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(Millôr Fernandes)

segunda-feira, 10 de junho de 2019

O vigésimo quinto deputado

Segunda, 10 de junho de 2019
Por
Juan Ricthelly
Uma inovação administrativa do Governo Ibaneis com a criação do cargo Deputado-Administrador

O Gama é uma cidade inovadora, e isso desde suas origens. Já dizia o Correio Braziliense do dia 9 de Outubro de 1960 “Nasceu Ontem a Cidade do Gama”. Segundo a matéria, havia sido construída para ser a maior cidade do Distrito Federal, comportando 100 mil habitantes, projetada pelo arquiteto Paulo Hungria, com a proposta descrita pelo jornal nos seguintes termos:
“O plano da cidade do Gama tem um traçado inteiramente diferente de todas as outras cidades satélites. A cidade é dividida em grandes quadras hexagonais. Os seis triângulos isósceles em que se divide o hexágono constituem a unidade residencial. Nas zonas de residências populares, onde os lotes são geminados, o triângulo é dividido em 100 lotes retangulares. Nas zonas das residências chamadas individuais, o triângulo é dividido em 76 lotes. A aparência destas unidades na planta, é a de uma colmeia. A área de cada lote é de 400 m². As casa ficarão no centro dos lotes, isoladas. Cada triângulo deste terá sua zona comercial, no centro da área. A cidade contará, porém, com uma zona de comércio especializado, no centro.”
O tempo passou, muita coisa se perdeu e se desvirtuou ao longo do caminho, mas os resquícios desse passado luminoso ainda seguem vivos no traçado original da cidade, que observado de cima fala por si só, na abundância de áreas verdes e praças desarborizadas e invadidas, nas esculturas do saudoso arquiteto e urbanista Ariomar Nogueira, nos Mercados Leste e Oeste, nas ruínas do queridíssimo Cine Itapuã, salvo por um grupo de comerciantes que impediu a conversão de um templo da cultura num templo religioso, ao contrário do Cine Amazonas que não conseguiu fugir desse destino,  mesmo não tendo perdido a pinta de cinema. E obviamente na Prainha que segue lá com sua beleza natural imponente, mesmo com o Rio Alagado seguindo o seu curso em silêncio, agredido pela poluição, esgoto e sujeira.
E apesar dos pesares, essa cidade dos favos de mel, mesopotâmia do Distrito Federal, celeiro de criatividade e arte, mesmo com o seu destino traído, seguiu sendo o útero de poetas, músicos, atores, escritores e artistas plásticos, parindo gerações inteiras de artistas talentosos e pessoas inovadoras e criativas para o Brasil e para mundo.
Mas hoje viemos aqui, para falar especialmente da mais recente inovação do Governo do Distrito Federal (GDF), materializada em nossa cidade de espírito inovador e criativo, por meio de um cargo público sui generis(1), talvez inédito na história do DF, que é a figura icônica do Deputado Distrital-Administrador Regional.
É senso comum que um deputado é um representante legítimo do povo, que deve defender os seus interesses, legislando em benefício da população, fiscalizando e dialogando com os outros poderes e destinando recursos públicos por meio de emendas parlamentares, sendo portanto um cargo de caráter eletivo e de grande poder.
As administrações regionais no desenho institucional do DF, podem ter CNPJ, mas não possuem personalidade jurídica, tampouco autonomia, constituindo meras descentralizações administrativo-territoriais do GDF, sendo o cargo de Administrador Regional, de livre nomeação e exoneração do Governador. Na prática o administrador é quase que um zelador da cidade, não possuindo poder decisório de fato, tendo basicamente liberdade para tapar buracos, podar árvores, capinar mato, remover lixo e entulho, e tudo isso condicionado à boa vontade de outros órgãos do poder público, os síndicos do Gamaggiore e do Delta-Gama talvez possuam mais autonomia que um administrador regional.
Logo, pode se supor sem grande esforço mental, que um Deputado Distrital, possui muito mais poder que um Administrador Regional, e esse é o ponto que nos leva à seguinte pergunta: O que levaria um deputado eleito abrir mão de tamanho poder para se dedicar aos cuidados de uma administração regional?
Os mais cínicos ou ingênuos poderiam alegar se tratar de um caso nítido de humildade e amor à cidade.
Como não somos nenhum desses, nos cabe analisar esse fato com bastante atenção e cuidado.
Daniel Xavier Donizet, 37 anos, foi eleito Deputado Distrital nas eleições de 2018 pelo PRP, com 9.128 votos, 474 só no Gama, depois disso, se juntou ao PSL do clã Bolsonaro, partindo pouco tempo depois para o PSDB de Aécio Neves e Eduardo Azeredo, se juntando ao grupo do agora Senador Izalci Lucas, conhecido por seus votos como Deputado Federal, em favor da Reforma Trabalhista, que restringiu direitos de trabalhadores, da EC 95/16 que congelou os gastos em saúde, educação, ciência e tecnologia por 20 anos, e contra o andamento das denúncias contra Michel Temer por duas vezes.
