Terça, 2 de fevereiro de 2016
Do TJDF
Do TJDF
Por Walter Gomes de Sousa
Psicólogo e supervisor da Seção de Colocação em Família Substituta da Vara da Infância e da Juventude do Distrito Federal/TJDFT
Uma notícia policial recentemente veiculada pela mídia do Distrito
Federal e que repercutiu em nível nacional retratou o assassinato de uma
criança de apenas 11 meses de idade na cidade de Taguatinga/DF. Tal
ocorrência causou estupor e indignação generalizados. Segundo consta das
investigações preliminares, a genitora biológica, por vivenciar
precárias condições socioeconômicas e estruturais, não dispor de
adequado suporte familiar e ainda ter que trabalhar o dia todo, decidiu
entregar sua filha de tenra idade para ser criada por uma conhecida sua.
De acordo com as autoridades policiais, existem indícios de que a
criança já vinha sendo submetida a maus-tratos há algum tempo. Após ser
presa em flagrante, a suposta autora dos fatos declarou que teria se
estressado por causa das birras protagonizadas pela infante e que por
isso aplicou-lhe alguns castigos físicos.
Óbitos infantis resultantes de negligência e maus-tratos, por
incrível que pareça, têm-se tornado comum em várias partes de nosso País
e não é crível que tanto o Estado quanto a sociedade continuem inertes e
inoperantes diante da escalada da violação sem precedentes dos direitos
da infância e da juventude brasileiras. O fato policial acima
mencionado nos impõe o dever ético de refletir em torno de alguns
aspectos básicos relacionados à vulnerabilidade e riscos que envolvem
nossas crianças e jovens:
1) A morte precoce daquela criança poderia ter sido evitada se o
Estado brasileiro cumprisse rigorosamente o que está previsto no artigo
54, inciso IV, do Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA:
"É dever do Estado assegurar à criança e ao adolescente: IV –
atendimento em creche e pré-escola às crianças de zero a seis anos de
idade". Ora, não é difícil acreditar
que, se a genitora daquela pequena vítima tivesse à sua disposição o
serviço de creche previsto pela legislação, com certeza não teria
recorrido a uma conhecida para ser cuidadora de sua filha. A
inexistência de um serviço indispensável à proteção da infância que
deveria ser ofertado pelo Estado a todas as crianças de zero a 6 anos,
conforme prevê o imperativo legal, indubitavelmente contribui para a
multiplicação de possíveis situações de violação de direitos da
infância. Indaguemos quantas milhares de mães, neste momento, não se
encontram aflitas e em sofrimento por terem que deixar seus filhos de
tenra idade sob os cuidados de vizinhos, conhecidos, parentes distantes
sem terem a certeza de que estão de fato protegidos, simplesmente por
absoluta falta de creches, cuja oferta obrigatória consta de previsão
legal.
2) Outro aspecto lamentável presente na ocorrência nos remete à
importância de reexaminar uma prática bastante antiga e banalizada que
ainda insiste em permanecer em nosso contexto pós-moderno conhecida
tradicionalmente como "pegar uma criança para criar". Em muitas regiões
do País, tornou-se práxis entre muitas famílias entregar crianças ou
mesmo pegá-las para criar, tudo sob o manto da informalidade. Não raro,
tal procedimento acaba sendo justificado em nome da filantropia, da
benquerença religiosa, da solidariedade ou até mesmo do desejo de uma adoção sem burocracia. Necessário se faz restabelecer o
primado de que criança não é objeto, mas sim sujeito de direitos. Que é
direito fundamental da criança ser criada junto à sua família natural
e, excepcionalmente, estar sob os cuidados de uma família substituta. Na
impossibilidade de a criança estar sob a guarda e proteção de sua
família biológica, sua transferência para qualquer outro contexto só
pode se dar mediante expressa autorização judicial, conforme
cristalinamente recomendado no artigo 30 do ECA:
"A colocação em família substituta não admitirá
transferência de criança ou adolescente a terceiros ou a entidades
governamentais ou não governamentais, sem autorização judicial".
