Imprensa é oposição. O resto é armazém de secos e molhados."

(Millôr Fernandes)

sábado, 20 de junho de 2020

Profeta da barbárie

Sábado, 20 de junho de 2020






Aldemario Araujo

Aldemario Araujo Castro
Advogado
Mestre em Direito
Procurador da Fazenda Nacional
Brasília, 20 de junho de 2020


Alguns dias antes da realização do primeiro turno das eleições presidenciais de 2018 afirmei publicamente que votaria em qualquer dos candidatos que fosse para o segundo turno como alternativa ao senhor Jair Messias Bolsonaro. Não obstante minhas convicções políticas, votaria em Haddad, Cabo Dacíolo, Alckmin, Álvaro Dias ou Meirelles. Contribuir para que o senhor Bolsonaro não chegasse à Presidência da República era muito mais relevante no contexto vivenciado e diante das perspectivas desenhadas.

Autoritário? Ditador? Fascista? O que foi, e é, Bolsonaro? Creio que pode ser realizado um interessante esforço intelectual para enquadrar o dito cujo em um ou alguns desses deploráveis padrões de atuação política. Sustento, entretanto, como fiz anteriormente, que a principal característica deletéria do “mito” é bem anterior aos modelos políticos mais rebuscados.

Sustentei, e sustento, que o “salvador da Pátria” antes de tudo é um bárbaro, um indivíduo que não compreende e não sustenta os valores mais elementares do convívio humano minimamente civilizado. Com efeito, além de outros, esses direitos fundamentais construídos duramente ao longo da história são continuamente desprezados ou afrontados pelo “mito” e seus seguidores: a) a dignidade humana; b) a liberdade de expressão (nos limites da ordem jurídica, pois não é ilimitada e álibi para a prática de crimes e transgressões); c) o pluralismo político-ideológico; d) a integridade física e moral e e) a atuação do Poder Judiciário, segundo o direito posto, contra qualquer pessoa envolvida, ou suspeita de envolvimento, em ilícitos (Lula, Dilma, Dirceu, Palocci, Valério, Aécio, Temer, Padilha, Cunha, Arthur, Jefferson, Sara, Renan, Flávio, Fabrício, Carlos, petistas, bolsonaristas, liberais, socialistas, comunistas, etc).

Não é válido, não é lógico, não é razoável, não é humano atacar e desconstruir, entre outros, esses valores e direitos fundamentais. Como defender a tortura e o estupro? Como apoiar a submissão de um ser humano absolutamente indefeso a todo tipo de sevícias físicas e morais? Como aceitar a afirmação de que uma mulher não seria estuprada porque não merece? Como defender a supressão física, pela violência aberta, daqueles que sustentam pensamentos diversos? Como não compreender e aceitar que todo direito é relativo e limitado por outros direitos ou direitos de outras pessoas humanas? Como desconsiderar solenemente a honra subjetiva e objetiva das pessoas? Como reduzir o debate político-ideológico ao nós contra eles (tirante nós, todos os outros são “comunistas”)? Como aceitar a alimentação insana dos preconceitos mais abjetos (contra negros, índios, mulheres e LGBTQIA+)? Como admitir o ataque sistemático às instituições democráticas? Como concordar com o desrespeito contínuo às restrições sanitárias em plena pandemia? Como aceitar o menosprezo pela vida humana e a inacreditável falta de solidariedade e empatia em relação à dor de familiares e amigos de vítimas do novo coronavírus? Como admitir a sonegação e a confusão acerca dos números da pandemia do novo coronavírus, contra a Constituição, várias leis (inclusive a Lei de Acesso à Informação) e um esforço enorme da sociedade brasileira pela transparência das informações públicas?

O inacreditável está presente diariamente no Brasil atual. A imprensa, organizações da sociedade civil e personalidades dos mais variados campos de atuação social gastam uma enorme energia para invocar os contornos civilizatórios mais elementares da vida em sociedade diante das contínuas presepadas palacianas.

