Segunda, 10 de agosto de 2015
Por Aldemario Araujo Castro*
Em sua página no Facebook, o
Presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, registrou, no dia 8 de agosto,
um veemente protesto em relação a uma atuação específica da Advocacia-Geral da
União (AGU). Afirmou o Deputado: “A Senadora Rose de Freitas entrou com uma
ação no STF para suspender a votação das contas dos ex-presidentes, realizada
essa semana, depois de mais de 20 anos. Essa ação tem interesses muito
estranhos, e talvez tente tumultuar o processo, para que as contas do atual
governo não possam ser avaliadas pela Câmara./Ela entrou com ação na qualidade
de presidente da comissão sem a aprovação prévia da comissão para isso. Em
função de usar a prerrogativa de presidente, solicitou e, estranhamente, obteve
o patrocínio da Advocacia Geral da União assinando a causa./A AGU faz a
advocacia institucional da Câmara e não poderia patrocinar causa de parlamentar
contra a Câmara. A AGU tem de explicar sobre esse assunto, pois ou faz
advocacia de estado ou defende os interesses que achar próprios”.
Abstraindo os aspectos ligados a
intensa disputa observada na atual quadra da política brasileira, o episódio se
presta, como poucos, para uma importante análise acerca do perfil de atuação da
AGU (Advocacia de Estado versus Advocacia de Governo) e dos mecanismos
internos adotados para a formação de decisões capitais pela instituição.
É longo e penoso o processo de construção
de uma Advocacia Pública em novas bases, com valores e paradigmas alinhados à
modernidade e procedimentos adequados aos novos tempos. A exata e mais radical
(no sentido de profunda) compreensão e efetivação da condição de instituição de Estado da Advocacia Pública, e da
Advocacia-Geral da União em particular, não é um movimento dos mais fáceis.
Perceba-se
que o advogado público pauta sua atividade, quer contenciosa, quer consultiva,
na legalidade em sentido amplo (ou juridicidade). Na atuação contenciosa são
defendidas políticas públicas e atos administrativos sob os argumentos de serem
fundados em leis e estarem em consonância com a Constituição. É certo,
registre-se, a persistência de uma séria dificuldade, a ser operacionalmente
superada, quanto à defesa, ou não, dos atos administrativos reputados ilegais
ou inconstitucionais, considerados e devidamente tratados os espaços de
razoabilidade e as convicções pessoais acerca das matérias jurídicas
envolvidas. Na atuação consultiva são reconhecidas, ou não, a
constitucionalidade e a legalidade de políticas públicas e atos
administrativos. Ainda nessa seara podem e devem ser apontados, numa postura
responsável e construtiva, os caminhos ou soluções que afastem os ilícitos de
todas as ordens para a consecução da decisão política adotada. Esses são os
traços mais salientes de uma advocacia de Estado.
Na
advocacia de Governo (ou dos governantes), o advogado público é chamado para,
diante de uma decisão pronta e acabada, necessariamente atestar a constitucionalidade e a
legalidade de uma certa pretensão. Para o atingimento desse objetivo escuso
pode ocorrer um chamamento direto (“uma ordem”), até mesmo efetivado depois de
bem avançada a noite. Os “caminhos” podem ser mais sutis, incluindo uma
“cuidadosa” seleção para inserção em “cadeias de comando” formadas por cargos
comissionados e “benefícios” funcionais de vários tipos.