Devemos atuar de maneira a desconstruir práticas e hábitos que reforçam
as chamadas guardas informais ou adoções irregulares, que, ao invés de
proteger, acabam por expor a riscos e violar direitos tanto de crianças
como também de adolescentes.
3) Em que pese a presença de razões supostamente legítimas em
situações nas quais a genitora procede à entrega de seu filho a
terceiros sem a prévia mediação ou autorização judicial, a possibilidade
de riscos e violações aos direitos da infância é muito grande. Muitas
vezes quem aquiesce com a entrega da criança a um dado cuidador não o
conhece suficientemente e não sabe se ele é portador das qualidades e
valores esperados para quem se propõe a ser guardião de uma vida
indefesa. Nem sempre quem se apresenta para criar e cuidar de uma
criança de fato reúne as condições psicossociais necessárias para
exercer com competência e afetividade as funções parentais e prover os
suprimentos materiais e emocionais necessários ao bem-estar de um ser em
fase de desenvolvimento. Daí a importância de se evitar a informalidade
ou o caminho fácil. Sempre que possível, em matéria de direitos da
infância e juventude, deve-se reportar ao Sistema de Justiça
(Judiciário, Ministério Público, Defensoria Pública, Conselho Tutelar)
para se informar e tirar todas as dúvidas existentes. Fazendo isso, a
pessoa estará em fina sintonia com o que está previsto no artigo 5º do
ECA:
"Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer
forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e
opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão,
aos seus direitos fundamentais".
4) A proteção da infância e da juventude é dever de cada um de nós. E
uma das melhores formas de garanti-la é através da prevenção. O artigo
70 do ECA sinaliza nesse sentido ao afirmar que "é dever de todos prevenir a ocorrência de ameaça ou violação dos direitos da criança e do adolescente".
Ante qualquer situação em que existe a iminente possibilidade de
violação de direitos fundamentais da infância e juventude, necessário se
faz que qualquer cidadão acione as autoridades competentes e denuncie,
sob pena de, se não o fizer, ser responsabilizado pela omissão. A
denúncia é um importante procedimento disponível ao cidadão que tem
compromisso com a rede de proteção dos direitos da criança e do
adolescente. O ECA, em seu artigo 13, de forma bastante explícita,
convoca o cidadão brasileiro a ser um agente de proteção do bem-estar de
meninos e meninas de todo o País, ao afirmar que "os
casos de suspeita ou confirmação de castigo físico, de tratamento cruel
ou degradante e de maus-tratos contra criança ou adolescente serão
obrigatoriamente comunicados ao Conselho Tutelar da respectiva
localidade, sem prejuízo de outras providências legais".
O Conselho Tutelar tem um papel estratégico nesse trabalho e compete ao
Estado provê-lo de todos os recursos necessários para o seu pleno
funcionamento. O cidadão pode acionar o Conselho Tutelar e
subsidiariamente também, se o caso, reportar-se à Delegacia de Proteção
da Criança e do Adolescente, ao Ministério Público da Infância e Juventude, ao Núcleo
da Defensoria Pública da Infância e Juventude e à Vara da Infância e da
Juventude.
O que se verifica, de norte a sul e de leste a oeste, em nosso imenso
território nacional, é o reiterado descaso ao que o artigo 86 do ECA
preconiza:
"A política de atendimento dos direitos da criança e do
adolescente far-se-á através de um conjunto articulado de ações
governamentais e não governamentais, da União, dos estados, do Distrito
Federal e dos municípios".
Infelizmente, ao invés de uma pátria educadora, deparamo-nos com uma
pátria "abandonante", pois, quando se trata de infância e juventude, o
que se vê é uma população infantojuvenil sistematicamente abandonada e
violada em seus direitos constitucionais fundamentais, especialmente por
absoluta falta de políticas públicas eficazes de atendimento e de
proteção.
*Psicólogo e supervisor da Seção de Colocação em Família Substituta da Vara da Infância e da Juventude do Distrito Federal/TJDFT
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Artigo publicado no site do TJDFT, na página da Imprensa e da Vara da Infância e da Juventude do DF, em 1º/2/2016.