Portanto, não é sem razão que a imagem do Brasil no exterior perde força e vitalidade continuamente desde janeiro de 2019. A pá de cal parece ter ocorrido com a postura do “mito” e seu (des)governo em relação ao combate ao novo coronavírus. O (comunista?) “The Economist” chamou Bolsonaro de Bolsonero. Der Spiegel caracterizou o salvador como o “último negacionista”. O Washington Post, The New York Times, Le Monde, The Guardian, Financial Times, El País e tantos outros não poupam críticas ao “líder” brasileiro e, por extensão, ao Brasil.

Aliás, o governo brasileiro, notadamente a equipe ministerial, é de chorar (alto e convulsivamente). Se alguma dúvida existia, o famoso vídeo da reunião do dia 22 de abril eliminou qualquer ilusão. Capitaneados pelo “mito”, com seus modos verbais já conhecidos, vários ministros se revezaram numa curiosa disputa de bajulação presidencial e sustentação de espantosas loucuras. Sobrou até para os servidores públicos, anteriormente qualificados como parasitas e assaltantes. Na ocasião, foram chamados de inimigos a serem tratados na base de granadas.

O comportamento dos seguidores e apoiadores do “mito” apresenta claramente as características de uma seita. O primeiro traço distintivo está presente na convicção da existência de um líder infalível, incorruptível e que incorpora todas as virtudes. Todas as falas e ações do líder, por mais absurdas e repugnantes que se relevem, são vistas como partes de um combate glorioso contra os inimigos. Aliás, esse é outro traço importantíssimo característico da seita. Trava-se uma guerra sem quartel contra os infiéis, assim entendidos todos aqueles que não compartilham os valores e visões de mundo do movimento. A seita do “mito” qualifica qualquer diferença como manifestação do “comunismo” dos esquerdopatas. E vale tudo contra os “comunistas” e seu “avanço cultural globalista”, até mesmo a associação parlamentar com o Centrão e seus métodos e objetivos angelicais. Também são vistas múltiplas conspirações em curso, alimentadas por organismos internacionais, adversários políticos e instituições.

Recentemente, ao divulgar uma imagem pública do Messias em uma rede social, com uma única expressão (“a imagem”), fui qualificado de “verme comunista”. Tenho recebido inúmeras mensagens, principalmente de WhatsApp, distorcendo todo tipo de informação e qualificando toda e qualquer divergência com a seita de manifestação de esquerdismo ou esquerdopatia. São incluídos nesse campo: a) a maioria dos meios de comunicação, notadamente a Rede Globo e a Folha de São Paulo; b) a Ordem dos Advogados do Brasil, em especial seu Presidente Nacional; c) o Supremo Tribunal Federal e cada um dos seus integrantes, que são vagabundos a serem presos, segundo o ex-Ministro da Educação (o mesmo STF que não interrompeu o impeachment de Dilma Rousseff, apesar das inúmeras ações propostas com esse objetivo); d) o Congresso Nacional, particularmente os presidentes das duas Casas parlamentares; e) quase todos os Governadores de Estado; f) a maioria dos Prefeitos e g) todos aqueles que se manifestam publicamente contra o governo (são, nas palavras do “mito”: marginais, viciados e idiotas que não servem para nada).

A divisão do mundo na base do “nós e (contra) eles” talvez seja a mais deletéria das influências da seita do “mito”. A complexa e plural formação histórica (por séculos) de escolas e linhas de pensamento nos campos da economia, psicologia, sociologia, direito, política, entre outros, são solenemente ignorados. Temos os bolsonaristas contra os “comunistas”. A direita contra a esquerda (formada por esquerdistas ou esquerdopatas). Tudo e todos foram carimbados como pretos ou brancos. A realidade, a nua e crua realidade, com seus inúmeros tons de cinza, é desconsiderada sem nenhuma cerimônia. Em suma, a indigência mental foi elevada à enésima potência.

