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(Millôr Fernandes)

sexta-feira, 23 de abril de 2021

MEMÓRIA, Relato de Prisão, por Alípio Freire | Parte 2: Um quartel do Exército brasileiro

Sexta, 23 de abril de 2021

Aos 23 anos, Alípio Freire foi sequestrado, torturado e passou cinco anos preso durante a ditadura militar - Cadinho Andrade/JU/UFRGS

Vítima da covid-19, Alípio Freire relatou, em 2002, as torturas e os anos na prisão durante a ditadura militar no Brasil

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
 

O jornalista, escritor e artista plástico Alípio Freire faleceu na última quinta-feira (22), aos 75 anos, em decorrência da covid-19.

Um dos militantes da Ala Vermelha, grupo dissidente do PCdoB que combateu a ditadura militar, Freire foi preso aos 23 anos pela Operação Bandeirantes (Oban) e sofreu três meses de torturas e interrogatórios, permanecendo encarcerado entre 1969 e 1974 no Presídio Tiradentes, em São Paulo.

Alípio Freire, anistiado pelo Ministério da Justiça em 2005, é autor de diversos livros, entre eles “Estação Paraíso” e “Estação Liberdade”. 

Em "Relato de Prisão", Freire registra os dias de antecederam sua prisão, a rotina no cárcere e as sequelas sofridas pela tortura. O relato é o depoimento oficial entregue pelo jornalista à Comissão de Indenização dos perseguidos pela ditadura no Estado de São Paulo.

O Brasil de Fato, que publica o material pela primeira vez, com exclusividade, dividiu o documento em quatro partes. A primeira, publicada na última quinta (22), descreve o sequestro por agentes do regime


A segunda, publicada nesta sexta (12), descreve as sessões de tortura a que foi submetido por agendes do regime. Confira:

Um quartel do Exército brasileiro

Desembarcado num dos pátios do quartel por volta das 22 horas, tive uma ruidosa recepção por parte de uma dezena de agentes da Oban, que chamavam, aos berros, o meu nome-de-guerra: “O Biu chegou! O Biu chegou!” (Importante ressaltar que até aquele momento meus seqüestradores ainda não haviam ligado esse nome a mim. Sustentava a versão de que não sabia de nada, negando inclusive ter conhecimento do que era um nome-de-guerra). Juntamente com os que me conduziam, formaram imediatamente um círculo em torno de mim, jogando-me de um lado para o outro à base de socos, tapas, pés-de-ouvido, pancadas com bastões de madeira e borracha, e pontapés. Isto durou – creio – cerca de meia hora.

Fui empurrado então por uns poucos degraus acima, entrando em uma das edificações que compunham o Rec-Mec. Ali, tiraram-me por algum tempo o capuz e recebeu-me o comandante daquela unidade militar, um oficial do Exército brasileiro, o major Beltrão, que se fazia acompanhar de alguns dos seu acólitos militares e civis – todos torturadores conforme não foi difícil perceber em poucos instantes. Os que compunham o séquito do major Beltrão – sem exceção – usavam o codinome de Guimarães, para evitar que pudessem ser identificados. E, enquanto permanecemos na Oban, todos se chamaram Guimarães. Foi na presença do major, e logo depois de me haverem tirado o improvisado capuz, que recebi o primeiro “telefone”: forte pancada desferida pelos torturadores com as mãos em côncavo e simultaneamente nas duas orelhas do torturado e que, com o deslocamento de ar e subseqüente pressão sobre os ouvidos, provoca diversos danos físicos, desde surdez temporária até perfuração ou ruptura dos tímpanos. Muitos “telefones” se seguiriam ainda naquela noite, nos dias e meses seguintes.

Enfiaram-me outra vez a fronha na cabeça, e me deixaram por algum tempo numa espécie de antessala. Esperavam retirar de um compartimento contíguo alguém que estava sendo torturado, para em seguida me levarem para lá. Pela dificuldade de respiração do preso percebi que deveria se tratar de Renato Carvalho Tapajós, que sofria de rinite. Sim, era ele – confirmaria em seguida. Desocupada a sala de torturas, seria a minha vez: despido, fui alçado no pau-de-arara. Pendurado, amarraram-me um fio descascado no artelho maior esquerdo e, com o outro pólo, iam percorrendo várias partes do meu corpo: ouvidos, boca, língua, narinas, cantos dos olhos, mamilos, todo o tórax (com uma atenção especial para a região onde se localiza o coração), pernas, braços, umbigo, pênis, testículos e ânus. A corrente elétrica era puxada de uma tomada (naquele dia, 110 volts). Concomitantemente, além de murros, tapas e “telefones”, era surrado com bastões e com uma tira de lona dobrada e molhada. Vez por outra, derramavam água ou algum refrigerante sobre todo o meu corpo, com o objetivo de potencializar os efeitos dos choques, aumentando a condutibilidade da corrente. Nessas ocasiões, fizeram várias vezes escorrer para dentro das minhas narinas o líqüido (ora água, ora refrigerante) com que me molhavam o corpo, provocando fortes afogamentos. Em determinado momento – uma vez que não obtinham informações – disseram que iriam buscar minha mãe para torturar.

Enquanto eu permanecia pendurado, os Guimarães sumiram por meia hora. Decorrido esse tempo, voltaram fazendo grande algazarra, insinuando que traziam alguém da minha família. Neste momento, porém, como minhas mãos e pés estivessem muito roxos, apearam a barra de ferro dos dois cavaletes e deitaram-me por minutos sobre o chão de ladrilhos hidráulicos, para em seguida ser outra vez erguido no pau-de-arara. Tudo recomeçou. E seguidamente, naquela noite, repetiram a operação-descanso algumas vezes. A cada vez que era pendurado, variava o local onde amarravam o pólo fixo do fio descascado: ora artelhos, ora polegares e outras vezes amarram-no entre a glande e o prepúcio.

