Sexta, 15 de novembro de 2019
A monocultura cultural sertaneja é um mito que precisa ser desconstruído
Por
Juan Ricthelly*
Juan Ricthelly*
Goiânia é
uma cidade que não deixa de me surpreender, seja pela simpatia característica
de seu povo, pelo zelo com suas praças e parques, pela cerveja artesanal local,
a Colombina ou pela quantidade de bares excelentes espalhados por toda a
cidade.
Confesso
que não sou fã do sertanejo universitário, e de seus cantores e cantoras
nacionalmente conhecidos, com agendas lotadas de shows, música tocando em
rádios, festas, programas de TV, carros
de som estrondosos, status do Instagram e do WhatsApp, timelines do Facebook,
na casa do vizinho, na casa do meus amigos e parentes, por toda parte... É
música onipresente, sendo quase impossível viver um único dia nesse país, sem
ouvir ao menos uma vez ao longo do dia.
Simplesmente
odeio, e não vou entrar no mérito do meu desgosto, não gosto e não tenho que
dar explicações, evito ao máximo ouvir, de modo que não toca na minha casa, no
meu carro e muito menos nas minhas festas.
Mas
voltando à Goiânia...
Estive
por lá esses dias, e planejei visitar três bares: Don Guina Pub, o meu bar favorito, em razão da música e da
decoração; o Aquarius, pelo chopp
gelado, decoração e pela opção de observar os peixes quando o tédio chega; o Bar do Mirante na Avenida Perimetral
Norte, pela visão panorâmica de Goiânia.
Essas
eram minhas pretensões boêmias, meus amigos disseram que eram um tanto
burguesas, e sugeriram outras alternativas.
Confesso
com certa vergonha, que até esse dia tinha uma visão preconceituosa de Goiânia,
acreditando quase que cegamente na supremacia cultural do sertanejo
universitário por aquelas bandas, quebrei a cara.... Acho que nunca estive tão
redondamente enganado na minha vida.
Começaríamos
a noite num samba, e quando me disseram que esse seria o nosso prelúdio,
levantei a sobrancelha incrédulo...
Ao
dobrarmos a esquina, o som dos batuques se destacava, a entrada era barata e os
atendentes cordiais, ao entrar no Distrito
115, tive que segurar meu queixo, fiquei boquiaberto com a cena.
Uma roda
de samba com mais de 20 mulheres animava uma multidão de 200 pessoas, que
dançavam, cantavam, bebiam e se divertiam numa alegria que estava no ar e era
vista a olho nu, pessoas bonitas de todas as idades e cores, conectadas pelo
som ancestral do samba, mais cedo um rapaz havia sido expulso por assedio, esse
tipo de comportamento não era tolerado naquele ambiente, em que todos e todas
pareciam se sentir à vontade para ser o que quisessem e como quisessem.
Era uma
noite fresca, a maioria usava trajes onde ombros, braços, nucas e costas
ficavam à mostra, de modo que cada corpo com suas tatuagens podia facilmente
ser observado, parecia até uma galeria de arte, onde corpos vivos e bonitos
eram o depósito de pinturas, gravuras, desenhos e frases.
O samba
seguia imparável, mulheres revezavam nos instrumentos e na voz, Nina Sondara, uma mulher negra com
tranças coloridas de azul até a metade, era uma maestra regendo uma orquestra
viva, Rainy Agatha transbordava samba
por suas cordas vocais e lia até pensamentos, digo isso porque pedi uma música
em pensamento e ela ouviu, cantando o Canto
das Três Raças de Clara Nunes, tive que agradecer pessoalmente depois.
Fiquei em
êxtase e extremamente surpreso com aquela descoberta, peço desculpas aos meus
amigos goianienses pela ignorância e preconceito, mas eu jamais imaginei na
minha vida que em Goiânia havia um samba de tão alto nível, sério!
Depois
fomos ao Monkey, um bar karaokê,
onde os banheiros ao invés dos tradicionais bonequinhos com os dizeres
“Ele/Ela” na porta, simplesmente tinha macacos acompanhados da frase “Sem
gênero”, ao entrar a parede dizia num rabisco de pincel atômico “Eu não sou um
macaco!!!”. Mais uma vez me surpreendi com a diversidade das músicas cantadas
pelos corajosos que se aventuravam a soltar a voz no microfone, acho que de
umas 30 músicas cantadas, somente umas 5 eram sertanejo universitário, talvez
nem isso. Me arrisquei com a Canção do Senhor da Guerra do Legião Urbana, até
num karaokê dá para falar de política por meio de uma música.
Saindo de
lá, emendamos com o bar anarquista Casa
Liberté, que é exatamente numa casa mesmo, uma casa dos sonhos, onde a
música era boa, a cerveja gelada e com garçons e garçonetes usando botons
antifascistas.
Terminamos
a noite num dos últimos lugares abertos de Goiânia, tanto que encontramos
muitas pessoas que havíamos encontrado nos outros lugares por lá, o Maracutaia, segundo relatos, fica
aberto até às 10 horas da manhã, não tenho muito o que relatar.
Com o dia
amanhecendo, eu e minha amiga Letícia, os últimos sobreviventes da noite,
esperávamos o Uber deitados na calçada no meio da rua, olhando a beleza de um
céu azul celeste que nos dava bom dia.
As
melhores noites costumam aleatórias, espontâneas e não planejadas, e essa havia
sido uma delas, uma noite que me ensinou a valorosa lição de que nem só de
sertanejo vive o Goiás, que lá no seu coração, a diversidade cultural vive,
resiste e pulsa de forma leve e cheia de plenitude, e principalmente que
monocultura cultural sertaneja é um mito que precisa ser desconstruído.