Sábado, 29 de
agosto de 2015
O
combate às heranças maldita de FHC, desastrosa de Lula e tragicômica de Dilma
deixa um único sopro de esperança: quem sabe, em 10 ou 20 anos, as forças progressistas
̶̶ e, principalmente, a esquerda brasileira ̶̶ consigam se
reconstruir e reaglutinar.
= = = = = = = = = = =
Do Correio da Cidadania
Escrito por Gabriel Brito, da Redação
Entrevista
com o economista Reinaldo Gonçalves
O Brasil continua a viver sua crise política e econômica
generalizada, refletida num momento marcado por manifestações conservadoras e
governistas carentes de grandes propostas, em meio ao lançamento da nova rodada
do ajuste fiscal, batizada de “Agenda Brasil”. Enquanto isso, os principais
blocos da burguesia articulam a manutenção da governabilidade e brecam o
fantasma do impeachment. Para analisar o momento, do ponto de vista do
interesse da maioria, o Correio da Cidadania entrevistou o economista Reinaldo
Gonçalves.
“A questão política
relevante é que, há alguns anos, estamos atolados em uma séria crise de
legitimidade do Estado (descrença na capacidade do governo Dilma de resolver os
problemas de curto, médio e longo prazos). A mediocridade esférica do governo
Dilma resulta no fato de que ele é avaliado como ruim por capitalistas e
trabalhadores, por ricos e pobres, pela direita e pela esquerda”, analisou o
professor da UFRJ.
Para melhor situar o leitor, vale lembrar que o autor do
livro Desenvolvimentismo às Avessas sempre defendeu um tratamento
impiedoso ao processo engendrado pelo lulismo e sua política conciliatória
(concretizado na afirmação do Modelo Liberal Periférico). A seu ver, arruinou
décadas de lutas populares que levaram o PT ao poder para aplicar, enfim, uma
agenda que combatesse as estruturas da desigualdade brasileira, sonho abortado
desde o primeiro dia de seus mandatos presidenciais.
“É lamentável o
debate brasileiro sobre estabilização macroeconômica. De um lado, os meninos
afoitos da ortodoxia (despachantes e candidatos a economistas-chefe dos
bancos), que defendem políticas fiscal e monetária restritivas. De outro, há as
raparigas em flor do keynesianismo, que defendem políticas macroeconômicas
expansionistas e fazem o discurso vazio do aumento de produtividade e dos
gastos em educação, sem questionar a alocação de recursos e o viés da fronteira
de produção”, atacou.
Mesmo diante de um novo momento de acirramento político, a
exemplo da eleição de 2014, e todo o show de retórica de lado a lado, Reinaldo
não teme em dizer o que realmente pensa do atual governo. “A crise de
legitimidade do Estado é muito séria. Conciliação e reforminhas não resolverão
o problema. O viés e o vício levam ao ‘navegar é preciso’, ao sabor dos ventos
(das circunstâncias, sem estratégia). O navegar sem rumo leva na direção de uma
estrutura de produção cada vez mais retrógrada e vulnerável e na direção de uma
sociedade cada vez mais corrupta, violenta e bárbara”, resumiu.
Entre algumas outras declarações que podem se considerar
bombásticas até para os debates “à esquerda”, Reinaldo não tem dúvidas em
afirmar que a reconstrução de um projeto emancipador levará décadas para ser
retomado, o que significa que, sim, o governo deveria cair e, quem sabe,
poder-se-ia inaugurar um processo similar ao Argentinazo de 2001.
“O ponto central é
que a esquerda tem muito mais razões para apoiar essa agenda do que a direita!
Certamente, os marcos do lulismo agridem mais os valores e interesses da
esquerda do que valores e os interesses da direita. A esquerda brasileira tem
mais motivos do que a direita para ser a favor do impedimento de Dilma e da
punição de Lula. A esquerda brasileira precisará de décadas para se
reconstruir. O impedimento de Dilma e a punição de Lula são condições
necessárias para a reconstrução da esquerda brasileira”, asseverou.
Correio da Cidadania: Primeiramente,
qual análise econômica você faz do primeiro semestre brasileiro, após seis
meses do chamado ajuste fiscal comandado por Joaquim Levy e defendido pela
cúpula petista?
Reinaldo Gonçalves: A
herança trágica do primeiro governo Dilma inclui profunda desestabilização
macroeconômica. A questão técnica relevante é um ajuste simultâneo (interno e
externo) com o agravante de que os desequilíbrios são todos muito fortes e
alguns com tendência de piora (recessão, desemprego etc.).
A questão política relevante é que, há alguns anos, estamos
atolados em uma séria crise de legitimidade do Estado (descrença na capacidade
do governo Dilma de resolver os problemas de curto, médio e longo prazos). A
mediocridade esférica do governo Dilma resulta no fato de que ele é avaliado
como ruim por capitalistas e trabalhadores, por ricos e pobres, pela direita e
pela esquerda.