O pau-de-arara consiste em uma barra móvel (ali na Oban, de ferro) e dois suportes paralelos e da mesma altura (na Oban havia um montado com dois cavaletes e um outro em que estes eram substituídos por duas mesas), sobre os quais é colocada a barra com o preso/a pendurado/a. A pessoa é totalmente despida e amarrada da seguinte maneira: as pernas são flexionadas nos joelhos, sob os quais passa-se a barra; seus braços são puxados por baixo da barra, como se abraçassem as coxas e tornozelos, e seus pulsos são amarrados um ao outro por uma corda. Em seguida, a barra é levantada e cada uma das extremidades posta sobre um dos suportes. O corpo do/a supliciado/a gira na barra no momento em que ela é suspensa, provocando forte impacto nos pulsos e tornozelos que se acomodam à nova posição, bem como na coluna vertebral que forma um U no ar. O ânus e o sexo ficam expostos e a cabeça tomba para trás, perpendicular ao chão. A pessoa é deixada nessa posição horas a fio, quando lhe são infligidos outros tipos de suplício: afogamento, açoitamento, choques elétricos em todo o corpo e provenientes de diversas fontes de energia, empalamento por bastões e cassetetes, e surras com porretes, cassetetes, barras de ferro etc. Jactavam-se os torturadores e autoridades ligadas à repressão de ser o pau-de-arara um modo genuinamente brasileiro de torturar, e que teria origem no modo como os índios carregavam suas caças. Tudo indica, porém, que o pau-de-arara – em que pese seu nome tropical – tem origem em torturas por afogamento praticadas na Europa durante a Idade Média. Como se pode perceber, a dependência tecnológica é antiga – mesmo nos setores mais rudimentares e sórdidos. (A este respeito ver Freire A. et alii, Tiradentes, um presídio da ditadura – Scipione Cultural, 1997 – SP, págs. 515 e 516 e Inquisition – Torture instruments from the Middle Ages to the Industrial Age – Qua Dárno Editorial, 1985 – Florença/Itália).

Nessa primeira noite, interrogaram-me sobre os mais diversos assuntos, com uma tônica sempre sobre o tripé “ponto, nome-de-guerra e aparelho”. Além de quererem saber sobre minhas ligações; o lugar que ocupava no organograma da organização na qual eu militava; minha participação em diversas reuniões e ações armadas, etc., levavam listas de nomes de locais, organizações e pessoas para que eu identificasse ou reconhecesse. Neguei-me a identificar ou reconhecer o que e quem fosse.

A partir de determinado momento, insistiram sobretudo numa palavra: TROFIMENA – que, de fato, eu sequer sabia a que se referia, o que significava. Insistiram muito, e eu apanhava e levava choques sem ter a menor noção do que pudesse se tratar. Cheguei a imaginar até que era mais uma invenção dos sicários, com o objetivo de me confundir ou de se divertirem às minhas custas – conforme já percebera ser hábito. Somente depois, na cela, conversando com outros presos, descobri que se tratava do nome real de uma companheira (Trofimena Mafalda Felice Noschese) que eles tentavam incriminar.

Já de madrugada (suponho cerca de duas horas da manhã) levaram-me para uma cela. Literalmente, jogaram-me numa cela. Com o empurrão, tropecei e caí – escusado descrever o estado em que me encontrava. De qualquer modo, as pernas não obedeciam praticamente a qualquer comando. Era uma cela grande (uns 15X8 metros?). Do lado esquerdo de quem entrava, no fundo, havia um corredor onde se distribuíam uns quatro ou cinco boxes equipados com privadas turcas. A cela estava localizada num edifício térreo, relativamente distante daquele onde ficava a sala de torturas e, para irmos de um para o outro, atravessávamos pelo menos dois pátios.

Ali encontrei meus amigos e camaradas de militância na Ala Vermelha do Partido Comunista do Brasil (PcdoB-AV): Cid Barbosa Lima Junior, Misael Pereira dos Santos, Renato de Carvalho Tapajós, Vicente Eduardo Gómez Roig e um jovem (por volta de 19 anos) que ainda não conhecia e que se chamava Ricardo de Jesus Cochiglia (ou Crochiglia – não tenho certeza do seu último nome). Todos haviam sido torturados e particularmente Misael, Renato e Vicente estavam em condições deploráveis. Além destes, havia um personagem que desconfiamos fosse um policial colocado entre nós na suposta condição de preso apenas para nos vigiar, ouvir conversas etc. Seu nome era Rubens e, depois de alguns dias ele foi retirado da cela, e nunca mais o vimos ou soubemos dele.

A porta da cela era uma grade de alto a baixo, e a parede onde se abria formava, à direita de quem olhava de dentro, um ângulo reto com outra parede, onde uma porta-grade idêntica fechava uma segunda cela, bem menor que a nossa. Nela, estavam meu amigo e camarada de militância Carlos Yoshikazu Takaoka (em estado calamitoso) e uma meia dúzia de jovens com os quais não tivera qualquer contato anterior, e cujos nomes descobri nos dias subseqüentes: Celso Frateschi (17 anos), Durval de Lara Filho (um jovem de Itapetininga de uns 20 anos), Paulo Frateschi (18 para 19 anos), William João Bittar (cerca de 19 anos), e provavelmente outros dos quais não me recordo no momento.

Segunda-feira dia 1º de setembro

À tarde, voltei à sala de torturas onde permaneci por cerca de quatro horas. Fui conduzido pelos pátios com o rosto totalmente vendado por uma máscara oval de corvim/napa azul royal, presa à cabeça por tirantes de elásticos. Ali, novas sessões de pau-de-arara e a repetição de várias das técnicas utilizadas na véspera. Como no dia anterior, quando estava pendurado no pau-de-arara, aplicaram-me insistentes golpes com uma barra de ferro nas costas, na altura dos rins. Queriam saber sobre Renata de Sousa Dantas e Mariana Rodrigues Alves. Neguei conhecê-las. Trouxeram-me o contrato de aluguel de uma casa em meu nome e da qual a Renata era a fiadora. Inventei histórias e continuei negando saber qualquer coisa a respeito de ambas: assumi que era apenas amigo pessoal da Renata e lhe pedira que fosse minha fiadora – história que mantive até o fim. Quanto à Mariana, neguei conhecer. Ambas estavam detidas e os Guimarães tentavam de todo modo estabelecer alguma outra conexão na relação daquelas duas moças comigo, para além da minha versão. Não chegaram a nos acarear e – soube depois – as duas teriam sido liberadas naquele mesmo dia. Acredito que tenham sido muito desrespeitadas e, pelo menos, fortemente coagidas. Nunca mais as vi.

