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(Millôr Fernandes)

sexta-feira, 15 de outubro de 2021

RECUSA DE COMBATE À POBREZA MENSTRUAL MOSTRA A FACE MAIS PERVERSA DO GOVERNO BOLSONARO

Sexta, 15 de outubro de 2021

Aldemario Araujo Castro
Advogado
Mestre em Direito
Procurador da Fazenda Nacional
Coordenador-Geral do Observatório da Transparência e Combate à Corrupção no Distrito Federal
Brasília, 15 de outubro de 2021

O Presidente da República, Jair Messias Bolsonaro, sancionou a Lei n. 14.214, de 6 de outubro de 2021, que institui o Programa de Proteção e Promoção da Saúde Menstrual. Entretanto, foram vetados os dispositivos relacionados com a oferta gratuita de absorventes higiênicos femininos e outros cuidados básicos de saúde menstrual. Argumentou-se, basicamente, no sentido da não indicação da fonte de custeio para as ações ou medida compensatória.

A lei formula uma política pública para enfrentar o que se convencionou chamar de “pobreza menstrual”. Numa formulação ampla, trata-se da situação vivenciada por meninas e mulheres carentes de recursos, infraestrutura e conhecimento para que tenham plena capacidade de cuidar da própria menstruação.

No Brasil, segundo dados da Organização das Nações Unidas (ONU), 25% das meninas entre 12 e 19 anos deixaram de ir à aula alguma vez por não terem absorventes. Existe uma faceta especialmente triste e degradante da “pobreza menstrual”. Ela consiste na utilização de jornais, guardanapos, pedaços de pano velho, ou até mesmo, miolo de pão e folhas de árvores, no lugar de um absorvente. Os riscos para a saúde com possíveis infecções é evidente.

Portanto, essa questão transcende o enfoque relacionado somente com a "higiene e conforto da mulher", o que já seria de inegável relevância. Temos um singular problema de saúde e de acesso à educação e ao trabalho para as mulheres pobres e marginalizadas.

Sob o enfoque jurídico, a falta de absorventes para as mulheres de baixa renda afronta princípios e valores constitucionais fundamentais da ordem jurídica. Afinal, é dever do Estado e da sociedade brasileiros buscar a realização efetiva, não meramente retórica, da dignidade da pessoa humana, promover o bem de todos e erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais (artigos primeiro e terceiro da Constituição).

É de uma insensibilidade atroz e de uma falta de empatia sem tamanho sustentar um argumento meramente formal que, na prática, reforça o constrangimento e a dor de milhões de brasileiras, já duramente massacradas por carências de toda ordem.

Nesse caso, não existe um entrave ou impossibilidade financeiro-orçamentária. Com efeito, o texto legal aprovado pelo Congresso Nacional indica a fonte dos recursos a serem utilizados da seguinte forma: "As despesas com a execução das ações previstas nesta Lei correrão à conta de dotações orçamentárias consignadas anualmente ao Ministério da Saúde, observados os limites de movimentação, empenho e pagamento da programação orçamentária e financeira anual" (artigo quarto). Assim, seria (será) o caso de realizar ajustes (movimentações orçamentárias) frequentemente usados pelo Poder Poder para viabilizar o Programa de Proteção e Promoção da Saúde Menstrual.

No limite, se as movimentações nas dotações orçamentárias do Ministério da Saúde não pudessem ser efetivadas para tornar o referido programa uma realidade, seria o caso de encaminhar um projeto de lei ao Congresso Nacional com anulação de certos créditos orçamentários em ações específicas para aproveitamento na consecução do Programa de Proteção e Promoção da Saúde Menstrual. Nesse sentido, o Governo Bolsonaro já anulou dezenas de dotações orçamentárias em 2021, abarcando bilhões de reais, para alocar recursos em outras despesas públicas. Esse é um movimento financeiro-orçamentário corriqueiro orientado pelas escolhas de prioridades de gastos públicos. Veja algumas dessas dotações anuladas pelo Governo Bolsonaro no ano em curso. São recursos “retirados” das mais variadas áreas de atuação do Poder Público.