A questão estrutural relevante é que o país persiste na
armadilha do Modelo Liberal Periférico (MLP) introduzido no governo FHC e
ampliado e aprofundado nos governos Lula e Dilma.
Esse modelo coloca o país em uma trajetória de instabilidade
e crise, cujo final é, invariavelmente, a instabilidade política e a crise
institucional. O MLP implica graves problemas estruturais: o deslocamento da
fronteira de produção na direção do setor primário-exportador, a reprimarização
do padrão de comércio exterior, a desnacionalização do aparelho produtivo, o
atraso do sistema nacional de inovações e o agravamento da dominação
financeira.
Como se não bastassem as graves restrições estruturais, o
governo Dilma caracteriza-se, desde o início em 2011, por um déficit de
governança. Mesmo quando há boas ideias e projetos, o governo mostra-se
incompetente na execução.
Além do déficit de governança há a nulidade de liderança da
Dilma. Na realidade, Dilma é um figurante supérfluo dentro do Estado
brasileiro. O figurante supérfluo tem desempenho desastroso, conduta grotesca e
deficiência cognitiva. Não há como recuperar a credibilidade do Estado
brasileiro com Dilma na presidência.
Correio da Cidadania: A continuarmos
com políticas e medidas de mesma orientação, a exemplo do que preconiza a
Agenda Brasil anunciada sob auspícios de Renan Calheiros, que projeção você faz
para a economia brasileira para o médio e longo prazos e seus impactos na vida
da população?
Reinaldo Gonçalves: A
avaliação é que estaremos ainda piores no longo prazo se ficarmos focados na
estabilização assentada em políticas fiscais e monetárias restritivas. Essas
políticas tendem a agravar as restrições estruturais que influenciam a
estabilização macroeconômica no curto prazo, a capacidade de recuperação no
médio prazo e o desenvolvimento no longo prazo.
Os desequilíbrios macroeconômicos brasileiros, após a
eclosão da crise global em 2008, resultam tanto dos erros de política dos
governos Lula e Dilma como da vulnerabilidade externa estrutural do país, que
se agravou durante esses governos. A situação de instabilidade e crise do
Brasil deve se estender por muito tempo em função dos erros e das
vulnerabilidades.
Os principais problemas estruturais do país, no âmbito do
Modelo Liberal Periférico e das relações econômicas internacionais do país,
são: 1) deslocamento da fronteira de produção na direção do setor
primário-exportador, principalmente, a partir do governo Lula; 2)
desnacionalização da economia com as privatizações, as concessões e a
penetração do investimento externo; 3) atraso do sistema nacional de inovações;
4) elevado passivo externo financeiro.
O fato de grande relevância é que o setor dominante (setor
primário-exportador) “suga” recursos (capital, mão de obra qualificada e
tecnologia) de outros setores mais dinâmicos. Ademais, há o agravante da
crescente dependência da economia brasileira em relação à demanda por
importações de commodities pela China.
Correio da Cidadania: Quais outros
caminhos poderiam ser adotados para combater a atual recessão?
Reinaldo Gonçalves: Na
situação de manutenção de falhas estruturais, é lamentável o debate brasileiro
sobre estabilização macroeconômica (ajuste simultâneo interno e externo). Mais
especificamente, é débil o debate que envolve, de um lado, os meninos afoitos
da ortodoxia (despachantes e candidatos a economistas-chefe dos bancos), que
defendem políticas fiscal e monetária restritivas e advogam reforminhas (por
exemplo, na previdência) que aumentam as oportunidades de ganhos dos bancos,
porém, não afetam questões estruturais. De outro, há as raparigas em flor do
keynesianismo, que defendem políticas macroeconômicas expansionistas e fazem o
discurso vazio do aumento de produtividade e dos gastos em educação, sem
questionar a alocação de recursos e o viés da fronteira de produção.
Atualmente, o ajuste fiscal tipo “corte e costura” é
errático e ineficaz. Esse ajuste tem custo elevado e está baseado no recorte de
gastos com critérios pouco claros e marcado pelo varejo clientelista e corrupto
do balcão da pequena política. Há, ainda, o agravante da aleatoriedade e o
oportunismo na geração de receita tributária. Aumentar impostos indiretos sobre
a atividade dos bancos implica imediatamente a transferência desse ônus fiscal
para a população em razão das práticas de abuso do poder econômico por parte
dos bancos.
Na perspectiva da esquerda, o ajuste via tributação implica
progressividade sobre os rendimentos do trabalho e maior incidência de impostos
sobre os ganhos do capital, principalmente dos setores dominantes (bancos,
agronegócio, mineração e empreiteiras). Por que não se criar um tributo sobre a
exportação de commodities?