A novidade daquela tarde, porém, foi a “maquininha de choque”: um telefone de campanha que funciona através de magneto, e cujo reostato é acionado por uma manivela. Para a produção da corrente, gira-se a manivela. O reostato aciona o magneto, provocando descargas elétricas. Dois pólos são puxados do aparelho e usados contra o preso com os mesmos requintes de crueldade com que se utilizavam os choques transmitidos pelas tomadas, o que já descrevi acima. A diferença fundamental da “maquininha” para os choques provenientes das tomadas é que, enquanto estes acontecem em correntes contínuas e regulares, o magneto emite correntes descontínuas, irregulares e sucessivas, à medida que a manivela é girada e dependendo da velocidade com que isto é feito, produzindo trancos alternados no corpo do preso, como se fossem seguidas convulsões e espasmos. O telefone de campanha enquanto instrumento de tortura já era sistematicamente aplicado pelos agentes – sobretudo pára-quedistas (os “paras”) – da OAS (Organization de l’Ármée Secrète) francesa desde o final da Segunda Guerra, contra os militantes que lutavam pela independência da Argélia. (A este respeito, ver Alleg H., A Tortura, in A hora obscura – Ed. Expressão Popular, 2001 – 142 e Freire A. et alii, Tiradentes, um presídio da ditadura – Scipione Cultural, 1997 – SP, págs. 506, 517 e 518).

Durante a noite daquela segunda-feira, fui levado mais uma vez para a tortura. Pau-de-arara, choques de tomada e de “maquininha”, pancadaria indiscriminada. Voltaram a me interrogar sobre várias pessoas (que afirmei desconhecer) e acabaram por concentrar suas perguntas em torno de Renata de Sousa Dantas e Mariana Rodrigues Alves. Sim, eram duas moças muito bonitas e certamente isto aguçava a ira dos Guimarães, ao mesmo tempo que lhes espicaçava a curiosidade e fantasias. Algumas perguntas, desprovidas de qualquer sentido político ou mesmo repressivo, revelavam morbidez, um certo voyeurismo, muita perversão e grande obscenidade. Mantive a mesma postura adotada pela manhã.

Em seguida – sempre no pau-de-arara – passaram a outro tema: queriam saber o nome real do “Juca”. Trouxeram-me uma lista com os nomes de professores de um curso de teatro situado à rua Augusta. Frente à minha negativa em identificar qualquer desses nomes, passei a ser torturado para dizer “pelo menos” se “Juca” era um homem ou uma mulher. Com isto pretendiam incriminar a Vanda Cosmo, cujo nome constava daquela lista de professores, e que já tivera problemas com os órgãos de repressão por suas posições de combate ao regime. Mudaram em seguida a pergunta e passaram direta e desabridamente a me interrogar se “Juca” seria o nome-de-guerra de Vanda Cosmo. Nada foi confirmado ou dito – sequer se “Juca” era o nome de um homem ou de uma mulher.

Na casa em que eu morava (e que havia sido invadida antes daquela onde fui seqüestrado), entre outras coisas, haviam sido encontradas pastas contendo diversos desenhos de minha autoria, muitos dos quais tinham como tema nus femininos. Agora, eles queriam saber quem eram as mulheres que posavam para mim. Enrolei: disse-lhes que nunca usava modelos. Incapazes de contrapor minha afirmação àquilo que os desenhos desmentiam, mudaram a pergunta. Passaram a insistir em saber quem era minha mulher ou namorada. Disse-lhes que não tinha. Depois de muito tempo sobre este ponto – e sem se convencerem da minha versão – entrou na sala um Guimarães com uma madeira de uns quatro centímetros de diâmetro e que se abria em ângulo de cerca de 120 graus. Uma das hastes era mais curta (cerca de 15 ou 20 centímetros) e outra, por onde o torturador a empunhava, era mais longa (cerca de 40 centímetros). Eu estava pendurado no pau-de-arara e me ameaçavam de empalamento com aquela madeira caso eu não confirmasse ter uma mulher ou namorada e – sobretudo – lhes entregasse o nome. Acabaram por fazê-lo.

A tortura ainda prosseguiu e, depois, me levaram de volta à cela.

Terça-feira, dia 2 de setembro

Pela manhã, o Misael voltara de um interrogatório com a cabeça parcialmente raspada em caminhos de rato por uma máquina zero. Também uma de suas sobrancelhas fora totalmente raspada.

Por volta da hora do almoço, eu estava na grade da porta da cela de onde se descortinava um grande pátio. Vi então, à distância, o diretor da sucursal do Jornal do Brasil em São Paulo em companhia dos jornalistas Wilson Palhares e Luiz Antônio Maciel, antigos colegas de faculdade, meus amigos e companheiros de militância. Acabavam de chegar. O carro, creio, era do próprio diretor do jornal.

À tarde fui levado para mais uma sessão. Numa das salas por onde fui conduzido, cruzei com uma das camaradas presas: Margarida Maria do Amaral Lopes – a Guida. Tiraram-me a máscara para que a visse. Puseram-me outra vez a máscara e deixaram-me muito tempo sentado numa poltrona, esperando, enquanto os Guimarães se agitavam de um lado para outro, gritando e fazendo ameaças. Aqui há um lapso que já não consigo reconstituir. Sei que me encontrei em seguida numa das salas de tortura em companhia de Renato Tapajós. Ele já passara por sua sessão. Agora estava novamente vestido. Andávamos todos com dificuldade em conseqüência sobretudo do pau-de-arara. No caso do Renato, essa dificuldade era, no entanto, particularmente acentuada. Perguntaram-nos uma série de tolices, retiraram o Renato e começaram a me bater. Esperava ser interrogado sobre Palhares e Maciel. Nada porém me perguntaram a este respeito. Nesta tarde não houve pau-de-arara e nem chegaram a me despir por completo. Muitos choques e bordoadas. Entre outras coisas voltaram a me interrogar sobre a Trofimena. Arrancaram-me muitos punhados de cabelos e fios do bigode com as mãos, e acabaram fazendo comigo o mesmo que haviam feito ao Misael, com um acréscimo: rasparam também a metade esquerda do meu bigode. Devolveram-me à cela à tardinha. Já anoitecia quando Palhares e Maciel foram levados para o xadrez onde eu ficava. Fingimos não nos conhecer.