Na
advocacia de Estado, a defesa de atos de autoridades públicas (ou representação
dessas, em sentido mais amplo) não pode ser efetivada de forma acrítica, em
todos os casos e em quaisquer circunstâncias. Afinal, existem inúmeras
situações onde impera a ilegalidade, a imoralidade, a improbidade, a má-fé e o
dolo. Nesse sentido, a atuação nessa seara reclama um olhar criterioso. Não se
justifica, por exemplo, a atuação judicial em favor de autoridades quando: a)
não tenham sido os atos praticados no estrito exercício das atribuições
constitucionais, legais ou regulamentares; b) não tenha havido a prévia análise
do órgão de consultoria e assessoramento jurídico competente, nas situações em
que a legislação assim o exige; c) tenha sido o ato impugnado praticado em
dissonância com a orientação, se existente, do órgão de consultoria e
assessoramento jurídico competente, que tenha apontado expressamente a
inconstitucionalidade ou ilegalidade do ato, salvo se possuir outro fundamento
jurídico razoável e legítimo; d) ocorra incompatibilidade com o interesse
público no caso concreto; e) identificada conduta com abuso ou desvio de poder,
ilegalidade, improbidade ou imoralidade administrativa, especialmente se
comprovados e reconhecidos administrativamente por órgão de auditoria ou
correição.
No
caso concreto, antes aludido, é no mínimo preocupante, reclamando análise
aprofundada e cuidadosa, a situação de fundo afirmada pelo Presidente da
Câmara: “ela entrou com ação na qualidade de presidente da comissão sem a
aprovação prévia da comissão para isso”. Esse
aspecto faz toda a diferença porque descaracterizaria a atuação institucional
regular (Advocacia de Estado) em favor da perseguição de objetivo específico e
particular (Advocacia de Governo).
Esse
episódio, assim como muitos outros (1) (2), aponta para a necessidade urgente
de adoção de uma série de transformações institucionais significativas na
Advocacia Pública para fixação e perenização da identidade de Advocacia de
Estado. Especificamente na Advocacia-Geral da União (AGU) é imperioso caminhar
nos seguintes sentidos:
a)
a escolha do Advogado-Geral da União, dirigente máximo da instituição, pelos
membros de suas carreiras jurídicas (como ocorre com o Procurador-Geral da
República);
b)
a fixação de espaços adequados de autonomias administrativa, orçamentária e
técnica, como delineado na PEC n. 82;
c)
a definição, com os instrumentos próprios, da independência técnica dos
advogados públicos informativa pela responsabilidade, uniformidade e postura
construtiva;
d)
a realização cotidiana da atividade jurídica a partir dos vetores da
participação coletiva (colegialidade) e horizontalidade. No caso em comento,
dada a posição institucional das autoridades envolvidas, em especial o
Presidente da Câmara dos Deputados, a decisão, pela atuação ou não, deveria ser
adotada pelo Conselho Superior da instituição;
e)
a eliminação de cargos comissionados ou a drástica redução do número deles com
uma série de providências complementares (critérios objetivos para ocupação,
escolha pelos pares, mandato, quarentena, percepção de valores reduzidos pelo
exercício). Assim, a “cadeia de comando” própria da Advocacia de Governo seria
desmantelada.
Observe-se
que a Advocacia de Governo é tão indesejável e repulsiva que chega a se
caracterizar como ilícita, justamente por afrontar a independência técnica do
advogado público, devidamente consagrada na ordem jurídica. Ademais, o padrão
de comportamento ínsito à Advocacia de Governo não se coaduna com os valores
republicanos informados pelo princípio da supremacia do interesse público
(primário).
Portanto,
na República Federativa do Brasil, constituída como Estado Democrático de
Direito (artigo primeiro da Constituição), só há um caminho a seguir. É preciso
construir e perenizar a Advocacia de Estado por intermédio dos instrumentos
institucionais adequados.
NOTAS:
(1) CÚPULA DA AGU DESPREZA O
PATRIMÔNIO PÚBLICO – PARTE I. Disponível em:
(2) CÚPULA DA AGU DESPREZA O
PATRIMÔNIO PÚBLICO – PARTE II. Disponível em:
*Aldemario Araujo Castro é Procurador
da Fazenda Nacional, Professor da Universidade Católica de Brasília – UCB, Mestre
em Direito pela Universidade Católica de Brasília – UCB