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(Millôr Fernandes)

sábado, 6 de março de 2021

Servidores do Ipea condenam ameaças e cerceamentos internos à divulgação da produção técnica do órgão. É o governo Bosonaro

 Sábado, 6 de março de 2921

SERVIDORES DO IPEA CONDENAM AMEAÇAS E CERCEAMENTOS INTERNOS À DIVULGAÇÃO DA PRODUÇÃO TÉCNICA DO ÓRGÃO

Sindicato Nacional dos Servidores do Ipea (Afipea-Sindical) divulgou hoje uma Nota Pública a respeito de um Ofício Circular interno que busca “disciplinar” a divulgação externa da produção técnica, por parte de seus pesquisadores e colaboradores. Para a Afipea-Sindical, a “referida norma atenta frontalmente contra preceitos constitucionais, diretrizes institucionais do próprio estatuto do Ipea e, sobretudo, contra a tradição democrática e práticas consolidadas de investigação científica“.

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A tentativa de cerceamento da liberdade dos pesquisadores foi tema de reportagens do UOLFolha de São Paulo e O Estado de São PauloEl PaísCorreio Braziliense e Portal Terra.

A Afipea-Sindical vem desenvolvendo ao longo dos anos uma análise crítica sobre o Ipea como instituição, incluindo o Manifesto para o Ipea rumo aos 60 anos e o livro Ipea diante do espelho. A entidade também está por trás da iniciativa do Assediômetro, criado para monitorar os casos de Assédio Institucional no Serviço Público brasileiro.

Leia também: Liberdade de Expressão dos Servidores Públicos: Nota Técnica n. 1556 da CGU e
Assédio Institucional

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Abaixo, o texto completo da Nota Pública

SERVIDORES DO IPEA CONDENAM AMEAÇAS E CERCEAMENTOS INTERNOS À DIVULGAÇÃO DA PRODUÇÃO TÉCNICA DO ÓRGÃO

Servidores e servidoras do Ipea foram surpreendidos nesta 6ª feira, dia 05 de março de 2021, com um Ofício Circular interno (01/2021) que busca “disciplinar” a divulgação externa da produção técnica (composta basicamente por estudos e pesquisas aplicadas), por parte de seus pesquisadores e colaboradores. Diz o Ofício que “estudos e pesquisas são direito patrimonial do Ipea, a quem cabe definir o momento e a forma de divulgação”. Em anexo ao Ofício, foi encaminhado, por e-mail assinado pelo próprio Presidente do Ipea e dirigido individualmente a cada funcionário, o Manual de Conduta do Agente Público, para reforçar a mensagem de que a inobservância do acima mencionado poderia caracterizar “descumprimento de dever ético e, eventualmente, até infração disciplinar”.

Aparentemente banal ou meramente burocrática, a referida norma atenta frontalmente contra preceitos constitucionais, diretrizes institucionais (tais como valores, missão e objetivos estratégicos) do próprio estatuto do Ipea e, sobretudo, contra a tradição democrática e práticas consolidadas de investigação científica, praticadas há mais de 50 anos pelos trabalhadores que já passaram e pelos que ainda hoje atuam como pesquisadores nesta organização (ainda) de excelência do Estado brasileiro.

É neste sentido que não cabe falar de “direito patrimonial do Ipea”, pois sendo este um órgão singular do Estado nacional, cabe a ele produzir, sob rigores técnicos (metodológicos, teóricos e empíricos), o melhor que puder sobre os variados temas e problemas das políticas públicas brasileiras, trabalho este que apenas se completa com a divulgação externa e debates (especializados e laicos), todos eles amplos, irrestritos, desimpedidos.

Ademais, levando-se em conta o contexto atual de assédio institucional disseminado em praticamente toda a administração pública federal, fenômeno este já amplamente documentado e divulgado pela Afipea-Sindical, nem é de causar espanto que mais um passo em direção ao obscurantismo e ao cerceamento ideológico estejam sendo dados nesse momento dentro do próprio Ipea, um órgão sabidamente responsável por produzir e disseminar – publicamente – estudos, avaliações e pesquisas aplicadas às políticas públicas, visando subsidiar decisões (estratégicas, táticas e operacionais) para o aperfeiçoamento institucional do Estado e para a efetividade do desenvolvimento nacional.