Aliás, o maniqueísmo referido funciona como uma excelente zona de conforto, preguiça ou incapacidade intelectual de ler, entender e interagir com um mundo crescentemente complexo e multifacetado. Com efeito, dá muito trabalho e exige muito esforço lidar com dados, argumentos, debates e formar opiniões e convicções próprias, alinhadas ou não com grupos ou movimentos já existentes. É mais fácil e mais cômodo aderir ao movimento do “bem” contra o “mal”.

É importante sublinhar que não existe a esquerda (no singular), assim como não existe a direita (também no singular). No campo da esquerda do espectro político são inúmeros os grupos, movimentos e pensamentos. Provavelmente, o traço comum gravita em torno da ideia de justiça social (foco no nós, no coletivo). Aparentemente, as mais variadas nuances da direita possuem como denominador comum a ideia de livre iniciativa econômica (foco no eu, no individual).

Creio que a mais importante divisão no campo das esquerdas separa as esquerdas capitalistas das esquerdas anticapitalistas. No primeiro bloco, estão aqueles preocupados com políticas de cunho social e a construção de um Estado/sociedade de bem-estar nos marcos do modo de produção capitalista. De uma forma geral, a atual social-democracia europeia está solidamente inserida nesta subdivisão (depois de abandonar suas posições originais). De alguma maneira, com imensas dificuldades e ressalvas, também os democratas norte-americanos, ou parte significativa deles, podem ser incluídos nas esquerdas capitalistas. Já as esquerdas anticapitalistas sustentam, em linhas gerais, que só a superação do modo de produção capitalista criará as condições para uma ampla e verdadeira sociedade de bem-estar social.

A tacanha visão de mundo a partir do bolsonarismo mais lunático e avoado nega até a história da humanidade. É incapaz de identificar nos movimentos de esquerda a espinhosa construção dos direitos sociais, notadamente na seara do trabalho, e os pilares do desenvolvimento do Estado de bem-estar social. Não reconhece nos liberais, mais tradicional e respeitável vertente das direitas democráticas, um relevante papel na afirmação dos direitos individuais. As lutas identitárias, buscando a superação de preconceitos e agressões contra grupos sociologicamente minoritários (mulheres, negros, índios, LGBTQIA+) não são movimentos historicamente de esquerda. Estão vinculados originalmente aos liberais e são bandeiras atuais dos setores mais esclarecidos da humanidade (das direitas, “dos centros” e das esquerdas). No Brasil das trevas do “mito”, as lutas contra os diversos preconceitos e discriminações virou coisa dos esquerdopatas.

Uma palavra sobre o tal “viés ideológico”, tão repetido pelos bolsonaristas, e caracterizado como uma deturpação do pensamento ou uma doença mental. Toda e qualquer pessoa (viva) tem ideologia. Sustento, entre as várias visões existentes, que a ideologia é uma concepção de mundo emergente da leitura do real e orientadora da tomada de decisões e do escalonamento de valores. Um exemplo. O combate às desigualdades sociais pode seguir caminhos diversos. Um deles aponta para a utilização ampla de programas públicos (auxílios, distribuição de renda, formação para o trabalho, etc). Outro caminho sustenta a redução da atuação do Estado e o aumento do espaço de ação da iniciativa privada (redução de tributos, aumento da atividade econômica, geração de empregos, etc). Percorrer uma ou outra trilha revela uma escolha político-ideológica. Não creio, portanto, que a ideologia esconde ou distorce a realidade. Pelo contrário, a realidade é o teste inexorável da ideologia.
Portanto, como disse recentemente (e infelizmente) um estimado colega de Advocacia-Geral da União, o Messias, antes de ser autoritário, ditador ou fascista, é um profeta. O profeta, digo eu, dos comportamentos e valores mais vis e deletérios do convívio humano. O profeta da barbárie.