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(Millôr Fernandes)

sexta-feira, 30 de abril de 2021

A DESORGANIZAÇÃO ORÇAMENTÁRIA COMO CONSEQUÊNCIA DO QUE EXISTE DE PIOR NA PRÁTICA POLÍTICA BRASILEIRA

Sexta, 30 de abril de 2021

Aldemario Araujo Castro

Professor

Advogado

Mestre em Direito

Procurador da Fazenda Nacional

Brasília, 30 de abril de 2021


A grande imprensa noticiou os principais capítulos da profunda desorganização institucional instalada em relação ao orçamento da União para o exercício financeiro de 2021. Chegamos a ingressar no mês de abril sem a lei orçamentária em vigor. Mas esse atraso não foi o aspecto mais grave do quadro vivenciado. O propalado impasse entre o Executivo e o Legislativo, em torno das emendas parlamentares, denuncia a presença de algo muito mais complexo, profundo e deletério.

Afinal, o governo negociou, com sua base de apoio congressual, composta majoritariamente pelo guloso Centrão, o atendimento de praticamente todas as emendas parlamentares ao orçamento. Segundo várias notícias veiculadas na mídia, os valores envolvidos nessa operação chegaram perto de 50 bilhões de reais. Entretanto, o “teto” (seletivo e perverso) de gastos públicos definido pela Emenda Constitucional (EC) nº 95/2016, revelou-se um formidável entrave a ser superado. A “solução” encontrada no Parlamento, para que o orçamento se ajustasse ao “teto” e resguardasse as emendas, impôs a redução das dotações orçamentárias para despesas obrigatórias, a exemplo das remunerações dos servidores públicos e pensões.

Como o projeto de lei orçamentária não podia “simplesmente” ser sancionado como remetido pelo Congresso Nacional, entrou em cena a conhecida e recorrente “criatividade” no trato das finanças públicas no Brasil. Paralelamente à recomposição das dotações relacionadas com as despesas obrigatórias e uma relativa redução no valor das emendas parlamentares foram tesourados gastos não obrigatórios do ponto de vista estritamente financeiro, mas com profundas implicações negativas na execução das políticas públicas. Com efeito, como observado nas manchetes dos jornais impressos e eletrônicos, faltarão, entre outros, recursos para o censo, fiscalização ambiental e o custeio mais elementar da máquina pública.

Ademais, as despesas para o combate ao novo coronavírus foram retiradas do “salvador” “teto” de gastos. Assim, será viável “manter” o “teto” e não modificar o dogma da meta de superavit primário. Na prática, as finanças públicas trabalharão com despesas submetidos ao “teto” de uma lado e dispêndios sem sujeição ao “teto” de outra banda.

Essas operações em torno da peça orçamentária para o exercício de 2021 convivem com um movimento mais amplo e mais preocupante. Trata-se da constitucionalização de festejados e “saudáveis” regimes de austeridade fiscal (EC n. 95/2016 e EC n. 109/2021). Em verdade, essas contenções de despesas públicas encobrem um poderoso ataque às políticas públicas de interesse da grande maioria da população brasileira que vive (ou sobrevive) em condições socioeconômicas em franca deterioração, com pandemia ou sem ela.

Perceba-se que nessa babel financeiro-orçamentária um certo modo de fazer política resguarda suas “posições” na batalha da alocação de recursos públicos. A inusitada situação do orçamento para o exercício de 2021 decorre da “proteção” das emendas parlamentares. Essas mesmas emendas congressuais já tinham obtido o carimbo de impositivas pelas EC n. 86/2015 e EC n. 105/2019 (outros capítulos da constitucionalização antes referida).

Todo esse jogo em torno das emendas parlamentares escancara uma das mais nefastas formas de fazer política no Brasil. Trata-se do indecente balcão de negócios em torno da destinação de recursos públicos por intermédio do orçamento. Escancaradamente, à luz do dia, com cobertura pela imprensa, trocam-se votos no âmbito da atuação parlamentar por verbas orçamentárias.

São urgentes e estratégicas mudanças profundas na dinâmica das emendas parlamentares ao projeto de lei orçamentária. As conhecidas “emendas paroquiais”, voltadas, em grande parte, para o atendimento de demandas cosméticas com nítido caráter eleitoreiro, precisam ser extirpadas do cenário institucional. Somente emendas de bancadas ou congêneres, alinhadas com o planejamento estatal responsável e transformador da triste realidade social brasileira (art. 3o da Constituição), deveriam ser admitidas.

Por outro lado, pelas enormes consequências deletérias para os costumes políticos e pelo grande potencial de desordem institucional, como testemunhamos no quadro financeiro-orçamentário atual, cabe ao eleitor e a sociedade organizada fazer escolhas eleitorais por agentes políticos refratários às barganhas com recursos orçamentários e comprometidos com a responsabilidade social e a transparência no trato das alocações de recursos do contribuinte-cidadão nos vários instrumentos orçamentários. Também devem ser adotados os pertinentes instrumentos de estrito acompanhamento da ação política, notadamente parlamentar.