Terça, 17 de outubro de 2017
Da Pública
Agência de Reportagem e Jornalismo Investigativo
por Patrícia Figueiredo
Distribuição do produto, cuja composição é desconhecida, contraria diretrizes de manual do Ministério da Saúde
“Aqui você tem alimentos que estariam sendo jogados no lixo e que
são reaproveitados com toda a segurança alimentar. São liofilizados e
transformados em um alimento completo. Tem proteína, vitamina e sais
minerais.” – João Doria (PSDB-SP), prefeito de São Paulo, em evento de lançamento do programa Alimento para Todos, em 8 de outubro.
A
Prefeitura de São Paulo lançou, no início de outubro, o programa
Alimento para Todos. Criado em parceria com a ONG Plataforma Sinergia, a
iniciativa institui o reaproveitamento de alimentos para a produção de
um produto chamado Allimento. Segundo o comunicado oficial, o projeto prevê a destinação de “alimentos de boa qualidade e dentro do vencimento” para a produção do composto,
definido pela Prefeitura como “um granulado nutritivo que será entregue
às populações que enfrentam carências nutricionais no município”.
Durante o evento realizado no
Auditório do Ibirapuera, Doria experimentou um biscoito feito a partir
do Allimento e falou sobre as propriedades nutricionais do composto
fabricado pela Sinergia. “Aqui você tem alimentos que estariam sendo
jogados no lixo e que são reaproveitados com toda a segurança alimentar.
São liofilizados e transformados em um alimento completo. Tem proteína,
vitamina e sais minerais”, disse. O Truco – projeto de checagem de fatos da Agência Pública – analisou a afirmação feita pelo prefeito e classificou a frase como falsa.
O Projeto de Lei 550/2016,
sancionado pelo prefeito durante o evento de lançamento do programa,
estabelece diretrizes para a Política Municipal de Erradicação da Fome.
Segundo o artigo 9º desta lei, empresas doadoras de insumos podem
receber da prefeitura isenção de impostos e outros incentivos fiscais.
Doria afirmou, na ocasião, que o Allimento passará a ser distribuído a
entidades como igrejas e templos ainda este mês, além da prefeitura.
Cerca de 50 toneladas do produto já estão em estoque e devem ser
incluídas nas cestas básicas distribuídas pelos Centros de Referência de
Assistência (Cras) para famílias em situação de risco e vulnerabilidade
social, segundo o comunicado da prefeitura.
A reportagem entrou em contato com a
Secretaria Especial de Comunicação da Prefeitura de São Paulo,
solicitando a fonte das informações usadas por Doria. Por e-mail, a
pasta respondeu que “a fonte dos dados é a Plataforma Sinergia,
que desenvolve esse trabalho”. A prefeitura recusou-se a responder às
perguntas da reportagem sobre a composição e o modo de fabricação do
Allimento, que pretende distribuir.
Questionada, a Plataforma Sinergia
limitou-se a dizer que o produto é “absolutamente seguro e nutritivo” e
que não será vendido, apenas doado. Em relação à composição, a ONG disse
que são utilizados alimentos perto da data do vencimento ou fora do
padrão de comercialização desde que “apresentem qualidade nutricional
para o consumo humano”. Não foram fornecidos detalhes sobre os
ingredientes usados na produção do composto nem sobre a origem dos
alimentos reaproveitados.
A proprietária da Sinergia, Rosana Perrotti, não atendeu aos pedidos de entrevista do Truco. Em entrevista à rádio CBN, ela explicou que o produto não tem uma tabela nutricional única e que suas propriedades nutritivas dependem da base de processamento. Ao portal G1, Rosana disse ainda que o produto pode ter suas características nutricionais adaptadas, mas não revelou detalhes das possíveis composições.
“Teremos um estoque de carboidratos e um estoque de fibra. Se o público
for de crianças, produziremos um alimento final que seja apetitoso e
nutritivo a elas”, afirmou ao site.
Ao chamar o produto de “completo”,
Doria deu uma informação falsa. Não é possível classificar um alimento
dessa maneira sem saber detalhes sobre a sua composição nutricional. “A
gente tem que pensar antes no que é uma dieta completa para poder
classificar um alimento como completo. Hoje, consideramos que uma dieta
ideal é composta de 50% a 65% de carboidratos, 25% a 35% de gorduras e
10% a 15% de proteínas”, diz a nutricionista Vânia Barberan, conselheira
do Conselho Regional de Nutrição (CRN) da 4ª Região – Rio de Janeiro/Espírito Santo. “Não temos indícios de que a composição nutricional do produto reflita essas porcentagens.”
