Do Correio da Cidadania
A USP, a Tropa de Choque da Polícia e a Tropa de Choque da Mídia |
Escrito por Valéria Nader, da Redação |
Sábado, 12 de Novembro de 2011 |
Mais uma vez, a USP, a maior e mais famosa universidade do país, se
vê às voltas com a polícia. Verdadeira operação de guerra, com Tropa de
Choque, cavalaria, bombas, estilhaços, sobrevôo de helicópteros. Mais de
400 homens para retirar cerca de 70 estudantes que tinham ocupado a
reitoria, em uma manifestação de protesto contra a presença da PM no
campus da universidade.
O que de fato aconteceu por estes dias? Para responder a esta
pergunta, é preciso primeiro externar, sem complacência, o quão
estarrecedor é perceber o teor predominante da informação à qual a
população de todo o país tem tido acesso. O que a maioria saberá sobre
os acontecimentos, e que poderá ser introjetado pela memória coletiva, é
a versão gravada e ventilada através dos grandes veículos de
comunicação.
A Folha e o coro em uníssono
Nem é preciso gastar tempo com semanários a la Veja e
assemelhadas, cujo sensacionalismo associado a um raciocínio tacanho e
primário já está por demais manjado e desmascarado por todos que pensam
em jornalismo com um mínimo de respeito e seriedade. Basta olhar para a
Folha de S. Paulo, afinal, o órgão de mídia impressa mais lido no país,
como faz sempre questão de anunciar em suas páginas, gabando-se com
freqüência de tal façanha e de sua pretensa isenção e progressismo.
Editorial da sexta-feira, 4 de novembro, antes portanto da ação da PM
na reitoria, é notório em sua visão monocórdia a defender, quase
exaltar, a presença da PM no campus. Os estudantes que ocuparam a
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) são tidos como
“grupelhos situados na mais extrema franja da esquerda”. O citado
editorial, este mesmo que utiliza as expressões “grupelhos” e “extrema
franja da esquerda”, critica ainda um tal “excesso de susceptibilidade
ideológica” por parte daqueles que ainda associariam a presença da PM no
campus com traumas advindos da ditadura. Com este vocabulário, é o caso
de questionar de quem seria realmente o tal excesso de susceptibilidade
ideológica.
Conclui finalmente o editorial que “quem agride a democracia, o ensino e a pesquisa na USP é a paranóica minoria que invadiu a reitoria, no intuito de provocar um confronto que só atende às suas pueris fantasias de contestação”. São muitos, além de bastante reconhecidos, os intelectuais e estudiosos que poderiam contribuir para enriquecer este olhar enviesado sobre a realidade uspiana. Estivessem os editorialistas realmente preocupados com o princípio da isenção que tanto pregam, estariam com os ouvidos mais atentos para as diversas facetas que conformam a complexa situação hoje vivida pela universidade.
E não pára por aí o diário dos Frias. Na segunda feira, dia 7 de
novembro, uma tropa de choque jornalística antecedeu a tropa de choque
da PM que atuaria na USP na madrugada de terça. Para ficar em alguns
casos mais exemplares, o colunista Vinícius Mota carrega no verbo ao
questionar “grupelhos semi-alfabetizados e violentos que impõem a sua
agenda sem encontrar resistência à altura” na FFLCH, desqualificando sem
piedade o desempenho da faculdade nos dias de hoje. Acusa-a de se
deixar encantar “por um bordão do passado, mera forma sem conteúdo,
quando clama pela saída da PM do campus”. No entanto, são as próprias
linhas traçadas por Mota, com sua virulência patente, que causam uma
certa confusão temporal: estariam mesmo sendo escritas na atual e tão
aclamada ‘democracia’?
Outro colunista que, neste mesmo dia, 7 de novembro, escreve sobre os
episódios uspianos é o colaborador semanal das segundas-feiras, o
filósofo Luiz Felipe Pondé. Entrar em algum tipo de discussão mais
pormenorizada e edificante sobre o episódio que se desenrolou na USP
esteve bem longe do espectro de preocupação do filósofo. Os
“baderneiros” – como foram cunhados os estudantes da FFLCH – são nada
mais do que parte daquilo que o filósofo toma como um “partido mundial
de jovens”, abraçados pela “mídia ideológica, cansada do marasmo desde
maio de 1968 (aquela ‘revolução francesa’ dos estudantes entediados que
acabou numa noite gostosa de queijos e vinhos)”.