a) Descrição da despesa cancelada
b) Valor em reais
c) Diploma legal

a) Construção de Fonte de Luz Síncrotron de 4ª geração - SIRIUS, por Organização Social (Lei nº 9.637, de 15 de maio de 1998) – No Estado de São Paulo
b) 26.605.590
c) Lei n. 14.209, de 30 de  setembro de 2021

a) Fomento à Inovação e às Tecnologias Inovadoras - Nacional
b) 4.425.000
c) Lei n. 14.209, de 30 de  setembro de 2021

a) Concessão de Bolsas e Auxílio Financeiro na Educação de Jovens e Adultos e em Programas de Elevação de Escolaridade Integrados à
Qualificação Profissional e à Participação Cidadã - Nacional
b) 5.000.000
c) Lei n. 14.209, de 30 de  setembro de 2021

a) Publicidade de Utilidade Pública - Nacional
b) 4.600.000
c) Lei n. 14.209, de 30 de  setembro de 2021

a) Subvenção Econômica Destinada à Habitação de Interesse Social em
Cidades com menos de 50.000 Habitantes
b) 8.000.000
c) Lei n. 14.209, de 30 de  setembro de 2021

a) Gestão, Operação e Manutenção do Projeto de Integração do Rio São
Francisco - PISF - Na Região Nordeste
b) 20.000.000
c) Lei n. 14.209, de 30 de  setembro de 2021

a) Reserva de Contingência - Financeira - Reserva de Contingência - Recursos provenientes de receitas próprias e vinculadas, inclusive doações e convênios
b) 1.888.194.595
c) Lei n. 14.170, de 10 de junho de 2021

a) Fomento ao Setor Agropecuário (Agricultura sustentável)
b) 343.035.939
c) Lei n. 14.169, de 10 de junho de 2021

a) Apoio à Infraestrutura para a Educação Básica - Nacional
b) 72.418.742
c) Lei n. 14.169, de 10 de junho de 2021

a) Implementação de Infraestrutura Básica nos Municípios da Região do Calha Norte
b) 112.000.000
c) Lei n. 14.169, de 10 de junho de 2021

Esse episódio revela algo muito mais profundo. A ordem jurídica brasileira foi (e é) cuidadosamente formatada ao longo do tempo consagrando dois movimentos bem definidos. De um lado, são construídos e aperfeiçoados os mecanismos garantidores da transferência de montanhas de recursos públicos e privados para uma minoria de privilegiados. Eis algumas providências nessa linha: a) intocabilidade orçamentária do pagamento do serviço da dívida pública (art. 166, parágrafo terceiro, inciso II, alínea “b” da Constituição); b) supressão da limitação da cobrança de juros (antigo artigo 192, parágrafo terceiro da Constituição); c) institucionalização da busca de resultado primário como centro da política econômica e d) ausência de regramento legal para várias ferramentas administradas pelo Banco Central (operações compromissadas, formação de reservas, etc). De outro lado, são atacados os direitos sociais, notadamente pela via da fragilização do custeio. São exemplos dessa última afirmação: a) desvinculação de receitas da União (redução do saldo de contribuições sociais destinadas ao orçamento da Seguridade Social); b) adoção da Lei de Responsabilidade Fiscal com sérias restrições seletivas e c) teto de gastos sociais (Emenda Constitucional n. 95, de 2016).

O aludido veto ao Programa de Proteção e Promoção da Saúde Menstrual é mais um capítulo na triste novela de sonegação dos meios para o pleno exercício dos direitos sociais. É preciso por fim a esse enredo com um vigoroso movimento de conscientização, mobilização e organização dos segmentos mais sofridos da sociedade (99% dela, no limite) para construir um modelo de desenvolvimento socioeconômico crescentemente inclusivo.