Sábado, 19 de janeiro de 2013
Impera na instituição a leniência com os "pequenos desvios" - que na maioria das vezes não são nem pequenos, nem desvios, mas a mais pura ilegalidade
Gabriel Castro e Laryssa Borges, de Brasília
Renan Calheiros (à esquerda) e Henrique Eduardo Alves: conchavo e fisiologismo (Dida Sampaio/AE e Beto Barata)
Corria o ano de 1949. Com pose de estátua de bronze, o deputado Edmundo Barreto Pinto exibia seus dotes em um ensaio fotográfico na revista O Cruzeiro. Após a garantia de que seriam registradas somente imagens da cintura para cima, o parlamentar se livrou das calças para amenizar o calor. Publicadas com destaque na edição seguinte da revista, as cenas ridículas com as roupas de baixo expostas foram suficientes para que ele se tornasse o primeiro parlamentar a ter o mandato cassado pelo Congresso Nacional. Motivo: quebra do decoro parlamentar.
Não que Barreto Pinto, um dos suplentes de Getúlio Vargas, fosse exatamente um bastião da ética – a própria reportagem que acompanha a foto do congressista revela o esconderijo do cofre do parlamentar: “Os ladrões que lerem esta reportagem não devem se esquecer: é o quarto escritório, o primeiro à esquerda de quem vai”.
Passados mais de 60 anos, a punição imposta a Barreto Pinto soaria como uma enorme injustiça entre seus pares. A exemplo do deputado varguista, o próprio senador Eduardo Suplicy, que costuma ser apontado como um dos poucos políticos que ainda defendem a ética dentro do PT, desfilou com uma cueca do Super-Homem pelos corredores do Congresso.
O fato é que ao longo das últimas décadas, arraigou-se no Legislativo brasileiro a malfadada tolerância aos deslizes éticos, aos conchavos políticos e à cultura dos "pequenos desvios". Esses desvios, aliás, quase sempre são mais que moralmente condenáveis: eles infringem regras escritas em portarias, regimentos, leis. Não são meras infrações dos bons costumes - são algo pior do que isso.
Durante o histórico julgamento do mensalão no Supremo Tribunal Federal (STF), a ministra Cármen Lúcia, que também é presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), resumiu a questão em um célebre voto: "No estado de direito, o ilícito há de ser processado, verificado e, se comprovado, punido porque estamos vivemos um estado que foi duramente conquistado". Na ocasião, ela criticava a tentativa dos advogados dos réus de minimizar os crimes cometidos com a tese de que o esquema implicava "apenas" o caixa dois eleitoral. "Acho estranho e muito, muito grave que alguém diga com toda a tranquilidade: ‘Ora, houve caixa dois’. Caixa dois é crime, caixa dois é uma agressão à sociedade brasileira. Caixa dois compromete. Mesmo que tivesse sido isso ou só isso, isso não é só, isso não é pouco. Fica parecendo que ilícito no Brasil pode ser praticado, confessado e tudo bem. Não está tudo bem. Tudo bem está um país com estado de direito em que todo mundo cumpre a lei", afirmou Cármen Lúcia.
Às vésperas da eleição das novas mesas diretoras da Câmara e do Senado, o Congresso hoje dá novas demonstrações do seu definhamento moral - e, para usar as palavras da ministra Cármem Lúcia, do seu desprezo ao estado de direito. São favoritos à presidência das Casas o deputado Henrique Eduardo Alves (PMDB-RN) e o senador Renan Calheiros (PMDB-AL), dois velhos próceres do fisiologismo e da conveniência política. Ambos são filiados ao PMDB.
Conforme revelou VEJA, Henrique Alves tinha o costume de destinar sua verba indenizatória a uma empresa-fantasma: a Global Transportes, que não funciona na sede declarada e não possui patrimônio. O jornal Folha de S. Paulo também mostrou que emendas parlamentares do peemedebista favoreceram a construtora de um ex-assessor. Os fatos forçaram o deputado a dar explicações, mas não devem sequer ameaçar a candidatura dele ao cargo máximo da Casa. Mesmo o oposicionista PSDB manteve o apoio ao parlamentar após a revelação de irregularidades. Ninguém pretende levar o caso ao Conselho de Ética.