Basta lembrar que algo nessa mesma direção já havia sido tentado com Portaria interna 225/2018, supostamente destinada a estabelecer normativas para estabelecer a Assessoria de Imprensa e Comunicação (Ascom) do Ipea como instrumento de controle das entrevistas jornalísticas dos servidores e, pelo Art. 5º, disciplinar as publicações e as inserções na mídia, entrevistas e matérias citando trabalhos e posições dos mesmos, no período eleitoral.

Para além do fato de que desde dezembro de 2018, uma vez passadas as eleições que vinha a justificar tal medida, o contexto já não era mais de exceção, em nenhum trecho da Portaria ou em qualquer outro documento normativo do Ipea há definição do que venha a ser a “posição ou a comunicação institucional” do órgão. Fica subentendido que o institucional seja sinônimo de oficial, ou seja, posição assumida ou comunicação emitida pela direção do Ipea, notadamente a sua presidência.

Todavia, a maioria esmagadora das matérias publicadas pela mídia, referentes a trabalhos realizados pelo Instituto, tem como base estudos, pesquisas e notas técnicas elaborados pelos servidores. São, portanto, os próprios servidores que conformam a imagem institucional do órgão perante o grande público. São eles que construíram a seriedade, a credibilidade, a avaliação externa de excelência de que desfruta o Ipea. Vale lembrar que é a Ascom a responsável pela divulgação de todos os Textos para Discussão, das Notas Técnicas, dos Relatórios de Pesquisa, dos Livros, das Revistas e dos Boletins do Instituto. Pergunta-se: qual é o papel da Ascom em relação aos técnicos e diretores do Instituto? Portaria 225, portanto, está em desacordo com a história do Ipea e com a imagem pública consolidada da instituição.

Ao constatar que o Ipea não possui ainda uma política de comunicação, a direção do Instituto assume que também não tem uma estratégia de projeção institucional, não sabe como dirigir o órgão para o propósito de afirmar sua especificidade, seja em âmbito governamental, seja perante os atores sociais interessados na atuação do Instituto. Afinal, política de comunicação social é um dos importantes elementos que compõem a estratégia de projeção institucional de uma organização qualquer. Se não está inserida nesse algo maior, corre o risco de ser um artifício simplesmente de marketing.

Portanto, a concepção que parece ter presidido a elaboração da Portaria 225/2018, e agora do Ofício Circular 01/2021, tem como foco instaurar a tutela da Presidência do Ipea, por meio de sua Ascom, sobre as intervenções públicas dos servidores do Ipea para a divulgação e difusão dos resultados de seus trabalhos ou, mais amplamente, na intervenção pública dos servidores, seja com a mídia ou em outros espaços públicos. Neste contexto, a Ascom poderá ser um instrumento da alta direção para o controle político-ideológico do que será divulgado. Não será a facilitadora institucionalmente interessada ou sequer a mediadora isenta, se não abarcar o conteúdo histórico do Instituto e as práticas correntes adotadas nos processos internos de produção de conhecimentos sobre políticas públicas. E tais conhecimentos dificilmente serão internalizados com um quadro de funcionários em grande parte terceirizado e dirigido por coordenadores vindos do setor privado, de escolha do presidente do Instituto.

Já com relação ao Manual de Conduta do Agente Público, instituído por meio da Portaria 15.543/2020 da CGU, cabe ressaltar que no período atual em que o serviço público e servidores se encontram na mira de ataques de toda a ordem, um Manual como esse abre espaço para a vigilância excessiva de práticas corriqueiras, eticamente legítimas e juridicamente constitucionais dos servidores. Prova disso é a Nota Técnica 1.556/2020 da CGU, que trouxe como propósito promover a “responsabilização disciplinar” de servidores públicos em razão de suas manifestações realizadas na internet. A CGU entendia ser necessário realizar “interpretação do conteúdo de dispositivos referentes a deveres e proibições constantes na Lei nº 8.112/1990 (arts. 116, inciso II e 117, inciso V), frente a evolução dos meios de comunicação”.

