Imprensa é oposição. O resto é armazém de secos e molhados."

(Millôr Fernandes)

quinta-feira, 18 de junho de 2020

A política de frente para derrotar Bolsonaro e salvar a democracia

Quinta, 18 de junho de 2020
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A Frente Ampla necessária para a defesa da democracia não é um produto ideológico, assim desapartado da realidade, muito menos relíquia doutrinária: trata-se de imperativo da necessidade histórica, e resulta das condições objetivas em que se trava a luta política de nossos dias. É, portanto, um ditado da correlação de forças presente, que põe na defensiva  as forças populares e democráticas brasileiras. Eis por que, mantidas as condições atuais, propor a “frente de esquerda” como instrumento prioritário de ação só contribuirá para nos desviar da tarefa imediata de hoje: unir as forças democráticas que se opõem ao projeto bolsonarista. Esse desvio de rota mais dificulta ao invés de facilitar a unidade, enfraquece ao invés de nos fortalecer na luta, e por fim desagrega quando precisamos unir e ampliar. Ao fim e ao cabo, termina por levar mais água para as rodas do moinho da reação, já tão forte. Este não é o momento de dispersar, mas, sim, de acumular forças.

A “transição por cima”, que se diz temer, só será possível se a esquerda se omitir diante da Frente Ampla, ou com ela concorrer,  ou isolar-se numa “frente” que unificará, apenas, os que já estão juntos, e somos tão poucos!, pois sequer conseguimos, até aqui, a unidade de nossos partidos no Congresso. Ao invés de tentar substituir a frente ampla pela frente estreita, devemos lutar, paralelamente, para a unificação das esquerdas, para que, como coletivo, atue, inclusive na Frente Ampla, influindo  em seus rumos e nela travando o debate com as forças à nossa direita. É esta a mecânica de toda frente. Frente não é partido, não é grêmio de camaradas.

Essa discussão, que ensaiei em artigos anteriores, é retomada porque setores influentes de nosso campo – desafeitos às distinções curiais entre tática e estratégia –,  não têm compreendido que a Frente Ampla não é uma alternativa à “frente de esquerda” (por definir-se), mas a forma de luta que as condições presentes indicam como a mais viável, porque supera nossa atual fragilidade (das esquerdas de um modo geral e da esquerda socialista de um modo muito particular), ao tempo em que fortalece nossa capacidade coletiva de luta, ao trazer para a defesa da democracia (ou: para a resistência ao golpe) setores que não fazem parte de nosso campo. E ampliação é exatamente isso. Amanhã, mudando a realidade, mudaremos com ela.

A propósito, é preciso repetir que a Frente Ampla pró-democracia, como toda frente ampla, no mundo e em todos os tempos, é circunstancial, é mesmo um movimento e um processo que se altera, inclusive em sua composição; há os que nela atuam desde o começo e nela permanecem,  e os que a ela se incorporam ou a abandonam em meio à caminhada. Ela mesma pode se alterar em sua natureza. A frente amplíssima que em 1985 implodiu o colégio eleitoral montado pela ditadura para eleger seu delfin deita suas raízes na campanha pela Anistia, liderada por um senador eleito pelas forças conservadoras, e foi concertada na campanha pelas Diretas Já.

A Frente Ampla – ainda é preciso destacar? – não é o ponto de chegada de nossa luta, mas a alternativa, tática,  mais consequente de que dispomos para enfrentar o inimigo e assegurar a continuidade democrática, reunindo sob o mesmo guarda-chuva forças tão diversas no espectro político-ideológico como trabalhistas, socialistas, liberais e mesmo quadros e personalidades de direita, intelectuais e empresários. Ou seja: aqueles que, por quaisquer que sejam suas motivações (ou contradição de interesses), estão, neste momento, empenhados na defesa da ordem democrática. Por isso mesmo, a Frente Ampla tem objetivos limitados e definidos: a defesa das liberdades democráticas  com  a volta dos militares ao enquadramento da Constituição e o fim do governo Bolsonaro. A Frente de esquerda deve disputar o que virá depois. Isso não significa que ela só deva ser construída a posteriori, mas significa que ela não pode ser apresentada como alternativa à Frente Ampla. As duas propostas não são auto-excludentes.

Assegurada a democracia, saberemos cada um de nós o que fazer a partir daí. E a esquerda sabe que não avançará em seu projeto de uma nova sociedade se não avançar na organização e educação das massas, e para uma coisa e outra também sabe que é decisivo preservar o ambiente de franquias democráticas que as necessidades do capitalismo oferecem. Os liberais e outras forças que hoje podem compor conosco sabem, por seu lado, que não contarão com a esquerda para a legitimação do “bolsonarismo sem Bolsonaro”. Todos os objetivos e todos os limites são conhecidos, e ninguém está enganando ninguém, porque, nesse jogo, ninguém é mais esperto do que o outro. Todos sabemos que o caráter da Frente Ampla não será ditado por manifestos, mas pela composição das forças políticas que a integrarem.

