 pessoas, dentre elas políticos, comerciantes, servidores públicos e militares. Segundo dados da investigação da Operação Cunhatã da Polícia Federal, os criminosos compravam a virgindade das meninas por dinheiro, roupas, celulares, frutas, iogurtes e bombons.
Conforme dados das investigações, as meninas indígenas eram abordadas pelos aliciadores em ruas de bairros mais pobres do município onde moram. Depois, eram levadas para as residências dos homens, ou para motéis, ou ainda eram abusadas dentro dos próprios automóveis que eles dirigiam. Doze meninas prestaram depoimentos e denunciaram os crimes de abuso sexual que haviam sofrido.
Nove dos acusados tornaram-se réus nos crimes de estupro de vulnerável, corrupção de menores, satisfação de lascívia mediante presença de criança ou adolescente, favorecimento da prostituição de vulnerável, rufianismo (tirar proveito da prostituição alheia) e coação no curso do processo.
Dois dos homens ainda foram acusados de crime previsto no art. 241-B do Estatuto da Criança e do Adolescente, no qual consta o crime de “adquirir, possuir ou armazenar, por qualquer meio, fotografia, vídeo ou outra forma de registro que contenha cena de sexo explícito ou pornográfica envolvendo criança ou adolescente”.
Desde as primeiras denúncias sobre os abusos sexuais de meninas indígenas de São Gabriel da Cachoeira aos conselheiros tutelares e missionárias católicas, em 2008, a maior parte dos criminosos continuava impune.
Em decorrência das denúncias feitas, três inquéritos foram abertos na Polícia Civil e somente depois dos crimes se tornarem públicos no estado e no país os casos começaram a ser investigados pelo procurador da República Julio Araújo, responsável pelo Ministério Público Federal do Amazonas. Contudo, a lentidão da justiça mantém os criminosos ainda impunes.
Outras cinco pessoas que são réus na ação penal por envolvimento nos crimes contra as meninas indígenas ainda não foram julgados. Uma pessoa foi absolvida em 2018. O processo tramita em segredo de justiça.
Em matéria publicada pela Amazônia Real, ano passado, famílias das meninas indígenas se sentem acuadas pela repercussão do caso e das denúncias. Todas as meninas abusadas hoje têm mais de 18 anos. Uma delas chegou a fazer parte do Programa de Proteção às Vítimas e às Testemunhas, mas saiu e nunca mais retornou para São Gabriel da Cachoeira. Na cidade, o clima ainda é de tensão e receio de represálias, conforme atestou a reportagem quando esteve na cidade.

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