Terça, 22 de novembro de 2011
O texto a seguir foi transcrito do Blog do Marcelo Rubens Paiva, filho de um dos assassinados pela ditadura de 64, o deputado federal Rubens Paiva. Vale lembrar aqui que uma das filhas de Waldir Pires, ex-governador da Bahia, ex-ministro da Previdência, ex-ministro da Defesa e que foi também ministro da Casa Civil de João Goulart, não suportou a notícia do assassinato de Rubens Paiva, amigo da família, e num reflexo se jogou pela janela do apartamento em que morava no Rio de Janeiro, o que deu fim a sua vida.
comissão da 1/2 verdade
Minha irmã Vera foi convidada para falar na cerimônia de instalação da Comissão da Verdade.
No Palácio do Planalto, com a presença de Dilma e ministros da Justiça, Casa Civil, secretária de Direitos Humanos, não a chamaram para discursar. Aos 45 minutos do segundo tempo cancelaram seu discurso por pressão dos militares.
Começamos bem mal esta histórica comissão.
O que eles temem tanto escutar?
Abaixo, a carta de desabafo da minha irmã.
No Palácio do Planalto, com a presença de Dilma e ministros da Justiça, Casa Civil, secretária de Direitos Humanos, não a chamaram para discursar. Aos 45 minutos do segundo tempo cancelaram seu discurso por pressão dos militares.
Começamos bem mal esta histórica comissão.
O que eles temem tanto escutar?
Abaixo, a carta de desabafo da minha irmã.
“Segue as anotações da minha fala que foi cancelada, segundo os
jornais de hoje, por pressão dos militares. Assim começa muito mal…
Não fui desconvidada, simplesmente não falei! A minha volta diziam
que a Pres. Dilma tinha que viajar e encurtaram a cerimônia, que alguém
tinha falado um tempo a mais. Sai para uma reunião na UNB, ainda
emocionada com o carinho que dispensou aos familiares e ex-presos
políticos, um a um.
Agora entendo o pedido de desculpas da Ministra Maria do Rosário.
Sexta-feira, 18 de Novembro de 2011, 11:00. Palácio do Planalto, Brasília.
Excelentíssima Sra. Presidenta Dilma, querida ministra dos Direitos
Humanos Maria do Rosário. Demais ministros presentes. Senhores
representantes do Congresso Nacional, das Forças Armadas. Caríssimos
ex-presos políticos e familiares de desaparecidos aqui presentes, tanto
tempo nessa luta.
Agradecemos a honra, meu filho João Paiva Avelino e eu, filha e neto
de Rubens Paiva, de estarmos aqui presenciando esse momento histórico e,
dentre as centenas de famílias de mortos e desaparecidos, de milhares
de adolescentes, mulheres e homens presos e torturados durante o regime
militar, o privilégio de poder falar.
Ao enfrentar a verdade sobre esse período, ao impedir que violações
contra direitos humanos de qualquer espécie permaneçam sob sigilo,
estamos mais perto de enfrentar a herança que ainda assombra a vida
cotidiana dos brasileiros. Não falo apenas do cotidiano das famílias
marcadas pelo período de exceção. Incontáveis famílias ainda hoje, em
2011, sofrem em todo o Brasil com prisões arbitrárias, seqüestros,
humilhação e a tortura. Sem advogado de defesa, sem fiança. Não é isso
que está em todos os jornais e na televisão quase todo dia, denunciando,
por exemplo, como se deturpa a retomada da cidadania nos morros do Rio
de Janeiro? Inúmeros dados indicam que especialmente brasileiros mais
pobres e mais pretos, ou interpretados como homossexuais, ainda são
cotidianamente agredidos sem defesa nas ruas, ou são presos
arbitrariamente, sem direito ao respeito, sem garantia de seus direitos
mais básicos à não discriminação e a integridade física e moral que a
Declaração dos Direitos Humanos consagrou na ONU depois dos horrores do
nazismo em 1948.
Isso tudo continua acontecendo, Excelentíssima Presidenta. Continua
acontecendo pela ação de pessoas que desrespeitam sua obrigação
constitucional e perpetuam ações herdeiras do estado de exceção que
vivemos de modo acirrado de 1964 a 1988.
O respeito aos direitos humanos, o respeito democrático à diferença
de opiniões assim como a construção da paz se constrói todo dia e a cada
geração! Todos, civis e militares, devemos compromissos com sua
sustentação.
Nossa história familiar é uma entre tantas registradas em livros e
exposições. Aqui em Brasília a exposição sobre o calvário de Frei Tito
pode ser mais uma lição sobre o período que se deve investigar.
