Imprensa é oposição. O resto é armazém de secos e molhados."

(Millôr Fernandes)

quinta-feira, 15 de fevereiro de 2018

Vocês não nos conhecem!

Quinta, 15 de fevereiro de 2018

“Basta estar vivo 
pra ser subversivo
(Ou subservivo.)”

Nesse breve atalho entre o berço, com guarnições de cambraia, hidratante importado para as dobrinhas e colônia francesa para realçar o cheirinho de bebê, imagino que tenha custado muito suor para chegar ao chamado reconhecimento do mérito.

Regras rígidas para não passar a hora das refeições, não sujar o uniforme antes de sair para a escola, só assistir desenhos animados na hora autorizada por mamãe, fazer as lições do dia, chamar a professora de senhora, só brincar com as crianças que os pais autorizassem, não falar com estranhos (muitos menos aceitar balinhas oferecidas por eles), não falar alto durante o culto ou a missa, entender que “é para o seu bem” tudo que lhes foi dito pelos familiares mais velhos.

Tudo isso deve ter sido muito cansativo.

Nem um só dia sem carne (de primeira) ou peixe ou frango ou equivalente. Sem sobremesa. Sem merenda entre as refeições. Nem um ano sem uniforme e sapatos novos. Sem cadernos e livros novos. Jamais um professor que lhe falasse mais alto que o autorizado pelos pais. Férias sem alguma viagem, de jeito nenhum. Talvez mais de uma para a Disney! Festas de aniversário (e noivado) com círculos selecionados de convidados. Nenhuma topada ou mesmo chuva sem a proteção devida. Um Natal sem o presente escolhido, nem pensar!

Como entender o lado de cá?
Como aceitar quem frequentou escola pública (se e até quando conseguiu)? Como entender quem estudou com uniforme de segunda mão, restos de cadernos, livros usados e rabiscados? Ou nem isso? Como respeitar quem chegou à escola e não havia a merenda, que substituiria o almoço, ou ela estava estragada? Como igualar-se com quem cresceu fazendo a faxina da casa, tomando conta dos irmãos, esquentando o próprio almoço, dividindo um bife ou um ovo? Como conhecer quem fazia as suas amizades na rua, ali jogava bola, brincava de pega, iniciou-se sexualmente? Como considerar cidadãos os que se revoltaram com a falta de ônibus, as cadeiras quebradas na escola, os banheiros interditados, a falta de professores? Os que transformaram a sua indignação em explosões individuais ou coletivas? Aquilo que se convencionou chamar de baderna?

“Basta não figurar
no registro civil
pra ser incivil.
(Ou vil, pra encurtar a palavra.)”

Mas nem todos tiveram sequer esses “direitos”.

Muitos (talvez a maioria) vivia em um lugar que dificilmente poderia ser chamado de casa. Não havia praticamente o que limpar no local. Não tinha, por exemplo, um banheiro. Precisava buscar a água para as necessidades mínimas. Ao menos uma vez por ano, tinha que abandonar o lugar em que se recolhia a família por conta de inundações. Família?! Quantos foram abandonados em orfanatos ou entregues a quem os criasse? Ou ao menos abrigasse? Quantos tiveram que deixar suas cidades e buscar a sobrevivência onde simplesmente nada os esperava?  

“Basta ser incivil
pra não ser ninguém.”

Enfim, no lado obscuro da lua, ali onde não há visibilidade para os bem nascidos, onde lhes é impossível enxergar, ali vivem negros, vivem índios, muitos dos ciganos (“existe isso no Brasil?”), ali crescem e habitam os que enfrentam a luta para estar vivo ao final de cada dia.

“Basta não ser ninguém
pra ter o apelido
que a polícia dá
a quem não é ninguém.”

Isso muitas vezes significa oferecer o seu corpo, o que lhe resta de força física, de destreza para superar ou evitar condições adversas, como o enfrentamento com os maiores e mais fortes ou experientes, a intolerância dos que não aceitam sequer a sua aproximação, da segurança privada, de milícias ou da polícia. Implica em compartilhar com práticas que nem sabem constituir-se em crimes. Ou imaginam, mas percebem que não existe alternativa.

“Tinha eu dois nomes:
Zebedeu,
que a miséria me deu.
E “elemento subversivo”
que a polícia me deu.”


É nessa maioria da sociedade que floresce a rebeldia. Nessa maioria nem sequer vista pelos destinados à avaliação de mérito, ou vista como algo a ser evitado, mantida ao longe.

Como as flores que vicejam na lama. A lama formada pela assepsia daquele ambiente em que se cuida dos fadados ao sucesso. Ou dos poucos a quem se dá a esperança de penetrar nessa disputa pelo nem sempre provável reconhecimento de sua dignidade.

Não falta quem tenha instrumentos para aliciar parte dessa maioria marginalizada, iludi-los compromessas vãs ou fazer com que se voltem contra os semelhantes, identificando-os como inimigos.

“E apenas uma dor:
a que a vida me deu.
e eis-me aqui, incivil,
(ou vil, pra encurtar a palavra).”

Ali está a origem de Lula.

Cada vez mais gente percebe que ele sentiu as mesmas dores, passou pelas mesmas condições e só por isso pode lhes oferecer alguma esperança.

Cada vez mais gente consegue traduzir as ações de seus governos, o conteúdo do seu discurso simples e rico de significação. Apropriar-se disso e identificar que aquele é o caminho.

É por isso que Lula é inaceitável.

É por isso que Lula precisa ser destruído.

Grande parte dos despossuídos já tem a clareza do que está em disputa. E até muitos dos que eram embriagados com a ilusão de que estavam muito próximos dos privilegiados já conseguem ver a mentira que sempre lhes foi diariamente incutida, a falsidade da expectativa de futuro que lhes era oferecida.

“Uma patada de cavalo
em meio do comício
e eis-me aqui, estendido em decúbito
dorsal.

(Ou já cortado ao meio,
sem dor, nem sal.)”

Não! Não podemos nos submeter à fatalidade aludida nos belíssimos e lúcidos versos do Canto Incivil de Cassiano Ricardo.

A luta está à nossa frente e sequer temos mais como evitá-la.

Vivemos um processo de urbanização forçado por interesses que fizeram desaparecer a possibilidade de vida no campo. Vivemos a favelização da população que foi lançada nas cidades. Vivemos a segregação dessa gente. Vivemos a violência com que durante duas décadas de ditadura a revolta foi reprimida. E a marginalização de parcelas cada vez maiores da sociedade. Sabemos que se coloca à nossa frente a imposição de um projeto em que o sofrimento será ainda maior, um grupo cada vez menor terá acesso a condições aceitáveis de sobrevivência.

Não temos alternativa que não seja lutar.

E aprendemos a suportar dificuldades e enfrentar inimigos aparentemente superiores.

Temos o caminho e vamos segui-lo.

“Basta estar vivo
pra ser subversivo
(Ou subservivo.)”

Lula pode contar conosco. 
Fernando Tolentino