Por volta das 20h00 apareceu no pequeno hall para onde se abriam as portas das duas celas, o major Beltrão. Espigado, ar arrogante e elegantemente posto, começou a fazer uma série de provocações contra os presos, particularmente contra os que estavam na cela menor – a maioria dos quais ainda estudantes secundaristas. O objetivo claro era o de criar um clima de desmoralização coletiva. Lançou-me várias provocações e ameaças do tipo “você ainda não falou nada, e tem muito serviço para dar ... Você é cínico ...” Reclamei veementemente da situação, e disse que precisava de algum medicamento, pois minha febre não cedera. Sem perder a pose, gritou e tentou me enquadrar. Acabou seu discurso dizendo “Guerra é guerra e vence quem ganha. E nós ganhamos esta guerra”. Como lhe respondesse “O major se engana. Os senhores ganharam apenas uma batalha. Esta guerra quem vai ganhar somos nós”, mandou abrir a cela e me retirar. Sob suas ordens, três Guimarães me levaram a uma pequena sala ao lado da cela menor, onde havia apenas uma cama de ferro cujo estrado (não tinha colchão) era de fitas de metal trançadas. Por ordem expressa do major Beltrão, os três Guimarães (um deles era um sargento mulato alto e forte, usando uniforme do Exército) me jogaram sobre o estrado. Batiam-me com dois cassetetes, murros e com uma cartucheira carregada de balas de fuzil (o sargento). O major Beltrão assistia a tudo impávido, e impávido acompanhava cada detalhe. Os presos da cela maior podiam ver, da grade, parte da cena, e os da cela menor ouviam tudo. Durou cerca de meia hora a surra, durante a qual nada me perguntaram. E só terminou quando – de tanto espernear – caí de costas no chão do cubículo. Neste momento o sargento pegou um fuzil e se arremeteu contra mim. Levantou a arma e o pé direito, arremessando com toda violência a coronha contra meu rosto, e o salto do coturno contra meu esterno. Consegui deslocar-me rapidamente para o lado. A coronha do fuzil atingiu-me de raspão o malar e a mandíbula inferior direita, quebrando-me o primeiro molar; o calcanhar pisou-me o tórax na sua parte superior esquerda, próximo à clavícula e ao esterno, fraturando uma costela.

Nesse momento, atendendo a um gesto do major, os Guimarães levantaram-me, o sargento pegou-me pelo cós da calça e levaram-me para a cela. No pequeno hall vi meus companheiros nas grades das celas. Lembro-me de como me olhavam: solidários e indignados – um olhar surdo, mudo e eloqüente.

Antes de abrir a porta, os Guimarães mandaram que todos os presos da cela maior se sentassem encostados na parede do fundo, com as mãos na nuca. Abriram a grade. O sargento jogou-me com força para dentro. O empurrão, a surra recente e a dificuldade de andar que vinha se acumulando pelas diversas sessões de pau-de-arara desequilibraram-me, e teria me esborrachado de cara no chão, não fosse o Vicente Roig que se precipitou do fundo da cela, correndo, jogando-se em seguida de joelhos no chão e me aparando antes que eu desabasse de vez. O sargento enfureceu-se. Lançando-se contra Vicente, golpeou-lhe com a planta do pé direito as costas, desferiu-lhe golpes com a cartucheira de fuzil no rosto e no dorso, enquanto gritava possesso: “Aqui, terrorista não ajuda terrorista ... Aqui, comunista não ajuda comunista ...” A outro gesto mudo do major, retiraram-se todos.

O major Beltrão era assim. Um homem de classe. Uniformes bem talhados e impecavelmente passados; cabelos pretos – com uns leves fios prateados nas têmporas –, bem cortados e penteados com esmero; pele morena, nariz levemente aquilino. Estatura mediana, postura ereta, ombros altos. Porte impecável. Queixo erguido, parecia sempre posar para a posteridade. Nunca sujava as mãos com presos. Apenas dirigia direta, pessoalmente e com muita crueldade várias das sessões de torturas a que éramos submetidos. Tudo isto, sem dúvida, com muita elegância. Sobretudo: o major Beltrão – dolicocéfalo e moreno – comportava-se como um “vencedor”.

Mas, o que o major Beltrão nunca soube foi que, naquela madrugada, depois que ele se recolheu com sua corte, um jovem soldado – provavelmente um recruta – entrou na cela em que estávamos presos, me chamou e, discretamente, tirou dois comprimidos da bainha de sua túnica e me deu, dizendo: “Depois que eu sair, tome. Você vai melhorar. Vai lhe ajudar”. Peguei os comprimidos. No começo tive dúvidas se deveria tomá-los ou não. Mas a expressão daquele quase menino, imberbe, loiro, com cerca de 1,70m, não deixava espaço para vacilação. Tomei os comprimidos (aspirinas? algum outro tipo de analgésico? relaxante muscular?). Fizeram-me bem. Sobretudo o gesto daquele jovem militar me fez bem.

Quarta-feira, dia 3 de setembro

Pela manhã, deixaram-me na cela, embora alguns companheiros tenham sido levados para interrogatórios – entre os quais Vicente Roig. Mas, cedo foram trazidos de volta.