No que se refere ao ajuste monetário, cabe mencionar que um
número cada vez menor de países usa o regime de meta de inflação. Segundo o
FMI, atualmente menos de 18% dos países-membros do Fundo usam esse tipo de
regime. No Brasil o regime cambial é ambíguo e a política cambial também é
errática e ineficaz. Há momentos em que a política cambial está focada no controle
da inflação; há momentos em que ela está direcionada para o ajuste das contas
externas; e há momentos em que o governo perde total controle sobre a
trajetória dessa variável-chave da gestão macroeconômica.
A situação brasileira é ainda mais grave quando há
inconsistência entre as políticas macroeconômicas, em particular, entre a
política de crédito e a política monetária.
Correio da Cidadania: Inevitavelmente,
é impossível falar de tudo isso sem observarmos o atual momento político, a
opor facções incrustadas no poder, gerar panelaços e manifestações de diversos
perfis. O que enxerga a este respeito e quais desdobramentos imagina para o
país e sua sociedade?
Reinaldo Gonçalves: A
atual onda de protestos populares é a única fonte de otimismo nos últimos meses.
É um sopro de esperança. A crise de legitimidade do Estado é muito séria.
Conciliação e reforminhas não resolverão o problema.
Precisaremos de décadas para superar a herança maldita de
FHC, a herança desastrosa de Lula e a herança tragicômica de Dilma. Com
esperança negativa, só resta ao povo brasileiro o mecanismo desafio-resposta.
Cabe partir, imediatamente, para o processo de ruptura com essas heranças. A
onda de protestos populares é uma das ferramentas nessa direção.
A ruptura exige, para começar: 1) a reversão do viés
favorável ao setor primário-exportador da matriz de produção; 2) a rejeição do
secular vício brasileiro de conciliação e reforminhas, baseado na covardia
atávica que, por seu turno, gera o argumento de que a “correlação de forças” não
é favorável à mudança estrutural.
O viés e o vício levam ao “navegar é preciso”, ao sabor dos
ventos (das circunstâncias, sem estratégia). O navegar sem rumo leva na direção
de uma estrutura de produção cada vez mais retrógrada e vulnerável e na direção
de uma sociedade cada vez mais corrupta, violenta e bárbara.
Correio da Cidadania: Acredita na
possibilidade de impeachment? Caso ocorresse, quais impactos você supõe que o
Brasil encararia, inclusive em termos de repercussão internacional, e como se
refletiriam na economia?
Reinaldo Gonçalves: Sou
a favor do impedimento da Dilma. Não importa quem ou que grupos políticos
assumirão. O fundamental é a contínua e crescente pressão das ruas. Os grupos
políticos estão todos contaminados e a institucionalidade apodrecida. Quem
sabe, seguindo o padrão argentino, não logremos defenestrar Dilma e, em
seguida, os Temer, Cunha, Renan e outros tipos da mesma espécie?
Ingenuidade? Talvez sim, talvez não. Naturalmente, há risco de aparecer
"salsicheiros", demagogos, farsantes e aventureiros. Mas, pelo menos,
cria-se a oportunidade para o aprofundamento da democracia, o fortalecimento
das instituições, reinvertebramento da sociedade e a reaglutinação das forças
de esquerda. Vale destacar que a reconstrução da esquerda brasileira exigirá
décadas. O impedimento de Dilma é uma oportunidade ímpar para se começar mais
rapidamente esse processo.
A recomendação de se opor ao impedimento em troca do
compromisso de Dilma, da base aliada e dos setores dominantes de promoverem
mudanças estruturais é, na melhor das hipóteses, ingênua e incoerente. Dilma é
um figurante supérfluo (desempenho desastroso e conduta grotesca, e a
presidente tem o agravante da deficiência cognitiva).
Sua permanência implica caminho errático e instável e, consequentemente,
permite ao bloco de poder consolidar e promover a sua agenda conservadora
(privatização, previdência privada, redução dos direitos trabalhistas,
desnacionalização etc.). Isso já está acontecendo tendo em vista o vácuo
de poder. No "barata voa", os setores dominantes consolidam e ganham
posições e os oportunistas tiram suas “casquinhas” (inclusive, enriquecimento
pessoal)!
Em síntese, a solução para a crise sistêmica brasileira
requer: 1) o impedimento de Dilma (o figurante supérfluo); 2) a derrota e o
isolamento do PT em função da sua desmoralização, apodrecimento e da sua
antifuncionalidade para a esquerda brasileira; 3) o combate frontal à
corrupção, o que causa a desestabilização do sistema patrimonialista e reduz os
graus de liberdade das oligarquias políticas e do bloco de poder (bancos,
empreiteiras, agronegócio e mineração); e 4) a investigação, indiciamento,
julgamento, condenação e prisão de Lula.
