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(Millôr Fernandes)

sexta-feira, 7 de outubro de 2022

Texto ELE NÃO – PARTE I (EM PLENA “GUERRA RELIGIOSA”)

Sexta, 7 de outubro de 2022

ELE NÃO – PARTE I
(EM PLENA “GUERRA RELIGIOSA”)

Aldemario  Araujo Castro
Advogado
Mestre em Direito
Procurador da Fazenda Nacional
Brasília, 7 de outubro de 2022

“Após momentos de hesitação sobre que tom adotar nesta retomada da campanha presidencial, militantes de Jair Bolsonaro (PL) e Luiz Inácio Lula da Silva (PT) partiram para a mais pura baixaria no embate nas redes sociais e transformaram a corrida eleitoral em um campo minado de montagens, desinformação e notícias falsas, na tentativa de colar no adversário o carimbo de satanista./Apesar de a campanha à reeleição de Bolsonaro ter apostado, desde o início, em um forte teor religioso, a troca de ofensas satanistas que marca o pós-1° turno está partindo principalmente da militância espontânea – e deixando as campanhas oficiais em alerta e com muitas dúvidas sobre como reagir” (fonte: metropoles.com).

Na primeira semana de campanha para o segundo turno da eleição presidencial de 2022 o cenário político foi tomado por uma “guerra religiosa”, no mínimo, insólita. Circularam, notadamente nas redes sociais, “notícias”: a) associando o candidato Lula ao satanismo; b) vinculando o candidato Bolsonaro à Maçonaria; c) dando conta de que teremos um embate entre o bem e o mal, com o fechamento ou abertura de templos religiosos e d) de promessas de punições severas para os pastores evangélicos que defenderem o candidato Lula. Em curso, também, uma espécie de torneio para identificar quem é o mais religioso (cristão) entre os postulantes.

Esse Brasil da “guerra religiosa” é o mesmo em que são registrados e “convenientemente esquecidos”, entre outros: a) as maiores taxas de juros do mundo e um impressionante nível de endividamento do Poder Público, empresas e famílias que viabilizam a transferência anual de cerca de 1,5 trilhão de reais para o rentismo, com o consequente travamento da atividade econômica; b) um modelo macroeconômico excludente que concentra renda numa minúscula parte da população; c) as ameaças constantes ao regime democrático; c) o alarmante crescimento da fome que atinge dezenas de milhões de brasileiros; d) os índices altos de desemprego e altíssimos de subemprego; e) a imensa destruição ambiental; f) a corrupção sistêmica persistente, na forma do orçamento secreto, como já foi do mensalão, “movimentando” praticamente a mesma base parlamentar; g) os subsídios bilionários; h) os benefícios fiscais também bilionários; i) a sonegação fiscal em patamares praticamente iguais ao da arrecadação tributária; j) a tributação regressiva, concentrada no consumo de bens e serviços; k) as remessas de bilhões de reais para paraísos fiscais; l) a formação e nível excessivo das reservas monetárias; m) o modelo agrícola exportador e o) a necessidade de democratização econômica dos meios de comunicação.

Assim, os grandes problemas nacionais e os enormes entraves à construção de uma sociedade democrática, justa, solidária e sustentável são lembrados de forma secundária no processo eleitoral. A absurda desigualdade socioeconômica, a profunda deficiência na efetividade dos direitos sociais, a superação das opressões, discriminações e preconceitos e a emergência climática recebem, quando recebem, uma baixa atenção dos candidatos e do conjunto da sociedade.

É inacreditável que terços, rezas e templos (sem demérito da importância desses itens no plano da espiritualidade) substituam a discussão sobre os planos e políticas públicas, prioridades de gastos orçamentários, decisões governamentais e medidas legislativas que apontem para a superação das mais significativas mazelas socioeconômicas do Brasil.

Obviamente, esse absurdo cenário favorece o candidato Jair Bolsonaro. A falta de um projeto consistente de caráter popular e democrático, o desastroso (des)governo realizado nos últimos quatro anos e uma personalidade promotora dos piores valores civilizatórios são vertentes fundamentais que conseguem escapar, em função do desvio da atenção para questões absolutamente secundárias ou irracionais, do centro do debate político.

A candidatura de Lula da Silva perde tempo e energia, com notas e desmentidos, que deveriam estar voltados para mostrar sua maior sensibilidade social e compromisso com o ambiente democrático como substrato inafastável para a formulação e implementação das políticas públicas voltadas para a superação das grandes dificuldades nacionais.

Existem problemas seriíssimos na postulação do candidato Lula da Silva. O “programa” (a rigor, diretrizes para o programa) é limitado e excessivamente vago em pontos fundamentais. A amplitude do arco de alianças políticas, inclusive por imperativos eleitorais, cobra um preço alto na medida que faltam propostas que ataquem as dificuldades de forma estrutural. Também são insatisfatórias as proposições para enfrentar a corrupção sistêmica que assola o governo atual, se fez presente em todos os anteriores e estará instalado no próximo.

A solução Lula é o caminho eleitoral, por exclusão, para manutenção de um ambiente democrático que permita uma atuação ou pressão política mais consequente em favor das causas populares mais relevantes. Mesmo para ser oposição, é melhor fazer contraponto ao governo Lula, mais plural e mais permeável às questões sociais. A oposição ao governo Bolsonaro, insensível, algumas vezes, refratário, na maioria das vezes, aos avanços socioeconômicos num contexto democrático é bem mais difícil e menos produtiva.

Em suma, o segundo turno das eleições presidenciais opõe dois projetos socioeconômicos bem distintos. As questões religiosas ou espirituais merecem ficar circunscritas aos templos e as convicções e práticas pessoais. Afinal, elas pouco, ou muito pouco, influem nos caminhos a serem trilhados pela nação brasileira para superação de seus problemas mais importantes. A decisão a ser tomada contrapõe um projeto mais próximo das aspirações populares e um caminho mais próximo da manutenção e aprofundamento das posições privilegiadas de uma parcela mínima da sociedade brasileira.