À tarde, fui levado outra vez, vendado e algemado. Quando me tiraram a máscara de corvim azul, estava num compartimento próximo de onde funcionava uma das salas de tortura. Mas, desta vez, estranhamente, nada aconteceu. Havia algo de diferente no procedimento dos Guimarães. Sentaram-me sem gritos numa cadeira, apenas algemado como chegara, e me tiraram a venda. Veio um barbeiro e raspou-me a máquina a cabeça toda por igual, tirando-me em seguida a metade que restara do bigode e fazendo-me a barba. Se não me engano foi neste mesmo dia – ainda que em outro momento – que fizeram o mesmo com Misael.

Por volta das 21h00, foram me buscar novamente na cela. Levaram também Misael e Carlos Takaoka. Seríamos torturados juntos. Era uma sala de torturas que eu ainda não conhecia, com dois paus-de-arara, algumas cadeiras e outros equipamentos. Para chegar a ela passávamos antes por um salão, mal iluminado e onde haviam três cadeiras em torno de uma escrivaninha, sobre a qual pendia uma luminária de metal esmaltado de verde por fora e branco por dentro. Neste salão nos despiram (nas torturas estávamos sempre nus) e ali ficaram nossas roupas quando fomos empurrados através de uma porta para um segundo ambiente, onde seríamos torturados. Nesta ocasião, todo o arsenal utilizado das vezes anteriores foi posto em ação contra os três. Revezavam-nos nos paus-de-arara, no magneto, etc. Naquela noite, Takaoka – sem óculos – tinha os olhos e pálpebras muito inchados, e seus olhos eram duas frestas muito vermelhas, como se fossem coágulos de sangue. Cheguei a imaginar que os olhos do meu amigo houvessem sido vazados. O mais perverso neste método de tortura coletiva era o fato de os torturadores transferirem para nossas mãos o poder de sevícia, vida e morte sobre os demais companheiros: uma chantagem que consistia em interrogar um de nós enquanto o(s) outro(s) era(m) supliciado(s). Caso o que estava sendo torturado morresse, os culpados seriam os outros dois, por não haverem falado – conforme repetiam insistentemente os Guimarães. Embora tenhamos sido conduzidos com as máscaras de napa até a sala de torturas, durante esta sessão fomos supliciados sem máscara ou capuz: não bastava sentirmos o que nos acontecia, era preciso assistirmos de perto, vermos claramente o que faziam com os nossos camaradas.

Depois de muitas horas, a sessão foi interrompida bruscamente por um Guimarães que entrou aos berros e acompanhado de um auxiliar, mandando pararem com aquilo. Durante alguns minutos (que pareciam horas) instalou-se uma situação patética: todos os Guimarães abandonaram a sala e ficamos sozinhos nas posições em que estávamos sendo torturados – Misael continuou pendurado no pau-de-arara, enquanto Takaoka e eu permanecíamos amarrados em cadeiras, sentados com o tórax encostado no espaldar e os pulsos atados por cordas aos tornozelos. Foi nesta posição que momentos antes haviam feito sulcos nas minhas costas, com um bastão de metal muito fino e pontiagudo, e em seguida esfregado uma estopa com alguma substância cáustica sobre os arranhões, provocando um inchaço que durou algumas semanas. Agora, os Guimarães haviam desaparecido e nós estávamos ali congelados nas posições anteriores.

A cena só se reanimou quando Misael foi retirado do pau-de-arara e conduzido para o salão onde deixáramos as roupas. Ali – descobriria mais tarde – cada um de nós deveria prestar um depoimento. O fato é que a espera foi longa – ou assim pareceu. O segundo a ser levado foi o Takaoka.

Permaneci sozinho na sala de torturas, até que entraram dois Guimarães. Um, relativamente baixo, moreno, barba cerrada e mal feita, entroncado, ventre proeminente, de pronunciada calvície, trajando calça jeans e uma camiseta de jersey azul-marinho. Aparentava uns quarenta anos e tinha um olhar de roedor. O outro descendia de orientais (provavelmente de japoneses). Embora não fosse alto, era um tipo longilíneo, de pele muito clara e pálida, imberbe, cabelos e olhos negros. Trajava-se todo de preto, botas de verniz, de cano curto (“botinhas”), bico fino e salto “carrapeta”; calça de veludo cotelê; camisa de gola olímpica, e uma jaqueta curta de couro. Parecia muito jovem, por volta de vinte anos. Desamarraram-me sem estardalhaço, fizeram-me sentar em posição normal na mesma cadeira, amarrando-me em seguida os pulsos para trás, e cada um dos tornozelos na lateral de cada uma das pernas da frente da cadeira, de modo que permanecesse de pernas abertas, com pênis e testículos expostos. Amordaçaram-me com uma tira estreita de pano. Depois, puseram-se de frente para mim. Sorriam estranhamente. Foi quando o moreno passou o braço sobre os ombros do oriental, trazendo-o para junto de si, arrastando-o delicadamente até onde eu estava e fazendo-o tocar meu pênis. Abraçavam-se, beijavam-se e se esfregavam com alguma volúpia. Comecei a gritar guturalmente e a espernear (apesar das pernas amarradas), até que veio um terceiro Guimarães que, aos gritos, mandou que eles parassem, que a sessão de tortura já havia terminado, retirando-os da sala e desamarrando minha mordaça. Como este terceiro Guimarães, diferentemente dos outros dois, fazia parte da equipe que nos torturara durante aquela noite, a primeira idéia que me passou pela cabeça foi a de que mais uma vez se manifestavam as rivalidades que a equipes da Oban mantinham entre si.

