Imprensa é oposição. O resto é armazém de secos e molhados."

(Millôr Fernandes)

domingo, 7 de junho de 2020

O perfil político das forças armadas no Brasil

Domingo, 7 de junho de 2020

Artigo publicado originariamente no Blog Por Brasília

Por Salin Siddartha 

Não se devem ver as Forças Armadas como um todo à parte que justifique uma apreciação desligada do relacionamento com as demais estruturas da sociedade. Elas têm de ser analisadas dentro do contexto em que se organiza a sociedade brasileira.
As forças políticas estão tão presentes nos meios militares quanto nos demais setores da sociedade, e as Forças Armadas brasileiras criaram a tradição de envolver-se nas questões políticas. Veja-se, por exemplo, que Duque de Caxias, Patrono do Exército Brasileiro, envolveu-se com a política no período do Império. Nesse aspecto, as Forças Armadas atuam como um centro de reflexão, discussão e atuação política desde que se entendem como instituição, ainda no tempo do Brasil colonial, embora as manifestações oficiais em nome das FAs, nesse campo, estejam, geralmente, a cargo dos seus oficiais-generais do Alto Comando, resguardando-se, no Exército, não só aos generais-de-exército, mas também aos generais-de-divisão, na Marinha não só aos almirantes-de-esquadra, mas também aos vice-almirantes, e, na Força Aérea, não só aos brigadeiros-do-ar, mas também aos tenentes-brigadeiros falar em nome delas – todas as demais falas não são consideradas como representativas das três armas, muito embora, em épocas de prenúncio de crise política, inúmeros pronunciamentos já tenham ocorrido por parte de oficiais de baixo escalão, sejam eles oficiais superiores ou oficiais subalternos, não importa, considerados, na maioria das vezes, apenas expressão de revolta por parte de alguns setores. A articulação de grupos, como coronéis, capitães, sargentos, sempre foi tida como negativa por provocar divisão interna, quebrando a cadeia hierárquica, e por enredar a instituição nos conflitos sociais. Como exemplo, a articulação do movimento dos sargentos, desde 1961, foi tida como uma ameaça à segurança nacional.
Os regulamentos disciplinares das três Forças proíbem manifestações – sem autorização – de natureza político-partidária, assim como provocar, em qualquer meio de comunicação, discussões políticas ou delas tomar parte. O Código Penal Militar estabelece ser crime a publicação de crítica sobre resolução do governo e decisões do Alto Comando. Na lista de transgressões presentes no Regulamento Disciplinar do Exército, estão:
1. tomar parte, em área militar ou sob jurisdição militar, em discussão a respeito de assuntos de natureza político-partidária ou religiosa;
2. manifestar-se, publicamente, o militar da ativa, sem que esteja autorizado, a respeito de assuntos de natureza político-partidária;
3. tomar parte, fardado, em manifestações de natureza político-partidária;
4. discutir ou provocar discussão, por qualquer veículo de comunicação, sobre assuntos políticos ou militares, exceto se devidamente autorizado.
Em nossos tempos, só oficiais-generais do Alto Comando (isto é, generais-de-exército, almirantes-de-esquadra e brigadeiros-do-ar) podem ter, nas redes sociais, perfis associados aos cargos que ocupam, e somente grandes unidades podem estar no Twiter. Valendo-se desse direito, o brigadeiro Marcelo Fonseca, do Estado Maior da Aeronáutica, tuitou, entre 2 e 9 de agosto de 2018, diversas mensagens de apoio ao candidato Jair Messias Bolsonaro, como “eu voto em Bolsonaro”. Quinze dos vinte perfis com mensagens políticas foram criados após o general Villas Boas, naquela época Comandante do Exército Brasileiro, manifestar-se, em 3 de março de 2018, contra a impunidade de Lula, um dia antes do julgamento no STF de “habeas corpus” do ex-Presidente Luís Inácio Lula da Silva, preso e condenado pela Lava-Jato.
Em flagrante desrespeito ao que está regulamentado, em 12 de outubro daquele ano, o tenente-coronel Rodrigo Otávio Fagundes, da Academia Militar das Agulhas Negras-AMAN e um dos mais ativos do Twiter, republicou texto do então candidato a Presidente da República, Jair Bolsonaro, contra o PT, e o tenente-coronel Leonardo Franklin, comandante do 1º Regimento de Cavalaria Mecanizada (Itaqui-RS), publicou “Bolsonaro 17”; no dia do primeiro turno das eleições presidenciais, o coronel Ricardo Omaki tuitou: “Compareça às urnas. Vote consciente. Por nós. Por nossos filhos. Brasil acima de tudo! Deus acima de todos!”, repetindo o slogan de Bolsonaro, e no dia do segundo turno, o general Penteado afirmou, ao retuitar texto em defesa de Bolsonaro: “O Brasil não suporta mais os cleptocratas disfarçados de políticos, que destruíram nossa democracia.”