A nutricionista preocupa-se com a
falta de informações sobre os ingredientes. “Se ele é feito com
excedentes, a composição vai variar de acordo com o que está disponível.
Como ela não é padronizada, a empresa tem que declarar quais são os
ingredientes para que a gente possa saber, por exemplo, quais são as
indicações do produto e qual deve ser a porção ideal para idosos,
gestantes ou crianças, que têm necessidades diferentes”, avalia
Barberan.
A padronização do Allimento também é questionada por Mariana Garcia, nutricionista e pesquisadora em alimentos do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec).
“Isso ainda é uma dúvida, porque os excedentes da indústria não são
sempre os mesmos. O produto terá a mesma composição nutricional, tida
como completa, em todos os lotes? Nada disso ficou claro até o momento”,
observa.
Ultraprocessados x in natura
O programa Alimento para Todos de Doria também contraria as diretrizes propostas pelo Guia Alimentar da População Brasileira.
Considerado o documento de referência do Ministério da Saúde desde
2014, o manual aborda os conceitos e recomendações de uma alimentação
saudável. “Hoje o que a gente tem como orientação é que o alimento seja o
mais próximo possível de como ele é encontrado na natureza. O produto
que é divulgado pela prefeitura é, na verdade, um alimento
ultraprocessado, o tipo de comida que o guia determina que deve ser
evitada”, explica Garcia, do Idec.
Uma dieta completa deve ser composta
majoritariamente de alimentos não industrializados. “O ultraprocessado
deve ser utilizado em larga escala apenas em situações extremas, como
catástrofes naturais ou guerras. Nesses casos, você trabalha com
enlatados, liofilizados e outros produtos industrializados, até pelas
dificuldades que o contexto impõe”, exemplifica nutricionista Vânia
Barberan.
A primeira diretriz do Guia Alimentar da População Brasileira
trata justamente da relação entre a ingestão de nutrientes e os
produtos consumidos na alimentação. Segundo o documento, a suplementação
não tem os mesmos efeitos que o consumo de produtos in natura.
“Vários estudos mostram, por exemplo, que a proteção que o consumo de
frutas ou de legumes e verduras confere contra doenças do coração e
certos tipos de câncer não se repete com intervenções baseadas no
fornecimento de medicamentos ou suplementos que contêm os nutrientes
individuais presentes naqueles alimentos”, diz o guia. “Esses estudos
indicam que o efeito benéfico sobre a prevenção de doenças advém do
alimento em si e das combinações de nutrientes e outros compostos
químicos que fazem parte da matriz do alimento, mais do que de
nutrientes isolados.”
Ainda que sejam nutritivos, os alimentos ultraprocessados também não podem ser igualados aos alimentos in natura.
“O que a gente sabe é que é muito diferente você consumir a vitamina C
em uma laranja do que em uma cápsula, por exemplo. Apesar de a gente ter
a mesma quantidade de vitamina na laranja ou na cápsula, o organismo
absorve os nutrientes de outra maneira”, explica a pesquisadora Mariana
Garcia.
Um dos estudos citados pelo guia do
Ministério da Saúde é um comentário publicado por dois pesquisadores da
Universidade Harvard na revista da Associação Médica Americana. A
publicação descreve as limitações de analisar a relação
alimentação-saúde com base apenas na composição nutricional dos
alimentos. “[O estudo norte-americano] destaca os efeitos protetores da
alimentação que dependem da estrutura intacta dos alimentos e de
interações entre nutrientes, explica por que a suplementação
medicamentosa de nutrientes não reproduz os mesmos benefícios da
alimentação”, atesta o documento.
Repúdio de especialistas
A iniciativa da prefeitura foi objeto de notas de repúdio de diversas entidades. Em nota oficial, o Conselho Regional de Nutrição (CRN) da 3ª Região – São Paulo/Mato Grosso do Sul
condenou a iniciativa. “O CRN-3 se manifesta contrário à proposta, pois
ela contraria os princípios do Direito Humano à Alimentação Adequada
(DHAA), bem como do Guia Alimentar da População Brasileira, em total
desrespeito aos avanços obtidos nas últimas décadas no campo da
segurança alimentar e no que tange às políticas públicas sobre as ações
de combate à fome e desnutrição”, afirma o comunicado.