Last but not least, a Folha não se fez de rogada após
consumada a invasão policial na madrugada de terça-feira, 8 de novembro.
Até algum tempo atrás, provavelmente estaria mais antenada em cravar
uma no ferro e outra na ferradura, em função das cenas truculentas
protagonizadas pela polícia de São Paulo, que foram mostradas a todo o
país. Entretanto, manchetes e matérias da quarta-feira, 9 de novembro,
não evidenciaram a menor preocupação com uma cobertura que tivesse o
mínimo de isenção.
Desde a capa do diário, até as páginas internas, os estudantes foram
exaustivamente chamados de invasores, baderneiros e pichadores, com
imagens selecionadas a dedo de forma a corroborar esta visão. Não é,
ademais, gratuito que o caderno a fazer a cobertura dos episódios tenha
sido o de Cotidiano. Esse caderno, que no passado já foi denominado de
Cidades, há tempos vem se tornando um espaço de discussões gerais,
rasteiras e apelativas, sem se aprofundar no tratamento da cidade a
partir de um enfoque urbanístico e social mais elaborado.
A ‘grande’ emissora de TV
E se estamos no âmbito dos grandes veículos, tome-se ainda a
exploração dos fatos aqui narrados pela mídia televisiva de maior porte
no país. A Rede Globo de Televisão, em uma de suas apresentações mais
imediatas após a ocupação da reitoria (o Bom Dia Brasil de 8 de
novembro), teve desempenho emblemático.
Não se absteve de explorar as fortes imagens dos policiais que
cercaram a USP, afinal, um prato cheio para a audiência. Quem se ateve à
observação destas imagens, com a concomitante narração dos fatos pelos
repórteres que os acompanhavam in loco, não teria dúvidas de que se
estava diante de um cenário de dura repressão policial. Mais ao final da
reportagem, porém, viria a fala que não quer calar – aquela que, no
intuito de parecer ocupar um lugar inadvertido, é a que realmente ecoa o
pensamento da emissora global.
A jornalista Renata Vasconcelos, uma das locutoras da reportagem
juntamente com Chico Pinheiro, soltou finalmente as trivialidades que
não mais surpreendem aqueles mais antenados com as entrelinhas da mídia
corporativa. A jornalista enfatizou, indignada, que a reitoria teria
sido invadida “por causa de três estudantes que foram detidos porque
estavam de posse de maconha”. E encerrou a reportagem com sutil torcida
para que, se comprovado o vandalismo, os alunos sejam responsabilizados!
Fatos e versões fora do páreo
“Acreditar que alunos de uma das Faculdades mais importantes do país
se mobilizaram numa ação que ganhou tamanha proporção por desejarem
usufruir do direito ainda ILEGAL de fazer uso de MACONHA dentro do
Campus me parecia inconcebível”. Assim se expressou uma aluna em um
grupo de discussão de uma das muitas redes sociais que estão
contribuindo para a visibilidade de uma versão que não encontra a mais
mínima guarida nos veículos de maior circulação. “Antigamente, o melhor
aliado das manifestações sociais era a imprensa, agora é a internet,
tudo tem que ir parar no You Tube”, avalia um outro aluno diante dos
episódios.
Um estudante, talvez com a forte sensação de impotência decorrente da
impossibilidade de ter voz, chegou até mesmo a fazer uma
auto-entrevista e a divulgá-la pela rede, desbancando com muita sensatez
os sensos comuns que estão imperando. Dentre as perguntas que redigiu,
uma se referia à presença da PM no campus, um dos pontos mais polêmicos
na discussão em pauta. À afirmativa de que a PM deveria sim estar
presente no campus, como meio fundamental na manutenção da ordem, o
estudante avalia que “PM não traz segurança nem fora do campus. Se PM é
segurança, para que empresas de segurança privadas, fazendo ronda em
bairros chiques? Para que seguranças particulares, cercas, alarmes,
grades, carros blindados? Isso tudo em áreas policiadas. Além disso, a
PM de São Paulo mata mais que todas as polícias dos EUA juntas. Muitas
áreas têm menos problemas com segurança, mas são sempre bem iluminadas e
cheias de gente - esse é o ponto. Alunos e professores já manifestaram
soluções alternativas, como iluminação massiva e eficiente de todo o
campus. O rapaz que morreu na FEA resistiu a um assalto e foi, sim,
assassinado no campus. Mas, nota importantíssima: havia PM trabalhando
dentro da USP naquele dia. De nada adiantou. Levar a PM em ações
ostensivas por conta de furtos e roubos não faz sentido, ainda mais
podendo evitá-los com uma guarda universitária concursada, com plano de
carreira, treinada, em grande número, com ala feminina treinada para
lidar com casos de abuso sexual e estupro”.
