Domingo, 24 de setembro de 2017
“Não há base estatística para a redução da maioridade penal. Os números de delitos cometidos por jovens é muito baixo. O que há é uma lente de aumento que a mídia põe sobre esses casos”
“Não há base estatística para a redução da maioridade penal. Os números de delitos cometidos por jovens é muito baixo. O que há é uma lente de aumento que a mídia põe sobre esses casos”
Do Jornal do Brasil
Rebeca Letieri
A redução da maioridade penal voltou à discussão no Senado. Em meio à
crise de segurança pública no país, e principalmente com os holofotes
voltados para o Rio de Janeiro - onde a Rocinha vive dias de terror com
confronto entre traficantes e a polícia -, a pauta ganha força entre
parlamentares e ignora as estatísticas. Para especialistas no assunto,
acreditar na redução como uma solução para a criminalidade não só retira
os direitos da criança e do adolescente, como ignora o verdadeiro
problema que deveria estar em pauta: a falta de investimento em
educação.
“Uma pergunta que eu sempre faço para as pessoas que
defendem essa medida é: por que não colocar toda essa energia política
que colocam pela causa da redução em favor do ensino público integral?
Se a criança e o jovem estivessem estudando e bem alimentados ao longo
do dia, dificilmente estariam na rua assaltando as pessoas”, questionou o
coordenador do movimento ‘Niterói Contra a Redução’, e advogado Marcos
Kalil Filho.
A matéria que está na pauta para ser votada é a
Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 33/2012, que prevê a redução da
maioridade penal para os jovens de 18 para 16 anos. Os senadores adiaram
a votação que estava prevista para esta quarta-feira (20) na Comissão
de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) do Senado. A pauta da
comissão, da qual constavam mais de 40 itens, deve ser votada na próxima
semana. Se o texto for aprovado na CCJ, ele seguirá direto para o
plenário do Senado, onde deverá passar por duas votações. São
necessárias a aprovação de 49 dos 81 deputados.
Diante da
polêmico do assunto, senadores argumentaram que não teriam tempo
suficiente essa semana para fazer o contraponto ao texto do relator, o
senador Ricardo Ferraço (PSDB-ES), favorável à mudança.
O tema
havia sido uma das principais bandeiras do ex-presidente da Câmara dos
Deputados, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), hoje preso pela Operação Lava Jato.
Depois dos desgastes sofridos pelos parlamentares ligados a Cunha, a
pauta havia sido esquecida no Congresso desde meados de 2015.
Para Marcos Kalil, a proposta volta à pauta do Congresso com base no que ele chamou de “populismo penal”.
“A
população brasileira, da elite às estratificações mais baixas, veem na
redução da maioridade penal uma saída concreta para a percepção
crescente da violência urbana. Logo, para os políticos, o tema é um
chamariz. Chama a atenção do eleitorado, garantindo holofotes e, quem
sabe, alguns votos. Estamos praticamente em ano eleitoral”, completou.
Críticas
As
críticas de parlamentares e movimentos sociais diversos que atuam na
área de Direitos Humanos são extensas e o debate está longe de ser novo
ou simples. O Ministério dos Direitos Humanos (MDH) divulgou nota na
última quarta-feira (20) em que manifesta "profunda preocupação" quanto à
PEC. O órgão diz que o texto é inconstitucional, ignora o "colapso" do
sistema prisional brasileiro e viola direito dos adolescentes.
Ressalta
também que a Constituição de 1988 prioriza a criança e o adolescente e
estabelece o "dever do Estado, da família e da sociedade em
assegurar-lhes direitos básicos, colocando-os a salvo de toda forma de
violência, crueldade e opressão." "Além de violar cláusula pétrea
constitucional, a proposta afronta parâmetros protetivos internacionais,
que o Estado brasileiro se comprometeu a cumprir, como a Convenção
sobre os Direitos da Criança", completou.
A proposta original de
redução da maioridade penal, que já era criticada por estes movimentos,
estabelecia a redução para os crimes hediondos, tortura, terrorismo,
tráfico de drogas e casos repetidos de roubo qualificado e agressão
física. O autor é o senador Aloysio Nunes Ferreira (PSDB-SP), atual
ministro de Relações Exteriores.
Marcos explica que a PEC 33/2012
não é o mesmo projeto que foi aprovado na Câmara no passado. Ela permite
que o juiz desconsidere a inimputabilidade de um jovem entre 16 e 18
anos para puni-lo conforme um adulto, se assim julgar necessário.
“Ainda
assim, se insere no campo da redução da maioridade penal, pois abre um
perigoso precedente de ameaça aos direitos da criança e do adolescente”,
disse o advogado, acrescentando: “Difícil pensar que, na prática, com
uma Justiça classista e racista, a maioria dos casos de adolescentes
infratores que se encaixarem em um perfil racial e sócio-econômico
específico não será tratada pelos juízes como imputável. Além disso, com
a espetacularização da justiça, casos de grande repercussão ensejarão
pressão pública extra sobre os ombros dos magistrados para que eles
punam esse ou aquele réu”.