Em certas ocasiões, e isso tem sido recorrente em períodos de ditaduras em nosso país, as Forças Armadas atuam como se fossem verdadeiros partidos políticos a defender princípios que submetem a Nação aos interesses dos grandes domínios capitalistas alinhados com as potências hegemônicas como os Estados Unidos desta etapa pós-Guerra Mundial. Mesmo que, programaticamente, inscrevam-se em uma proposta aparentemente nacionalista, esse compromisso vai somente até o ponto em que não entra em conflito com o traçado capitalista que os EUA dão ao mundo. No passado, submeteram-se ao comando de Portugal e, posteriormente, da França e Inglaterra, passando, a partir da Segunda Guerra Mundial, a obedecer àquela nação ianque. Quando se compõem como organização partidária, as três Forças miram duas metas: a primeira, de curto prazo, é a tomada do poder; a segunda, de longo prazo, o de manter o poder por longo período de tempo.
Com o início da Guerra Fria e a polarização do mundo entre dois caminhos opostos – o socialismo e o capitalismo –, as Forças Armadas foram cada vez mais sendo usadas como uma poderosa força destinada a manter o “statu quo”. Sob influência dos Estados Unidos, que começaram a treinar os oficiais brasileiros, as FAs tornaram-se instituições de direita, destinadas a preservar a ordem social, na medida em que representavam o interesse do imperialismo.
Quando julgam necessário, não titubeiam em rasgar a Constituição e os valores democráticos para adentrar à tutela ditatorial do País. Assim, sempre foram majoritariamente avessas à esquerda, infiltrando-se em partidos políticos e atuando na repressão aos próprios companheiros de armas que se revelem simpáticos ao socialismo, detendo-os, mantendo-os reclusos, torturando-os e expurgando-os de seus quadros de praças e oficiais, embora se constate a presença minoritária estatista e nacionalista no decorrer da história das três Forças. Para que se tenha uma ideia, com o Golpe Militar de 1964, iniciou-se um processo de “limpeza” que excluiu quase toda a geração de militares de esquerda das Forças Armadas: afora a numerosa quantidade de oficiais que foram severamente punidos, o Governo de Castello Branco expurgou 738 suboficiais, subtenentes, sargentos e cabos do Exército e da Aeronáutica – 347 deles foram condenados à prisão –, e centenas de militares da Marinha foram presos e perseguidos, sendo que 328 deles foram condenados à prisão.
Não se pode negar que as Forças Armadas nunca foram homogêneas em seu seio, tendo possuído diversas tendências esquerdistas, nacionalistas, fascistas, neofascistas ou, até mesmo, comunistas em sua existência.
Apesar de a passagem pela política raramente deixar sem marca a imagem de isenção do militar, com inerentes reflexos nos seus camaradas de armas, ao longo da História do Brasil, tem havido muitas intervenções militares no teatro político, favoráveis ou contrárias ao regime democrático, desacatando ou não a Constituição e o Estado de Direito. Desse modo, a caserna tem desempenhado um papel decisivo na política brasileira, considerando que as classes dominantes a cooptam em épocas de conflito político, e os golpes contra o Poder Executivo representam esforços combinados entre civis e militares.
As intervenções da caserna, muitas vezes se fizeram presentes na forma de revoltas contra o poder constituído, sendo que, na maioria dos episódios em que isso aconteceu, ela acumulou derrotas em face das acachapantes vitórias que tiveram lugar em favor das tropas legalistas. Apenas na Proclamação da República (1889), Revolução de 1930 e no Golpe Militar de 1964, conseguiram as tropas opositoras sagrarem-se vitoriosas ante as forças da legalidade, sendo que, no caso da Proclamação da República e do Golpe Militar de 1964, sem que tivesse havido combate entre os campos opostos, já que as tropas legalistas terminaram por aderir aos revoltosos, cumprindo a velha tradição da caserna brasileira que, quando dividida, prefere acatar a decisão das outras forças e da tropa que identifica possuidora de poder dissuasório por ser majoritária e/ou ter maior poder de fogo ou combatividade, preservando, assim, a unidade das forças.
Seguindo-se à proclamação republicana, os militares brasileiros estiveram presentes em vários embates contra a situação reinante. No entanto, a partir da repressão à chamada Intentona Comunista, em 1935, é que teve início, 2 anos depois, com o Estado Novo do Presidente Getúlio Vargas, a consolidação das Forças Armadas como a tropa da ordem, diminuindo bastante, daí por diante, as eclosões de revoltas militares, ainda que se sucedessem de maneira tímida, tal qual a revolta de Jacareacanga, em 1956, planejada pelo então major-aviador direitista da Aeronáutica, Haroldo Coimbra Veloso, contra o Governo do Presidente JK.
Cruzeiro-DF, 6 de junho de 2020
SALIN SIDDARTHA
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Este artigo foi publicado originariamente neste 7 de junho no Blog PorBrasília