O estudante conclui sua resposta narrando que “a ação da PM está
afinada com as ações políticas do reitor João Rodas em seu processo de
privatização da Universidade. Não é lenda, não é mania de perseguição,
não é inventado. Lutamos contra algo real aqui. Propostas de fechamento
de cursos que não dão lucro, abertura de cursos pagos usando a
infra-estrutura e os docentes da USP, tudo isso faz parte da
privatização gradual - que também se manifesta nas terceirizações (que,
aliás, no caso da guarda universitária, colabora com os sumiços de
celulares, laptops etc.)”.
Quem se dá ao trabalho de ‘navegar’ por aí, e fugir, por pouco que seja, do noticiário do mainstream,
vai perceber de fato uma profusão de visões profundamente dissonantes
daquela que é bombardeada incessantemente pela mídia corporativa. São
dezenas de estudantes, professores e intelectuais que, notoriamente
ignorados nos noticiários de maior visibilidade, há anos avaliam temas
essenciais afeitos à política universitária.
Com o sentido de reorganizar a universidade como campo efetivo de
participação e decisão política, estes estudiosos vêm ressaltando que a
direção e gestão dos processos decisórios na USP têm se mostrado
incapazes de representar os segmentos diversos que compõem a
universidade, e de lidar com a profusão de conflitos e movimentos
sociais e políticos que emergem em seu seio. E isso não é de hoje.
Conselho universitário, associações e distintos fóruns de discussão
foram sendo esvaziados nos últimos anos, com o estreitamento e a
centralização das instâncias de decisão. O governo do estado, por sua
vez, dominado há mais de 20 anos pelo tucanato, jamais demonstrou sequer
entender o que seja o conceito de autonomia universitária.
Por que a resposta policial se tornou a forma natural de reação? É a
pergunta que já se fazia a filósofa Marilena Chauí em ato contra a
presença da PM na USP, em 16 de junho de 2009, no anfiteatro da
Geografia, na FFLCH, com presença de Antônio Cândido e de Maria Victoria
Benevides. A resposta a esta pergunta está diretamente associada à
falta de fóruns de discussão e debate, que faz com que, a cada
manifestação de oposição, exigência e reivindicação, a única reação que
se conheça seja aquela que ‘vem de cima’.
A prisão dos mais de 70 alunos que ocuparam a reitoria em ato de
manifestação política – prisão que se deu em moldes bem distintos
daqueles apregoados pelos veículos de comunicação dominantes, segundo
relato de dezenas de estudantes - é um ataque frontal à liberdade nesta
que se chama democracia representativa. Novamente, “governo do estado e
reitoria entraram no jogo da radicalização, da violência e do
acirramento do conflito, sem esforço de construção de uma estratégia
política menos tosca, que efetivamente expressasse a vontade das
maiorias, que não foram consultadas”, destaca a urbanista e professora
da USP Raquel Rolnik em seu blog no dia 10 de novembro.
Tempos sombrios
Uma Comissão da Verdade que de verdadeira tem quase nada. Um deputado
carioca que precisa sair do país para proteger sua vida, após bulir com
os interesses de poderosos milicianos do Rio. Tropa de Choque da
Polícia Militar na USP, prontamente seguida pela Tropa de Choque
Midiática. Tempos sombrios estes que vivemos, em plena primavera nos
Trópicos!
Com a palavra final, um estudante
“Ontem (dia 10 de novembro, no centro de São Paulo), éramos mais de
5000 demonstrando que não é uma minoria que se indigna na USP. Mas onde
estavam as câmeras e agentes da TV que NÃO filmaram tudo ali? A grande
mídia ordena o pensamento assim como o governador ordena à polícia
invasões de favelas, massacres do Carandiru e invasões policiais no
campus da USP. Disciplinam sua mente, brutalizam e ganham muito dinheiro
e poder com isso...”.
Disputa pela reitoria da USP ignorou as questões essenciais ao ensino superior – Entrevista com Octaviano Helene, ex-presidente da Associação dos Docentes da USP. Antonio Candido: USP trouxe revolução cultural e social – depoimento especial de Antonio Candido ao Correio da Cidadania Valéria Nader, economista, é editora do Correio da Cidadania. |
Última atualização em Sábado, 12 de Novembro de 2011 |