Imprensa é oposição. O resto é armazém de secos e molhados."

(Millôr Fernandes)

sábado, 22 de junho de 2019

Submetem-se docilmente à nova forma de escravidão dos dias atuais aqueles que desconhecem a própria força

Sábado, 22 de junho de 2019
Do
Blogue Náufrago da Utopia

SOBRE A SERVIDÃO  VOLUNTÁRIA



Por Dalton Rosado

Todos nós temos o hábito de nos acomodarmos aos hábitos e, desafortunadamente, aos maus hábitos. Esta é uma das causas da servidão voluntária continuada, que acarreta a abdicação ao direito à liberdade e o esquecimento das benesses e gozos desta, por desconhecimento. Afinal, não se sente falta de uma boa iguaria quando não se a conhece.

No filme Um sonho de Liberdade (de 1994, dirigido por Frank Darabont e estrelado por Morgan Freeman) temos uma exemplar demonstração de como o ser humano dominado pela privação continuada da liberdade, ao ver-se finalmente livre, não se adapta às novas circunstâncias e comete suicídio. Causas mortis: as condições adversas que encontra fora das grades, provocadas pela velhice e alheamento social, após décadas da rotina prisional a que já se habituara (*).

Existem relatos no Brasil de que negros escravizados por senhores feudais —os quais, apesar do regime escravista, conservavam algum resquício de humanidade—, continuaram servindo-os voluntariamente após a decretação da Lei Áurea.
E anti-abolicionistas chegavam a afirmar em seus discursos que os negros libertados sofreriam ainda mais do que na antiga condição, porque não seriam aceitos como trabalhadores assalariados.


Tratava-se de um discurso falsamente humanista que, a pretexto de preocupar-se com os problemas que os negros encontrariam adiante, tinha como objeto teleológico a manutenção da segregação social de então (embora o futuro, melancolicamente, lhes tenha dado alguma razão, posto que até hoje quem mais morre nas mãos da polícia e vive nos guetos são seus descendentes diretos, mas esta constatação não justifica a existência da escravidão sob nenhuma forma). 

Os anti-abolicionistas não compreendiam a natureza de uma nova escravização que tomava forma, proporcionada pela pretensa liberdade de escolha: o detentor da força de trabalho poderia vender aquela que era a sua única propriedade (e se transformara em mercadoria) a quem bem entendesse. 

E isto diante de um mercado no qual a oferta dessa mesma mercadoria (mão-de-obra semi-escrava) seria sempre maior do que a necessidade de sua compra, o que equivaleria a desemprego social sem culpados identificáveis; baixos salários; e custos menores de produção, já naquela época ditados pela concorrência de mercado.

Tratar os negros como animais a serem alimentados e que necessitavam de moradia (por mais abjeta que fosse) já saía mais caro do que pagar-lhes um salário mínimo pelo quantitativo de valor produzido numa jornada diária de trabalho abstrato, o novo nome da escravidão. Ademais, o volume de dinheiro em circulação aumentaria com o pagamento de salários, motor da nefasta economia mercantil em ascensão.         

O processo de escravização humana, em termos de existência dos hominídeos sobre a face da Terra, é recente. Nas Américas os indígenas não escravizavam ninguém, como o faziam os civilizados quando chegaram no novo continente com suas cruzes, crucifixos e supostamente elevados padrões religiosos, ético-morais e jurídicos.

Tanto assim que, diante da insubordinação indígena ao regime de escravidão, foi preferível matá-los (como ocorreu da América do Norte aos confins da América do Sul), ocupar as suas terras, e trazer negros escravizados da África para a exploração colonial.

Posteriormente, abolida a escravidão direta, a solução foi atrair imigrantes europeus empobrecidos e dispostos a aceitar condições subumanas de trabalho abstrato.

A transição do regime feudal escravista direto (no qual a submissão se dava diante de um senhor feudal protegido por um regime político e jurídico monárquico-absolutista), para o regime de escravização indireta do trabalho abstrato (no qual a submissão se dá ao capital, uma lógica abstrata de mediação social, impessoal, que se tornou o Deus abstrato, sem carne e osso e, por isso mesmo, muito mais difícil de ser identificado como algoz e punido por isso) foi uma exigência evolutiva do modo de produção social. 


A possibilidade de um índio, negro ou imigrante europeu ficar rico a partir das regras do jogo estabelecidas pelo capital, sem restrições declaradas de natureza racial (embora elas existam concomitantemente às segregações de gênero), encantou e ainda encanta os indivíduos sociais assim transformados em cidadãos.

Afinal, sempre se conhece alguém que com arrojo, esperteza, habilidade, esforços inauditos, atividades criminosas, sonegações, sorte ou coisa que o valha, conseguiu sair da pobreza para uma nova realidade de consumo, posição e aceitação social. 

Então, creem os otimistas, com toda a ingenuidade do mundo, qualquer um pode almejar a mesma ventura. 