As duas diretrizes que orientariam a nova interpretação são: a) garantir a observância de um subjetivo e indeterminado “dever de lealdade funcional” e b) ampliar o conceito de “recinto da repartição”, o qual deveria extravasar seu ambiente físico. Com isso, a Nota Técnica 1.556/2020/CGU/CGUNE/CRG, amparada em uma concepção autoritária do direito administrativo, criou um instrumento normativo inconstitucional, que permite invectivas contra a liberdade de expressão dos servidores. O descumprimento do dever de lealdade funcional se daria também por intermédio de condutas ocorridas na esfera de vida privada, como seria o caso das manifestações ocorridas nas redes sociais particulares dos servidores.

Tais normativos não são compatíveis com a Constituição Federal, pois, simultaneamente: violam a liberdade de expressão dos servidores públicos e recrudescem o assédio institucional que hoje se pratica no país. Em outras palavras, a liberdade em sentido amplo é pressuposto do funcionamento regular da vida democrática. A liberdade de expressão e de pensamento e o pluralismo político são condições sem as quais o governo democrático se converte em autocracia.

Por isso, o processo decisório, tanto no Legislativo quanto no Executivo, deve obedecer ao princípio da deliberação informada, isto é, as decisões devem se apoiar em informações e evidências consistentes, produzidas em conformidade com critérios objetivos e racionais. Em uma democracia, os governantes, eleitos pela maioria, governam, mas devem prestar contas a todos os cidadãos, inclusive às minorias.

A democracia envolve, portanto, além da decisão majoritária, também a possibilidade efetiva de se deliberar publicamente sobre as questões a serem decididas. A troca de argumentos e contra-argumentos racionaliza e legitima as decisões públicas. Não por outra razão, em diversos preceitos constitucionais concernentes ao processo legislativo, a Constituição menciona que os projetos de lei serão submetidos não só à “votação”, mas também à “discussão”. Em uma democracia, em suma, a maioria decide, mas apenas pode decidir depois de enfrentar os argumentos apresentados pelas minorias.

Neste sentido, a manifestação pública de servidores é fundamental para a preservação da democracia viva. O servidor deve lealdade ao interesse público, ainda quando isso implique criticar a orientação governamental da ocasião. Se, por exemplo, parte dos servidores do Ministério da Saúde não concorda com a imposição da prescrição de cloroquina, em contradição com as recomendações da ciência, não só pode como deve denunciar em público a inconsistência da política governamental. Se servidores da Anvisa discordam da concessão automática de autorização para a produção de agrotóxicos, por decurso de prazo, cabe-lhes igualmente apresentar em público sua objeção.

Criticar o que está em contradição com o interesse público é conduta admirável nos servidores públicos, sendo absolutamente incompatível com a Constituição Federal furtar-lhes essa prerrogativa. É justamente para exercê-la com liberdade que a Constituição Federal de 1988 lhes confere um amplo sistema de garantias, dentre as quais a estabilidade. Ressalte-se ainda que o ordenamento jurídico brasileiro confere aos servidores públicos civis do Poder Executivo o direito de se filiarem a partidos políticos e de se manifestarem em público sobre assuntos políticos e eleitorais. A Nota Técnica n. 1556/2020 da CGU, bem como o Ofício Circular 01/2021 do Ipea, portanto, além de serem incompatíveis com o direito fundamental à liberdade de expressão, são contraditórios com a finalidade de se estabelecer uma república democrática, transparente e pluralista.

Com base nas razões acima expostas, é possível apresentar as seguintes conclusões gerais:

  • A intepretação do dever de lealdade veiculada por meio da Nota Técnica n. 1556/2020 da CGU e a ameaça implícita contida no Ofício Circular 01/2021 do Ipea são incompatíveis com a Constituição Federal, por violar a liberdade de expressão e os princípios republicanos da impessoalidade da administração e do pluralismo político; e
  • A imposição de penas disciplinares a servidores públicos com base na referida interpretação é ato de improbidade administrativa, apto a ser reprimido pelo Judiciário e pelos órgãos de controle.

Em suma, nada do que vem acontecendo condiz com a tradição profissional e a qualidade técnica dos servidores que fizeram o nome do Ipea, e que o tornou internacionalmente uma das mais respeitadas instituições de pesquisa aplicada ao processo de planejamento governamental e avaliação de políticas públicas no cenário brasileiro.

AFIPEA-SINDICAL

Brasília-DF, 06 de março de 2021

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