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(Millôr Fernandes)

sexta-feira, 30 de abril de 2021

Quebra de patentes das vacinas de Covid-19: uma questão ética e humanitária

 Sexta, 30 de abril de 2021

Professora Fátima Sousa*

A quebra de patentes das vacinas é fundamental para acelerar a imunização, reduzir a pressão nos hospitais, impedir o surgimento de novas variantes do Covid-19 e evitar que o número de mortes aumente ainda mais. Tardiamente, a Câmara Federal realizou em 08/04/2021 audiência pública para debater a quebra de patentes das vacinas de Covid-19, na Comissão de Relações Exteriores, com a participação de especialistas, tema que se encontra em pauta na Organização Mundial do Comércio (OMC) e Organização Mundial da Saúde (OMS).

Com a mesma morosidade, o Senado Federal esperou que mais de 400 mil vidas fossem ceifadas para que, somente em 29/04/2021, aprovasse o Projeto de Lei que permite a quebra das patentes, mesmo assim, 19 dos 81 senadores votaram contra o direito de acesso rápido e barato aos insumos estratégicos para o enfrentamento da pandemia que nos assola. Sem falar da grande divisão provocada naquela casa, ao retirar o tema da pauta de votação no início do mês, atendendo a pressões do Governo Federal.

Precisamos saber qual a posição do Brasil sobre a matéria, uma vez que em 2020, a Índia, e a África do Sul levaram à OMS uma proposta de suspensão das patentes de produtos de combate ao novo coronavírus, apoiada por mais de 100 países. O Brasil não se posicionou a favor da quebra de patentes dos imunizantes, ficando ao lado dos EUA, Reino Unido, Suíça, Noruega, Japão, e outros países da União Europeia que se colocaram contra a proposta.

Ao assumir essa atitude, o Brasil fragiliza as históricas lutas em defesa da saúde pública, datadas desde seu protagonismo na colaboração à criação da OMS (1948), na assinatura da Declaração de Alma Ata (1979), e de Astana, sobre Atenção Primária à Saúde - APS (2019), esta como referência internacional, estruturada por meio da  Estratégia Saúde da Família (ESF) na organização do Sistema Único de Saúde (SUS), universal, integral e equânime, além do seu compromisso com a Agenda 2030 rumo ao cumprimento dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (2015).

O Brasil não pode fazer de conta que não é de sua responsabilidade interfederativa assegurar vidas saudáveis e promover o bem-estar para todos, em todas as idades, como um bem inalienável e direito de plena cidadania. Por isso, faz-se mais que urgente “quebrar patente” das descobertas de vacinas e outros insumos estratégicos ao combate do Covid-19 diante da emergência global de saúde provocada pela pandemia e da urgência de acelerar a imunização e salvar o máximo de vidas possível, a liberação para que mais laboratórios possam produzir as vacinas é fundamental, e reafirma o valor da solidariedade humana.

O Brasil não pode compor a mesa do nacionalismo exacerbado dos países centrais, que apresentam 16% da população global, para reserva de mercado comprando antecipadamente 60% de produção mundial das vacinas, fato que pode levar a que os países pobres só possam ter acesso as vacinas em 2024. Isso é inaceitável. Uma atitude que se configura em um verdadeiro apartheid.

Devemos sim, nos juntar e apoiar, incondicionalmente, os 100 líderes que durante a Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) aprovaram acordo de cooperação internacional, objetivando garantir o acesso global a medicamentos, vacinas e equipamentos médicos para enfrentar a pandemia de coronavírus.

O Brasil já tem experiência nessa matéria, quando quebrou nos anos 90, a patente do produto Efavirenz para acelerar e baratear o tratamento do HIV/AIDS. Quantas vidas a quebra de patente desses medicamentos já salvou no planeta? São incontáveis! Por isso, países em desenvolvimento como Índia e África do Sul têm liderado as pressões na OMC pela suspensão dos direitos de propriedade intelectual, na compreensão que o estado é financiador de inúmeras pesquisas farmacêuticas, com alto investimento de dinheiro dos cidadãos de todo o planeta para que as descobertas de vacinas e medicamentos possam acontecer. Por isso, nada mais justo do que ter todas as vidas humanas protegidas pela descoberta da vacina de forma mais ágil através da quebra das patentes.

Nesse sentido, é preciso destacar que a quebra de patentes é fundamental aos países emergentes, e se configura como uma medida essencial para enfrentar a escassez de vacinas e evitar que os estes países fiquem à mercê do monopólio das grandes farmacêuticas dos países desenvolvidos e possam produzir em larga escala suas próprias vacinas.

Não podemos discutir a quebra de patentes de forma descontextualizada. É preciso ver essa questão como um bem público global. Nesse sentido, é importante recordar que a agenda sobre o complexo da saúde vem sendo debatida, de forma responsiva pelos cientistas e suas instituições, há décadas. Alertando às autoridades sanitárias, políticas e econômicas, que 90% dos insumos farmacêuticos ativos, 90% dos remédios e vacinas,  80% dos equipamentos hospitalares e 60% dos Equipamentos de Proteção Individual (EPI), são importados.

Em 2021, as importações em saúde vão chegar, em média, a U$20 bilhões. O orçamento inteiro do Ministério da Saúde (MS) será importado sem produção e sem priorizar a população brasileira. O futuro ainda é mais ameaçador, pois 88% das patentes da saúde estão apenas em 10 países.

Diante da tragédia que passa o Brasil, cuja previsão de perdas pode chegar a meio milhão de vidas até o final desse semestre, passou da hora do Congresso Nacional aprovar o Projeto de Lei 1462/2020, de autoria de toda a oposição na Câmara dos Deputados, com vistas a quebra de patentes, sendo essa a solução coletiva para combater a pandemia. Só podemos vencê-la com a adoção de uma estratégia coletiva de enfrentamento ao vírus. E isso passa pela suspensão da propriedade intelectual sobre a produção de imunizantes. Essa é a nossa luta!

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*Professora Fátima Sousa
Paraibana, 41 anos dedicados a saúde e a gestão pública; 
Professora e pesquisadora da Universidade de Brasília;
Enfermeira Sanitarista, Doutora em Ciências da Saúde, Mestre em Ciências Sociais; 
Doutora Honoris Causa;
Implantou o ‘Saúde da Família’ no Brasil, depois do sucesso na Paraíba e em São Paulo capital; 
Implantou os Agentes Comunitários de Saúde;
Dirigiu a Faculdade de Saúde da UnB: 5 cursos avaliados com nota máxima;
Lutou pela criação do SUS na constituinte de 1988;
Premiada pela Organização Panamericana de Saúde, pelo Ministério da Saúde e pelo Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde.