Domingo, 24 de setembro de 2017
Helena Martins – Repórter da Agência Brasil
Vestígios
da vida de operários que ajudaram a construir Brasília, objetos que
fizeram parte do passado, espécies diversas. Parte da história, da fauna
e da flora da capital federal ocultadas desde que as águas do Rio
Paranoá correram pelo vale que acabou se transformando no Lago Paranoá,
um dos locais mais conhecidos da cidade, poderá ser conhecida por toda a
população a partir de outubro, quando imagens subaquáticas da parte do
cerrado coberta pela água ganharem a internet.
A divulgação dos
registros submersos faz parte do Projeto de Mapeamento Georreferenciado
do Lago Paranoá. Idealizado pelo mergulhador Frank Bastos, a iniciativa
consiste em um site colaborativo, que receberá dos
mergulhadores vídeos e informações o que for encontrado em cada local.
As descobertas serão checadas por outra pessoa, que navegará pela
região. Depois dessa verificação, as informações se tornarão acessíveis
ao público.
Frank conta que a ideia de registrar o que existe no
lago veio da percepção de mudanças e da vontade de contribuir para a
conscientização da população. Dono de uma escola de mergulho que promove
aulas no local aos fins de semana, ele diz que vinha notando migrações e
extinções de espécies de peixes e outros animais, bem como encontrando
bastante lixo, inclusive objetos inusitados como banco de cimento e até
um orelhão telefônico. Mapeando e registrando o Lago Paranoá e sua
riqueza, ele espera sensibilizar a população para que cuide do local e
também valorize a história da cidade. Além disso, o projeto objetiva
estimular a preservação ambiental.
“Mergulhando, nós descobrimos,
por exemplo, pontos de reprodução de espécies de peixes, exatamente em
áreas destinadas ao turismo e à pesca pelo plano de manejo do lago. Por
isso, acreditamos que o projeto pode ampliar a proteção de determinados
locais. Sem informação científica, o próprio governo errou ao mapear o
lago”, diz Bastos.
Segundo
ele, o projeto também resultará no mapeamento das espécies, com a
elaboração de um catálogo específico da vida encontrada no lago que
deverá auxiliar pesquisas e discussões sobre os usos do lago. Para que
tudo isso seja alcançado, Bastos espera que historiadores e biólogos se
somem à iniciativa, que até agora agrega diferentes escolas de mergulho
da capital.
Restos de casas, fazendas, estátuas, carros, ônibus e
até um cânion são exemplos do que já foi encontrado e filmado pelos
mergulhadores. Parte desses objetos estava a 15 metros abaixo da água,
mas há áreas do lago com 40 metros de profundidade, que exigem diversos
mergulhos para serem registradas. Alguns dos vestígios são conhecidos do
público, pois foram registrados pelo repórter fotográfico Beto Barata,
autor do livro Brasília Submersa – o Fundo do Lago Paranoá, de
2010. A novidade do projeto de georreferenciamento é a utilização de
vídeos, bem como a elaboração colaborativa das informações.
Vila submersa
“Nós
não temos objetivo comercial, não colocamos marcas para que todas as
pessoas possam se envolver, mas um resultado provável é o aumento do
turismo”, comenta Bastos. Com a divulgação das imagens, outras pessoas
devem aprender a mergulhar para fazerem parte da iniciativa. Neste fim
de semana, 18 mergulhadores devem submergir na área da Vila Amaury.
Parte do grupo conhecerá o lugar pela primeira vez e passará a ajudar no
mapeamento da região rica em história.
A vila abrigava cerca de
16 mil candangos que trabalhavam para erguer a cidade e suas famílias e
foram transferidos para Sobradinho, cidade próxima a Brasília, após o
lago encher. Lá, eles devem encontrar partes dos barracos e utensílios
domésticos. Conforme a professora do Centro de Excelência em Turismo
(CET), da Universidade de Brasília (UnB), quando as comportas se abriram
e levaram à inundação do local, “as pessoas queriam salvar a si
próprias, por isso deixaram muitas coisas lá, como documentos,
brinquedos”.
Autora do livro Uma Cidade Encantada – Memórias da Vila Amaury em Brasília, que também está disponível na internet,
Ivany Neiva conta que o registro oficial nunca valorizou essa história.
“Tem muita gente que olha para o lago e, só pensando em um
cartão-postal de Brasília, não lembra que lá moraram operários e suas
famílias quando as águas chegaram”, diz.
Plano antigo
A
concepção do Lago Paranoá remonta ao fim do século 19. Em relatório de
1896, o paisagista do Império Luís Glaziou anotou que, na localidade
entre os chapadões Gama e Paranoá, existia um vale “em parte sujeita a
ser coberta pelas águas da estação chuvosa; outrora era um lago devido à
junção de diferentes cursos de água formando o rio Paranoá”. Por isso,
para ele, era “fácil compreender que, fechando essa brecha com uma obra
de arte […] forçosamente a água tornará ao seu lugar primitivo e formará
um lago navegável em todos os sentidos”.
Em 1948, a Comissão de
Estudos para a localização da Nova Capital do Brasil, presidida pelo
general Poli Coelho, referendou os estudos da Comissão Cruls, segundo o
Instituto Histórico e Geográfico do Distrito Federal. A ideia foi
retomada na construção de Brasília. Várias dificuldades atrasaram
seguidas vezes a obra, que acabou sendo efetivada no início dos anos
1960. Segundo o instituto, “durante oito meses as águas avançavam
mansas, lentamente, por sobre as terras secas e coloridas do cerrado.
Terras inundadas”.
Durante a construção de Brasília, o presidente
Juscelino Kubitschek teve de enfrentar não apenas problemas com as
empresas responsáveis pela obra do lago e seguidos adiamentos do prazo
de entrega, mas também a crença de críticos que afirmaram que, por ter
um terreno poroso, o lago nunca encheria. Diante da concretização da
“moldura líquida da cidade” que ajudou a erguer, como ele chamou, o
presidente declarou: “Encheu, viu?”. Parte dessa história foi contada
pelo próprio Juscelino no livro Por Que Construí Brasília?