Por fim, chegou a minha vez de ser levado para o salão. Quando atravessei a porta, deparei com um delegado sentado na escrivaninha e, de frente para ele, uma moça (que nunca vira antes e que jamais voltei a encontrar) prestando depoimento. A luminária verde estava acesa e produzia uma luz forte e dirigida sobre a mesa, criando quase que uma cortina, uma zona cega, entre o entrevistador e a entrevistada. Ela usava vestido e, na cabeça, uma faixa verde que impedia que lhe caíssem sobre o rosto seus cabelos castanhos levemente avermelhados e compridos. Disseram-me mais tarde que se chamava Marilda e era namorada do Durval de Lara Filho. Quando me viu, a moça fez uma expressão de um certo pavor, baixando em seguida a cabeça e os olhos, ao mesmo tempo em que erguia as duas mãos cobrindo o rosto, numa atitude respeitosa para comigo. Naquele gesto dominava o respeito, e não o medo. Um respeito solidário e contrito – diria. Mandaram então que me vestisse, o que implicava atravessar o salão em diagonal. A manifestação da moça calara fundo. Andei sem aparentar pressa ou nervosismo, com o máximo de desenvoltura e “naturalidade” (como se estivesse vestido e inteiro) até onde se encontravam as roupas, para não lhe provocar um constrangimento ainda maior. Constrangimento que certamente vinha mais do meu estado físico que da minha nudez. E, enquanto andava em direção à roupa, o delegado começou a ameaçar a moça com voz melíflua e num tom aparentemente paternal: era bom que ela contasse tudo o que sabia para ele. Isto só ajudaria ao seu namorado pois, visse meu exemplo: eu chegara ali um rapaz bem apessoado, cuidado mas, como decidira não colaborar, “os outros” Guimarães tinham me deixado naquele estado... Quando cheguei perto das roupas, um dos Guimarães que permanecia na sala jogou-as para o canto oposto. Estaquei. Não mais me movi. Não ficaria andando despido e disforme, de um lado para outro, servindo de instrumento de tortura e pressão contra aquela moça. Ameaçaram, gritaram, me empurraram. No fim, jogaram outra vez as roupas para o lugar onde me mantinha parado e consentiram que me vestisse. Retiraram a moça da sala. Soube depois que foi solta naquela mesma madrugada. Fiz um depoimento que, na verdade, tratava-se mais – pelo menos no meu caso – de uma ficha de qualificação.

Os Guimarães vieram para me levar de volta à cela. Algemaram meus pulsos para trás, colocaram-me a máscara azul, pegaram-me pelo cós da calça que puxavam para cima como se fossem me tirar do chão, e me conduziram por um pátio. Pensava que por aquela noite estaria livre. Enganava-me.

Eram quatro a me escoltar e, sem me tirarem a máscara em nenhum momento, levaram-me para um local que suponho fosse um galpão. Encostaram-me a uma parede que percebi pelo tato revestida de uma espécie de chapisco ou algo semelhante. Disseram que iam me fuzilar. Engatilharam as armas e deram algumas rajadas. Na última, senti caírem uns poucos pedaços de reboco sobre minha cabeça. Foi um fuzilamento simulado – como diziam. Riam muito e tentavam me aterrorizar.

Tiraram-me dali – sempre pelo cós da calça – e me postaram no meio de um pátio. Garoava muito. Disseram-me que passariam com carros em alta velocidade em minha direção, e que eu deveria saltar para o lado certo, senão seria atropelado. Aceleraram motores e acenderam faróis altos. Apesar da máscara, dava para perceber a mudança e a movimentação da luminosidade. Eram dois veículos – suponho fossem dois jipes. Corriam, aceleravam, cantavam pneus e passavam muito perto de mim – o que sentia pelo deslocamento de ar. Fiquei parado. Não me movi do lugar. A “brincadeira” – como eles classificavam todo tipo de tortura – durou um bom tempo. Talvez mais de meia hora. Àquilo chamavam de atropelamento simulado.

Outra vez quase carregado pelo cós, fui levado de volta. Era madrugada avançada, prosseguia uma garoa forte e, no caminho, o Guimarães que me segurava pela calça fez-me uma curiosa pergunta: “Se vocês tivessem ganho esta guerra, você ia ser ministro do quê?” Obviamente não havia o que responder. Deixei que continuasse falando e fazendo considerações sozinho durante a caminhada.

Quando cheguei à cela, quase amanhecia. Uma boa surpresa: os soldados responsáveis por nos vigiar tinham posto colchões para que dormíssemos. No dia seguinte os colchões foram imediatamente retirados e os responsáveis pelo gesto punidos e advertidos. Voltaríamos a dormir no chão de ladrilhos – muito frio naqueles dias de inverno –, situação em que permanecemos enquanto durou nossa estada no quartel.

Quinta-feira, dia 4 de setembro

A manhã foi estranhamente calma, no que diz respeito a torturas e interrogatórios. Vez por outra um Guimarães ou um grupo deles chegava até à porta da cela, dizia algum disparate ou provocação, mas logo desaparecia.

Se não me engano, foi somente no meio da tarde que o Rubens (a estranha figura que se encontrava presa conosco e da qual suspeitávamos) foi levado para receber visita de familiares. Foi isto que ele nos disse quando voltou poucas horas depois para a cela, trazendo um jornal, onde lemos a notícia de que o embaixador dos Estados Unidos no Brasil – Charles Burke Elbrick – havia sido seqüestrado por um comando do Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8) com o apoio da Ação Libertadora Nacional (ALN), que exigiam a libertação de presos políticos e a divulgação (em jornais, rádios e televisões) de um manifesto.

Isto explicava não apenas a calmaria daquele dia, mas as torturas sob contra-ordens da véspera e também o fato de haverem repentinamente decidido por em relativa ordem os cabelos, bigodes e barbas meus e de Misael. Enfim, poderíamos estar – deviam pensar – na lista dos presos a serem soltos em troca da libertação do diplomata. E teria sido um escândalo internacional chegarmos naquele estado no exterior...

Sexta-feira, dia 5 de setembro

Certamente o desfecho do seqüestro já havia sido decidido e nossos nomes não constavam da lista dos presos cuja libertação o MR-8 e a ALN exigiam. Portanto, a tortura recrudesceria contra nós, desta vez agravada pela derrota sofrida pelo regime, que perdera aquela batalha.