A nutricionista Vivian Zollar, conselheira do CRN-3, justificou ao Truco o
posicionamento da entidade. “Todas as políticas públicas hoje são
focadas no acesso da população à comida de verdade, porque comer vai
muito além de nutrir. Este programa está indo na contramão de tudo que
está sendo instituído em âmbito nacional”, disse. Ela destaca ainda que o
programa foi criado sem fundamentação em pesquisas e estudos
municipais. “Para desenvolver esse tipo de iniciativa é preciso conhecer
as necessidades nutricionais da população paulistana. Hoje o Brasil já
saiu de uma situação de baixo peso para uma prevalência de sobrepeso e
obesidade. Seria necessário localizar em quais regiões do município há
demanda para um complemento alimentar e quais seriam as deficiências
específicas, se seria, por exemplo, falta de ferro ou de vitamina C,
antes de conceber o produto.”
O Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) da Presidência da República solicitou, em nota, que a Prefeitura de São Paulo enviasse “documentos oficiais e técnicos sobre este programa”.
No documento, o Consea convocou a população a analisar “o atendimento
aos princípios da dignidade humana e realização do Direito Humano à
Alimentação Adequada (DHAA) e da Segurança Alimentar e Nutricional nesta
ação”.
De acordo com o Consea, o Direito Humano à Alimentação Adequada (DHAA)
abrange a “adequação, acessibilidade e estabilidade do acesso a
alimentos produzidos e consumidos de forma soberana, sustentável, digna e
emancipatória”. Esse direito está previsto nos artigos 6º e 227 da
Constituição Federal, definido pela Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional (nº 11.346/2006), bem como no artigo 11 do Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais.
Para os nutricionistas ouvidos pelo Truco,
o composto produzido pela Plataforma Sinergia não atende aos critérios
de dignidade alimentar. “Alimento não é só comida. Ele envolve uma
questão cultural e social muito expressiva. Quando você oferece a uma
pessoa que já está em condição de vulnerabilidade um alimento assim, a
pessoa se sente ainda menos cidadã”, avalia Barberan, do CRN-4. Mariana
Garcia, do Idec, acredita que o produto não é adequado sequer para
utilização como complemento nutricional. “Em nenhum tipo de apresentação
ele seria ideal. Trata-se de um alimento ultraprocessado, quando a
proposta deveria ser fornecer todos os nutrientes necessários apenas com
comida de verdade.”
Diante da repercussão negativa, Doria voltou atrás nas suas declarações e agora a Prefeitura diz não saber se vai distribuir o Allimento. O post sobre o projeto também foi alterado – a versão original enfatizava a parceria com a Plataforma Sinergia.
Informada sobre a classificação da fala como falsa, a Secretaria
Especial de Comunicação evitou comentar a frase selecionada pelo Truco e enviou a seguinte resposta:
“A Prefeitura reitera que os
alimentos naturais NÃO serão removidos da rede municipal. Pelo
contrário, no âmbito da Lei aprovada, a ideia é ampliar a sua
distribuição por meio de parcerias como, por exemplo, o instituto Mesa
Brasil – uma rede nacional de banco de alimentos.
A Agência Pública avalia apenas o
vídeo de um minuto publicado em rede social, sem considerar o contexto,
as informações apresentadas durante coletiva de imprensa, além do
material disponível no site da Prefeitura de São Paulo.
Tanto na coletiva quanto no
material entregue à imprensa foi informado que não haverá distribuição
generalizada do produto, que será um complemento nutricional, e trata-se
apenas de uma das ações que serão implementadas no âmbito da Política
Municipal de Combate ao Desperdício de Alimentos e Erradicação da Fome,
cuja criação foi determinada por lei aprovada recentemente pela Câmara
Municipal de São Paulo.
De acordo com a plataforma
Sinergia, responsável pelo desenvolvimento, a farinha dá durabilidade
aos nutrientes presentes em alimentos de qualidade, mas que seriam
descartados por estarem fora dos padrões de comercialização. O objetivo é
adicioná-la no preparo de alimentos in natura, para aumentar o teor
alimentar do produto final.”