Além do ministério, diversas entidades
como ONU, Fórum Brasileiro de Segurança Pública, OAB, Associação dos
Magistrados Brasileiros, CNBB e Procuradoria Federal dos Direitos do
Cidadão, criticam a proposta.
Estatísticas
Apontada
como solução para os altos índices de criminalidade, a medida pode ser
contestada pelas próprias estatísticas sobre a violência no país. Ao
contrário do que se diz, estudos apontam que o jovem, pobre e negro da
periferia é a maior vítima da criminalidade.
Entre 2010 e 2012, os
atos infracionais cometidos por jovens contra a pessoa diminuíram. O
homicídio, por exemplo, passou de 14,9% do total dos tipos de conduta
para 9% e o estupro chegou a 1,4%. Dos 21 milhões de meninos e meninas
entre 12 e 18 anos, apenas 90 mil incorreram em atos infracionais até
2011.
“Não há base estatística para a redução da maioridade penal.
Os números de delitos cometidos por jovens é muito baixo. O que há é
uma lente de aumento que a mídia põe sobre esses casos”, explicou
Marcos.
Além disso, o Brasil tem a 3ª maior população carcerária
do mundo com mais de 715.00 presos. Entre 1992 e 2013, o país teve o
maior aumento desse contingente no mundo. No sistema prisional para
maiores de 18 anos, o indivíduo volta a cometer um crime em 80% das
vezes.
“Privar uma pessoa de liberdade não promove a sua
socialização com quem está fora dela. Seja em uma prisão luxuosa, seja
nos depósitos de corpos brasileiros. O agravante daqui é que as péssimas
condições de vida das prisões são crimes de Estado contra o indivíduo.
Além disso, muitos entram sem nenhuma ligação com organizações
criminosas e saem ligados a elas”, completou o advogado.
O Fundo
das Nações Unidas para a Infância (Unicef) também se manifestou contra a
proposta que voltou à pauta nessa semana. “Reduzir a maioridade penal
não resolverá o problema de segurança e dos altos índices de violência.
No Brasil, os adolescentes são hoje mais vítimas do que autores de atos
de violência”, disse a agência da ONU em nota. “O país precisa se
comprometer com a garantia de oportunidades para que suas crianças e
seus adolescentes se desenvolvam plenamente, sem nenhum tipo de
violência”.
Medidas socioeducativas
Mesmo
sendo exceção, a pergunta que paira sobre a maioria da população é com
relação a punição para esses jovens, que se não vão para as prisões, vão
para onde? Os dados indicam que, entre 1996 e 2012, houve um aumento de
294% no número de adolescentes encarcerados, alcançando quase 21 mil
jovens reclusos.
“O senso comum acredita que o adolescente não é
responsabilizado. Todos são responsabilizados a partir dos 12 anos. As
pessoas desconhecem o fato de que o adolescente tem a medida
socioeducativa como uma possibilidade dele refletir sobre o ato
praticado. As instituições são as responsáveis por aplicar essas
medidas. Em vez disso, atacam em outra vertente que é aumentar o tempo
de internação ou reduzir a maioridade penal como se isso fosse resolver o
problema da segurança”, explicou Sidney Teles, ex diretor-geral do
Degase, o Departamento Geral de Ações Socioeducativas, órgão vinculado a
Secretaria de Estado de Educação.
O jovem entre 12 e 17 anos que
sai do sistema socioeducativo, para onde ele é encaminhado hoje, volta a
cometer crimes apenas 16% das vezes. Entre 2010 e 2012, houve um
aumento de 33% na aplicação de medidas socioeducativas, alcançando quase
90 mil adolescentes. “A percepção da população a partir da publicidade
que se dá a casos com menores infratores é maior do que a repercussão de
um ato praticado por um adulto. E aí volta essa pauta de reduzir como
solução, para um problema que, na verdade, envolve outras questões como a
falta de educação, saúde e cultura”, disse.
Sidney citou a caso
recente na Rocinha que deixou quase 2,5 mil alunos da rede municipal de
ensino sem aula na última sexta-feira (22) por causa de conflitos entre
policiais e criminosos. E lembrou do caso no Jacarezinho mês passado: ao
todo, nove escolas, quatro creches e dois Espaços de Desenvolvimento
Infantil da região precisaram ser fechadas, totalizando 15 unidades
escolares. Com isso, cerca de 6.200 alunos da região permaneceram sem
aulas.
“Mas isso não tem o impacto que deveria ter numa sociedade evoluída”, acrescentou.
E
finaliza: “Desde a sua promulgação, o estatuto é tratado como uma lei
avançada para o nosso país. Eu diria que o país é que é atrasado para
tratar dos direitos da criança e do adolescente. Se pensarmos no Rio,
que condição [educação, cultura e saúde] nós estamos oferecendo a essas
crianças para que nós tenhamos esse pensamento de reduzir a maioridade?
Em vez de construir mais escolas, construímos mais prisões. Nós estamos
retrocedendo. E os mais penalizados com isso são as crianças e
adolescentes que vivem em situação de maior vulnerabilidade social”.