Logo cedo o major Beltrão veio à cela onde estávamos, escoltado por cerca de uma dúzia de Guimarães. Alguns altos, outros baixos e ainda os de estatura média. Brancos, loiros, negros, mulatos, morenos. Gordos e magros – os havia de todos os tipos. Alguns vinham com cassetetes, outros empunhavam um “chico-doce” (porrete de madeira). Mandaram-nos sentar encostados às paredes, mãos nas nucas. Abriram a porta. Trouxeram os presos que estavam na cela ao lado e entraram. Trancaram a grade. Disseram que precisávamos pagar a gasolina que seria utilizada pelo avião que levaria os 15 presos libertados em troca do embaixador para Cuba. Além do mais – acrescentavam – precisávamos fazer ginástica, pois éramos muito moços para estarmos daquele jeito, naquele estado. Um dos Guimarães – sempre instruído pelo major Beltrão – assumiu o posto de treinador. Mandou que nos levantássemos sem tirar as mãos da nuca. Em seguida, que nos abaixássemos nas pontas dos pés e com os joelhos flexionados. Ordenou então que começássemos a andar em pequenos pulos, sempre em fila. Ele marcava o ritmo. Obviamente a maioria de nós não conseguia (e/ou não se dispunha) fazer aquele exercício. Uns não saíam do lugar, outros caíam. Era nesse momento que os demais Guimarães – que até aí apenas assistiam a cena – entravam em ação, chutando e batendo nos que estavam parados ou que haviam caído. “Chico-doce” e cassetetes entravam em ação. Fomos obrigados em seguida a correr em círculos e a outros exercícios. A apoteose foi “furar petróleo”, porque “gasolina – gritavam – é feita de petróleo”. “Furar-petróleo”, no caso, significava o seguinte: de pé, sem flexionar os joelhos, vergar-se para frente, tocar com a ponta do indicador da mão direita o chão e – sem tirá-lo daquela posição e no ritmo imposto pelo Guimarães treinador – girar em torno do dedo. Além de tudo, essa “ginástica” provocava uma forte tontura que logo derrubava os “atletas”, transformando-os em alvos privilegiados dos pontapés e pauladas dos Guimarães. A sessão durou quase duas horas. (A este respeito, ver Tapajós R, A humilhação e a dor (vídeo) – Tapiri Produtora, 198.. onde há a reconstituição de cenas daquela manhã da sexta-feira 5 de setembro de 1969 na Oban. Um dos atores que interpreta um dos presos obrigados a “fazer ginástica” e a “furar petróleo” é Celso Frateschi que estava conosco no quartel do Rec-Mec).

Creio que foi nessa tarde que assisti (à distância, da grade) a Guida ser conduzida pelo pátio em frente à cela onde eu estava, e enfiada entre empurrões e bofetadas desferidas por Guimarães civis e militares, no interior de um veículo que deixou aquela unidade militar em grande velocidade. Soube depois que fora levada a “dar voltas” pela cidade, para servir de “isca”, visando à prisão de outros opositores do regime: ninguém foi preso.

Durante todo o dia, vários dos presos voltaram a ser torturados e interrogados, particularmente Misael, Renato, Takaoka e Vicente.

Naquela noite fui levado para mais um interrogatório. Depois de muita pancadaria despido e algemado, fui pendurado no pau-de-arara, com choques e bordoadas. Provavelmente foi a sessão em que fiquei menos tempo pendurado. Talvez apenas meia hora. Mas a violência dos Guimarães estava particularmente exacerbada. Dentre as muitas coisas que me perguntaram, insistiam em saber quem era o “Juca”, e agora exigiam que eu confirmasse se o “Juca” era ou não o Antônio Fernando Bueno Marcello cujo nome constava também da lista de professores do curso de teatro da rua Augusta. Sim ou não, nada lhes respondi.

Além disto, fui interrogado sobre o “Passarinho” – um membro da Direção Nacional da Ala Vermelha que declarei não conhecer. Insistiam em descobrir seu nome. Voltaram ainda a vários temas recorrentes nos meus interrogatórios, sobre pessoas, locais, ações, planos, etc.

Sábado, dia 6 de setembro

Sobre a manhã deste dia, minha memória já não mais registra coisa alguma. É como se aquele sábado houvesse começado à tarde quando, sete dos que estávamos na Oban, fomos transferidos em caminhonetes acompanhadas por uma forte escolta para a sede do Departamento de Ordem Política e Social, o Deops, na Praça General Osório, no centro da cidade. Além deste depoente, foram levados para o Deops Carlos Yoshikazu Takaoka, Misael Pereira dos Santos, Renato Carvalho Tapajós, Vicente Eduardo Gómez Roig, Laís Furtado Tapajós e Margarida Maria do Amaral Lopes. As mulheres foram numa caminhonete e os homens numa segunda. Íamos algemados uns aos outros, com os braços trançados de forma bizarra. Na verdade parecíamos uma corda de caranguejos. Deixávamos o quartel.

Os outros companheiros presos seriam removidos em seguida para a delegacia da Rua Tutóia – dois ou três quarteirões depois do quartel do Rec-Mec – onde seriam inauguradas as novas instalações da Oban no dia 7 de setembro de 1969 – o Dia da Pátria, como faziam questão de frisar Guimarães e militares. Somente algumas semanas depois começaram a ser levados para o Deops.

Outros episódios na Oban

Certamente todo este depoimento é absolutamente verdadeiro em termos da descrição dos diversos episódios relatados, embora – passados 33 anos – possa haver alguma pequena confusão no que diz respeito às datas precisas. Ou seja, um episódio descrito em determinada tarde, pode ter acontecido na manhã seguinte, ou no dia anterior. Nada disto porém é substancial para o que se pretende aqui relatar ou para as conclusões que devam ser tiradas.

Em todo caso, a facilidade em organizar por datas esta parte do depoimento deve-se a algumas balizas nesse sentido, sobre as quais tenho certeza: a data da minha prisão (noite de domingo, 31 de agosto); o empalamento (noite da segunda-feira, 1º de setembro); a surra comandada pelo major Beltrão (noite da terça-feira, 2 de setembro); a data da tortura conjunta com Misael e Takaoka, seguida de fuzilamento e atropelamento simulados (noite e madrugada da quarta para quinta-feira, 3 e 4 de setembro); a tortura coletiva na própria cela para “pagar a gasolina do avião” (na manhã da sexta-feira, 5 de setembro), e a nossa transferência e chegada ao Deops (tarde do sábado, 6 de setembro).