Sem base eleitoral sólida, com uma campanha fortemente engajada nas redes sociais e surfando na onda bolsonarista, não demorou muito para que Daniel Donizet após eleito, reivindicasse um pedaço do Distrito Federal para chamar de seu, apresentando-se de imediato como um deputado do Gama, mesmo a cidade tendo contribuído com apenas 5,19% do total de votos que obteve.
A princípio se contentou com a indicação de alguns cargos comissionados na Administração Regional do Gama, mas não era o bastante, se indispôs com a então administradora Dra. Juliana Navarro, subindo no púlpito da Câmara Legislativa do Distrito Federal (CLDF), para agredi-la verbalmente às vistas de tudo e de todos, fazendo juízos de valor sobre o seu estado mental e coroando o processo ao chamá-la de ‘administradora de merda’.
Como premiação pela falta de civilidade e cortesia, pouco tempo depois foi agraciado pelo Governador Ibaneis Rocha com o cargo da mulher que havia ofendido explicitamente. Cabendo aqui inclusive um questionamento ao Governador do DF: Ofender o administrador em exercício é um requisito para ser o próximo administrador da cidade?
Porque se for, parece que a mesma oportunidade não será dada à outros, já que nessa semana a Assessoria de Comunicação (ASCOM) da Administração Regional do Gama, proibiu comentários de caráter político-partidário e ofensas pessoais, ameaçando os transgressores com bloqueio e banimento das redes sociais.
Obviamente que ninguém é favor de injúria, calúnia e difamação de indivíduos, seja no Facebook, no Instagram ou no púlpito da CLDF, mas chega a ser curioso que uma figura pública eleita, com aparente predisposição para sommelier de legendas político-partidárias e tendo como fato político de maior destaque em sua atuação parlamentar uma agressão verbal contra sua antecessora, se considere revestido de uma túnica moral com legitimidade para propor censuras que nem ele mesmo foi capaz de se impor.
Até aqui respondemos à primeira pergunta. E a resposta resumida é, constituir uma base eleitoral inexistente até o presente momento para às eleições de 2022.
Mas aí surgem outras: Onde começa o Deputado e onde termina o Administrador Regional?
O Deputado-Administrador saiu da CLDF, mas a CLDF não saiu dele, prova disso é o salário, que segundo matéria do Portal DF em Foco, segue sendo o de deputado, na casa dos R$ 25.000,00 brutos e R$ 18.869,00 líquidos.  Contrastando com os R$ 14,4 mil que com descontos receberia como Administrador Regional, sendo na prática o 25º deputado da CLDF, que no papel deveria possuir 24, de modo que o Gabinete da Administração Regional do Gama, se converteu no 25º Gabinete.
Tamanha é a confusão, que nas postagens da página institucional da Administração se verifica no final de cada texto as hashtags #MandatoAtuante e #MandatodeResultados. Um Administrador Regional é detentor de um mandato? Não e sim.
Seria ótimo se esse cargo fosse eletivo e o povo do DF pudesse escolher seus próprios administradores regionais, e embora a Lei 6.260 de 2019 esteja valendo, ela ainda não é uma realidade. Então não, o Administrador segue sendo um cargo de confiança do Governador.
Sim nesse caso especial, onde temos a figura inovadora do Deputado-Administrador, que possui prazo de validade, segundo ele mesmo disse ao portal Metrópoles:
“A princípio, vou ficar afastado por 120 dias. Sou ouvidor da Câmara Legislativa e não quero abrir mão do meu posto. Caso ache necessário, posso voltar antes temporariamente e depois peço nova nomeação na administração regional”.
Ou seja, enquanto não se descobre se é Deputado ou Administrador, ficará sendo os dois, recebendo o maior salário obviamente, o que não é ilegal, mas certamente imoral.
Diante disso, temos três cenários possíveis.
No primeiro seguiremos tendo o privilégio de usufruir dessa novidade, tendo um Deputado-Administrador até 2022, que vez ou outra dará um pulo na CLDF só para não perder o calor da cadeira.
No segundo, teremos um Deputado-Administrador por 120 dias, com o seu regresso para a CLDF e a indicação de alguém de sua confiança para a Administração Regional do Gama, mantendo assim suas peças marcando o Gama no tabuleiro de War do DF.
No terceiro, veremos a aplicação prática da Lei 6.260/19 onde a própria população escolherá seus administradores regionais, se convertendo então a figura do Deputado-Administrador em uma inovação do passado, que nos recordaremos sem nenhuma saudade.
Enquanto nenhum dos três cenários se configura permaneçamos atentos e desfrutemos dessa novidade única de termos um Deputado-Administrador, ou seria Administrador-Deputado?
Juan Ricthelly
1 expressão em latim que significa “de seu próprio gênero” ou “de espécie única”
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