Em Março desse ano, na inauguração da exposição sobre meu pai no
Congresso Nacional, ressaltei que há exatos 40 anos o tínhamos visto
pela última vez. Rubens Paiva que foi um combativo líder estudantil na
luta “Pelo Petróleo é Nosso”, depois engenheiro construtor de Brasília,
depois deputado eleito pelo povo, cassado e exilado em 1964. Em 1971 era
um bem sucedido engenheiro, democrata preocupado com o seu país e pai
de 5 filhos. Foi preso em casa quando voltava da praia, feliz por ter
jogado vôlei e poder almoçar com sua família em um feriado. Intimado,
foi dirigindo seu carro, cujo recibo de entrega dias depois é a única
prova de que foi preso. Minha mãe, dedicada mãe de família, foi presa
no dia seguinte, com minha irmã de 15 anos. Ficaram dias no DOI-CODI, um
dos cenário de horror naqueles tempos. Revi minha irmã com a alma
partida e minha mãe esquálida. De quartel em quartel, gabinete em
gabinete passou anos a fio tentando encontrá-lo, ou pelo menos ter
noticias. Nenhuma noticia.
Apenas na inauguração da exposição em São Paulo, 40 anos depois,
fizemos pela primeira vez um Memorial onde juntamos família e amigos
para honrar sua memória. Descobrimos que a data em que cada um de nós
decidiu que Rubens Paiva tinha morrido variava muito, meses e anos
diferentes…Aceitar que ele tinha sido assassinado, era matá-lo mais uma
vez.
Essa cicatriz fica menos dolorida hoje, diante de mais um passo para
que nada disso se repita, para que o Brasil consolide sua democracia e
um caminho para a paz.
Excelentíssima Presidenta: temos muitas coisas em comum, além das
marcas na alma do período de exceção e de sermos mulheres, mãe,
funcionária pública. Compartilhamos os direitos humanos como referência
ética e para as políticas públicas para o Brasil. Também com 19 anos me
envolvi com movimentos de jovens que queriam mudar o pais. Enquanto
esperava essa cerimônia começar, preparando o que ia falar, lembrava de
como essa mobilização começou. Na diretoria do recém fundado DCE-Livre
da USP, Alexandre Vanucci Leme, um dos jovens colegas da USP
sacrificados pela ditadura, ajudei a organizar a 1a mobilização nas ruas
desde o AI-5, contra prisões arbitrárias de colegas presos e pela
anistia aos presos políticos. Era maio de 1977 e até sermos parados
pelas bombas do Coronel Erasmo Dias, andávamos pacificamente pelas ruas
do centro distribuindo uma carta aberta a população cuja palavra de
ordem era
HOJE, CONSENTE QUEM CALA.
Acho essa carta absolutamente adequada para expressar nosso desejo
hoje, no ato que sanciona a Comissão da Verdade. Para esclarecer de fato
o que aconteceu nos chamados anos de chumbo, quem calar consentirá,
não é mesmo?
Se a Comissão da Verdade não tiver autonomia e soberania para
investigar, e uma grande equipe que a auxilie em seu trabalho, estaremos
consentindo. Consentindo, quero ressaltar, seremos cúmplices do
sofrimento de milhares de famílias ainda afetadas por essa herança de
horror que agora não está apoiada em leis de exceção, mas segue
inquestionada nos fatos.
A nossa carta de 1977, publicada na primeira página do jornal o
Estado de São Paulo no dia seguinte, expressava a indignação juvenil com
a falta de democracia e justiça social, que seguem nos desafiando. O
Brasil foi o último país a encerrar o período de escravidão, os recentes
dados do IBGE confirmam que continuamos uma país rico, mas absurdamente
desigual… Hoje somos o último país a, muito timidamente mas com
esperança, começar a fazer o que outros países que viveram ditaduras no
mesmo período fizeram. Somos cobrados pela ONU, pelos organismos
internacionais e até pela Revista Economist, a avançar nesse processo.
Todos concordam que re-estabelecer a verdade e preservar a memória não é
revanchismo, que responsáveis pela barbárie sejam julgadas, com o
direito a defesa que os presos políticos nunca tiveram, é fundamental
para que os torturadores de hoje não se sintam impunes para impedir a
paz e a justiça de todo dia. Chile e Argentina já o fizeram, a África
do Sul deu um exemplo magnífico de como enfrentar a verdade e resgatar a
memória. Para que anos de chumbo não se repitam, para que cada geração a
valorize.
Termino insistindo que a DEMOCRACIA SE CONSTRÓI E RECONSTRÓI A CADA DIA. Deve ser valorizada e reconstruída a CADA GERAÇÃO.
E que hoje, quem cala, consente, mais uma vez.
Obrigada.
Depois de saber que fui impedida de falar ontem, lembro de um texto
de meu irmão Marcelo Paiva em sua coluna, dirigida aos militares:
“Vocês pertencem a uma nova geração de generais, almirantes,
tenentes-brigadeiros. Eram jovens durante a ditadura (…)Por que não
limpar a fama da corporação?
Não se comparem a eles. Não devem nada a
eles, que sujaram o nome das Forças Armadas. Vocês devem seguir uma
tradição que nos honra, garantiu a República, o fim da ditadura de
Getúlio, depois de combater os nazistas, e que hoje lidera a campanha no
Haiti.”