Quando se pensa em táticas e estratégia é preciso ter em conta a fragilidade da democracia brasileira, de que resulta a primazia de sua defesa, como conditio sine qua non da vida política. Está aí como testemunho grandiloquente a história republicana, juncada de ditaduras dos mais variados gostos. E como poderia ser diferente, em sociedade que ostenta a maior desigualdade social do planeta? Sociedade racista na qual a plenitude dos direitos civis é privilégio dos poucos hóspedes da casa grande? Em que a população não se identifica com seus representantes e não guarda amor pelo poder legislativo? Sociedade, enfim, na qual as forças armadas assumem o papel de defensoras e mantenedoras do statu quo, adversárias dos interesses das grandes massas e agora do desenvolvimento nacional ao abraçarem o neoliberalismo,  e requerem para si o papel monárquico de “poder moderador”, acima das leis e da Constituição, acima da soberania popular, que são useiras e vezeiras em desrespeitar. Por isso essa democracia é tão frágil, por isso precisamos defendê-la como prioridade (juntando todas as forças possíveis) pois sua supressão, e não estão tão distantes os tempos da ditadura militar, torna ainda mais difícil a organização social e a defesa dos interesses dos trabalhadores e dos mais pobres.

Qual o poder de fogo que reuniria a “frente de esquerda”  (assim auto-isolada) para enfrentar e derrotar o inimigo poderosíssimo, em cuja escolta estão o “mercado” e as baionetas de generais comissionados, como esse general Luiz Ramos que nos ameaça com o que não se sabe se “a oposição esticar a corda”, ou esse Azevedo e Silva, ministro militar de um ministério criado para ser ocupado por civis, que diz o que as forças armadas aceitam e não aceitam, e entre o que não aceitam está a “tomada de poder por outro poder da República, ao arrepio das leis, ou por conta de julgamentos políticos”, o que quer dizer que as forças armadas não aceitam ou não aceitariam um julgamento do TSE ou do STF contrário à dupla capitão-general, ou o impeachment do capitão, pelo Congresso, como aceitou o golpe via impeachment que cassou o mandato da presidente Dilma Rousseff?

Este quadro diz bem do adversário a que nos cabe dar combate. Seu poder é que dita a nossa conformação (essa é uma velha lição de estratégia), por isso ela precisa ser a mais ampla possível.

Sem prejuízo da política de frente, apanágio histórico das esquerdas, os socialistas precisam, porém, demarcar seus objetivos próprios e, daí, suas alianças. É fundamental para todos nós a derrubada do governo presidido pelo capitão e pelo general, porque é um governo antidemocrático e que enceta, com a pauta Guedes, apoiada pelos generais, a destruição nacional. Isso implica dizer que não nos satisfarão, à esquerda, nem a domesticação do capitão escatológico, nem sua troca pelo general, até porque é impossível saber quem é o original e quem é o clone. Derrubado o governo, sobrará ainda para a esquerda o embate contra o bolsonarismo como corrente política de extrema-direita com lastro social. É chegada  a hora de voltar às bases para poder retomar as ruas.

Carlos Lessa

Apesar de esperada, chegou-nos cortando a alma a notícia de que Carlos Lessa deixara o nosso convívio, após tantos meses de luta pela vida que lhe impuseram o distanciamento de suas paixões: o debate, a leitura e a escrita. A última vez em que conversamos em longo bate-papo, ele já frágil, foi em meados do ano passado em jantar aqui no Rio de Janeiro, com Luiz Gonzaga Belluzzo, Sérgio Lírio e Darc Costa, seu vice-presidente no BNDES. Meses depois as circunstâncias permitiram despedir-me dele, já no leito do hospital onde ficou por tantos meses. Trocamos as palavras amigas e carinhosas de sempre. Conhecíamo-nos de longa data, passamos pela Fundação Getúlio Vargas e pela edição do seu Introdução à economia: uma abordagem estruturalista (com o saudoso Antônio de Castro) quando eu palpitava na Forense-Universitária. Mas nossa amizade se fez realmente a partir da presença comum no primeiro governo Lula, ele na presidência do BNDES e eu no Ministério da Ciência e Tecnologia. Por muitos que tenham sido os anos de nossa convivência, serão sempre muito poucos pela importância da amizade meiga e ensinadora, pelo que dizia e escrevia, mas principalmente pelo que fazia, pois o homem público é sua ações, como nos ensinou o Pe. Antônio Vieira.

O Brasil levará algum tempo para tomar consciência dessa perda. Porque o amigo cuja ausência deploramos não era apenas um de nossos melhores economistas e professor emérito – na linha sucessória de Celso Furtado e Jesus Soares Pereira –, porque era acima de tudo um grande brasileiro, apaixonado pelo seu povo e sua terra. Já está fazendo falta.

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