Contudo —o que preferem ignorar aqueles que jogam na loteria quando o prêmio está acumulado, fazendo planos de como gastar o dinheiro cuja chance de chegar-lhes às mãos são infinitesimais— são raros e bem poucos os que conseguem romper a barreira da luta fratricida pela acumulação da riqueza abstrata, o capital.

Tornamo-nos assim, por imposição social ou por devaneios individualistas de enriquecimento improvável, servos voluntários de uma lógica de mediação social abstrata, irracional, destrutiva e autodestrutiva. 

E, por nos acomodarmos à sua ditatorial, fetichista, reificada (coisas inanimadas assumem identidades de coisas vivas e nos dão ordens) e segregacionista forma de ser, esquecemo-nos do doce gosto da liberdade. 


Aceitamos, assim, o discurso falacioso da democracia burguesa como se fosse o altar sagrado, imaculado e único a ser celebrado e protegido; e como se qualquer outra forma social de produção e organização jurídica lhe fosse inferior.

Este é o resultado do hábito de se viver sob a escravidão indireta do capital, síntese da forma-valor como mediação social, e se desconhecer a verdadeira liberdade, conformando-nos à servidão voluntária como forma de conduta imutável.

Mas para perplexidade dos que se assenhorearam do poder econômico (aquele que realmente manda sob o capital) e dos outros feitores auxiliares da nova escravização que gozam dos seus benefícios, como os funcionários públicos de altas categorias (magistrados, políticos, altos funcionários públicos dirigentes de órgãos e empresas estatais), o capital, esse tirano impessoal e fisicamente inatingível, destrói-se por seus próprios fundamentos. 

Todas as tentativas de mantê-lo saudável caem por terra, demonstrando quão imperativa é a implementação de um novo contrato social.

Estamos a constatar a necessidade e a premência de mudanças sociais, mesmo diante da recalcitrante oposição dos que tudo fazem para preservar esse sistema de produção social e organização que se tornou obsoleto.

O vazio dos discursos midiáticos e institucionais de defesa da ordem vigente, bem como as medidas desesperadas que vêm sendo tomadas, não se coadunam com os resultados almejados. 


Assim, aprofunda-se o choque entre a anunciada eficácia dos conceitos emitidos e medidas adotadas, tido(as) como válidos(as). Isto se evidencia:
— na realidade do desemprego estrutural;
— no aprofundamento da pobreza social;
— na desassistência social;
— na crueldade bárbara da violência urbana;
— no ecocídio territorial, marítimo e atmosférico;
— na ostentação do consumo como valor e ser seguido e na aceitação e incenso da vulgarização comportamental;
— na beligerância de todos contra todos numa guerra fratricida pela busca do dinheiro cada vez mais exíguo e impossível de se obter num montante suficiente para um adequado provimento das necessidades sociais básicas de consumo;
— na opressão estatal;
— na renúncia ao direito como forma de manutenção do Direito (caso explícito das reformas de Previdência Social e trabalhista);

— na defesa do fundamentalismo religioso retrógrado como regra ético-moral (hipocritamente) tida como válida;
— na defesa da força das armas em detrimento da força da razão; e
— na defesa jurisdicional de princípios morais parciais e hipócritas como se fossem o oráculo da santidade, com métodos aéticos, amorais, e processualmente reprováveis para o combate a determinados tipos de criminalidade.

Vale acrescentar, quanto ao último item, que não se questionam os crimes oficialmente aceitos (extração de mais-valia, juros do cartão de crédito, sinecuras que atestam desigualdades sociais, etc.), sendo esta uma postura que nega a isonomia de direitos, denuncia um republicanismo tendencioso e se afasta da realização do ideal de justiça.


A verdade é que a servidão voluntária decorre do desconhecimento de sua própria força por parte dos servos.

Há duas maneiras de se apagar o fogo: uma é jogar água numa quantidade maior que a chama combatida; a outra, isolar a matéria que alimenta o fogo de tal modo que a chama se extinga por falta de combustível.

Aos cidadãos transformados em servos voluntários de uma lógica que os oprime e da institucionalidade dela decorrente e igualmente opressora, bastaria optarem pela segunda opção, cruzando os braços à servidão voluntária. 

Fariam assim voar pelos ares toda a aparente fortaleza do capital que os oprime, sem necessidade de dispararem um tiro sequer. 

Mas, para tanto, precisam adquirir consciência sobre a natureza da sua opressão e descobrir o que seja a verdadeira liberdade! (por Dalton Rosado) 


*"O pássaro na gaiola, já nascido em cativeiro / aprende a cantar e canta se permanece prisioneiro. / Mas, se lhe abrem a portinhola, / bem capaz é de morrer. / Com seu medo à liberdade, / já não sabe nem viver", versos que encaixam como uma luva neste contexto, fazem parte de um tema musical da antológica peça teatral Arena conta Tiradentes, de 1967 (nota do editor).