Esses temas são prioritários na agenda dos protestos
populares. A realidade gerou a luz! Parte do povo brasileiro está com
melhor compreensão da realidade do país e das soluções para a crise sistêmica
do que muitos políticos e analistas, inclusive, da esquerda.
O apoio das forças políticas de centro e de direita para
essa agenda não é razão para se tentar desqualificar ou rejeitar os protestos
pacíficos, populares e democráticos. O argumento de que essa agenda é promovida
pelos conservadores ou pela direita é, na melhor das hipóteses, um erro
analítico que pode ser um erro histórico. O ponto central é que a esquerda tem
muito mais razões para apoiar essa agenda do que a direita! O combate às
heranças maldita de FHC, desastrosa de Lula e tragicômica de Dilma deixa um
único sopro de esperança: quem sabe, em 10 ou 20 anos, as forças progressistas
̶̶
e, principalmente, a esquerda brasileira ̶̶ consigam se
reconstruir e reaglutinar.
Correio da Cidadania: Você sempre
afirmou que os movimentos, partidos, grupos e pessoas que se batem por um país
mais igualitário devem ser implacáveis com o lulismo e toda a lógica
orientadora de seus governos. Olhando em perspectiva, como enxerga esse
fenômeno político à luz da atualidade? Estamos às portas de seu fim?
Reinaldo Gonçalves: Estou
convencido de que a herança desastrosa de Lula é pior do que a herança maldita
de FHC ou a herança tragicômica de Dilma. O lulismo, entre muitas marcas,
expressa:
- a traição e o aborto de um projeto de transformação que foi gestado durante mais de duas décadas por distintas forças da esquerda brasileira;
- a desmoralização, o enfraquecimento e a pulverização da esquerda brasileira − uma notável parte se submeteu ao oportunismo, à venalidade, à corrupção e à covardia, e aqui não se trata somente dos atuais condenados no Mensalão e no Petrolão e na Operação Lava Jato (atuais e futuros condenados), que são pontas de iceberg;
- o invertebramento da sociedade civil − cooptação, fragilização e a corrupção de organizações representativas da sociedade civil como a UNE, CUT, MST etc., que levou à desmoralização de algumas de suas lideranças e das próprias organizações;
- a ilusão da inclusão social − pobres travestidos de nova classe média com TVs de dois metros de comprimento que morrem nos corredores dos hospitais, são humilhados pelas empresas prestadoras de serviços públicos, são vítimas da violência crescente e sofrem a humilhação de terem concluído o curso médio deficiente ou o curso superior igualmente deficiente e fazem o trabalho de semianalfabetos; pobres que caíram no “canto de sereia” criminoso do crédito fácil, que compram carros em 72 meses para passar 5 horas por dia no trânsito sob ameaça permanente de assalto e homicídio etc.;
- a crescente dominação financeira − o patrimônio líquido dos três maiores bancos privados praticamente duplica em relação ao patrimônio líquido das 500 maiores empresas do país durante os governos do PT;
- o alargamento e o aprofundamento de um sistema político patrimonialista, clientelista, nepotista e corrupto que gerou o Mensalão, Petrolão, a Operação Lava Jato etc.;
- a fragilização, talvez sem retorno, da maior empresa do país (Petrobrás) e das grandes empreiteiras nacionais que protagonizaram casos de má governança pública, má governança privada e corrupção em alta escala;
- e a seleção adversa que gerou a figurante supérflua (Dilma) − que logo no início do primeiro mandato já evidenciava a herança tragicômica e crise de legitimidade do Estado brasileiro.
Certamente, o lulismo agride mais os valores e interesses da
esquerda do que os valores e interesses da direita. A esquerda brasileira tem
mais motivos do que a direita para ser a favor do impedimento de Dilma e da
punição de Lula.
Dilma é figurante supérflua enquanto Lula é protagonista no
drama do desenvolvimento às avessas do Brasil. A esquerda brasileira precisará
de décadas para se reconstruir. O impedimento de Dilma e a punição de Lula são
condições necessárias para a reconstrução da esquerda brasileira.
Leia também:
Fim de ciclo – Editorial
Outras entrevistas com Reinaldo
Gonçalves:
‘É impostura ideológica enxergar diferenças substantivas de projeto entre PT e PSDB’ - novembro de 2014
‘Dilma aprofunda desregulamentação, liberalização e desnacionalização’ - fevereiro de 2014
BNDES financia retrocesso do aparelho produtivo, que deve prosseguir no próximo governo - agosto de 2010
Blindagem do Brasil à crise externa é de ‘papel crepom’ -
outubro de 2008
Gabriel Brito é jornalista do Correio da Cidadania.