Outros episódios que permanecem ainda claros e com detalhes em minha mente, no entanto, não os consigo localizar no tempo com precisão. Por isto, passo a descrevê-los separadamente:

A Apolo 11

Naquele início de setembro foram levados para a mesma cela onde eu estava preso na Oban, dois homens: Osmar (cujo sobrenome não me recordo) e João Suzuki. O primeiro era um jovem branco, de cabelos castanhos, um pouco gordo e baixo. O outro era um japonês (ou descendente) alto, magro e era artista plástico. Ambos foram presos porque num dia qualquer no final de agosto de 1969, os organismos de repressão prenderam na cidade do Rio de Janeiro (RJ), um publicitário. Violentamente torturado dias seguidos, o publicitário – que não pertencia a qualquer organização de esquerda e com as quais sequer tinha contato – resolveu se auto-incriminar, acreditando que assim parariam os suplícios. Primeiro passo: admitiu ser militante de uma organização guerrilheira. Como precisava dar-lhe um nome, “confessou” ser membro da Apolo 11 (nome de uma nave espacial lançada pelos EUA àquela época). A tortura não parou: se há uma organização, existem os militantes ...... e a polícia e os militares queriam nomes, endereços de aparelhos, pontos. O publicitário pegou sua agenda e, aleatoriamente, desfiou uma série de endereços do Rio e de São Paulo. Entre os que tinham o nome naquela agenda e que foram presos em São Paulo, estavam Osmar e João Suzuki.

Suzuki foi seqüestrado pelo órgãos de segurança numa manhã dos primeiros dias de setembro. A repressão montou campana e cercou a casa do pintor desde a noite da véspera. No dia seguinte, cedo, esperou Suzuki, que saiu com a filha de dois ou três anos. Longe de casa, sem nada ter percebido, Suzuki entrou numa padaria para comprar doces para sua criança. Foi então seqüestrado pela Oban. A filha foi dele apartada e não lhe deram qualquer notícia a respeito do destino da menina. Ao contrário: usavam o fato para pressioná-lo. Na Oban, todo tipo de tortura e nenhuma informação sobre a criança. Interrogatórios sucessivos sobre a Apolo 11 e outras sedições das quais ele jamais ouvira falar. Suzuki sequer sabia quem era o publicitário, pois este apenas conhecia o artista plástico por tê-lo visto expondo seus trabalhos numa praça de São Paulo e, tendo gostado dos quadros, anotou o nome e o endereço do pintor. Também, pouco a identificar dos seus torturadores: Suzuki era levado para as sessões de violência vendado. Certa tarde foi torturado em minha presença durante algum tempo. Acabou por entrar em delírio, com visões e alucinações.

Quanto a Osmar, foi extremamente surrado e torturado, tendo adotado o caminho de se auto-incriminar, assumindo ser militante, ter participado de ações armadas e outras coisas do gênero – sem que jamais o houvesse feito. Várias vezes veio nos pedir dicas sobre ações armadas que houvessem sido praticadas para poder dizer que delas participara pois – explicava – “se eu não inventar essas coisas, eles vão acabar me matando”. Obviamente negávamo-nos a fazê-lo e procurávamos dissuadi-lo daquela atitude.

Suzuki foi solto da própria Oban, mas ainda encontramos Osmar no Deops.

Foi também no Deops que ficamos sabendo que depois de nossa saída da Oban, outros supostos membros da suposta Apolo 11 haviam sido presos em circunstâncias semelhantes às de Osmar e de João Suzuki. Entre eles, uma atriz (cujo nome nunca soube), teria sido seqüestrada em São Paulo em companhia do seu marido – que se chamaria Nicolau. Segundo consta, a moça teria sido estuprada na Oban, quando esta já funcionava na delegacia da Tutóia. (Sobre a prisão de João Susuki ver Kushnir, Beatriz et alii, Perfis cruzados – Trajetórias e militância política no Brasil – Ed. Imago, 2002 – RJ, págs. 7 e 8, e Freire A., O poeta desta edição, in revista Teoria & Debate).

Operários

Num daqueles dias em que nos encontrávamos no quartel, foram colocados na cela em que estávamos, cerca de uma dezena de operários. Vinham ainda com seus macacões. Trabalhavam numa indústria (não me recordo qual) da Grande São Paulo, e foram seqüestrados porque, quando saíam do trabalho, para cortar caminho, atravessaram os trilhos de uma ferrovia em local considerado Área de Segurança Nacional. Foram intimidados, interrogados, levaram uns tapas – talvez alguns choques – e, em seguida, liberados. Ficaram presos por pouco mais de 24 horas.

Palmatória

Já por volta do 4 de setembro, deu entrada em nossa cela Roberto Comodo, hoje jornalista. Roberto Comodo fora seqüestrado por supostamente ter ajudado de algum modo um militante clandestino da ALN. Chegou muito arrebentado pelos diversos tipos de tortura a que fora submetido. Chamou atenção porém o estado de suas mãos: depois de uma intensa e longa sessão de palmatórias, suas palmas das mãos haviam inchado a ponto dele não as poder fechar: eram duas superfícies convexas de uns seis centímetros de altura. Nessas circunstâncias, as linhas das mãos haviam rachado e sangravam bastante.

***

Esta é a Parte 2 de "Relato de Prisão", depoimento oficial entregue por Alípio Freire à Comissão de Indenização dos perseguidos pela ditadura no Estado de São Paulo. No relato, o jornalista registra os dias que antecederam sua prisão, a rotina no cárcere e as sequelas sofridas pela tortura

O Brasil de Fato, que publica o material pela primeira vez, com exclusividade, dividiu o documento em quatro partes. A primeira, publicada na última quinta (22), descreve o sequestro por agentes do regime. A parte 3 será públicada no próximo sábado (24).

Edição: Poliana Dallabrida